Vinte de Novembro

Luiz Valério P. Trindade
5 min readNov 20, 2022
© Pexels, Cottonbro Studio

As celebrações, eventos e manifestações que acontecem ao longo do mês de novembro no Brasil, com seu ápice no dia 20, são simbolicamente muito importantes para a comunidade negra nacional.

Este período no calendário dialoga diretamente com o Martin Luther King Jr. Day nos EUA (celebrado sempre na terceira segunda-feira de janeiro) e o Black History Month celebrado em outubro na Inglaterra.

Dito isso e refletindo agora sobre alguns avanços e retrocessos obtidos pela comunidade negra brasileira no passado recente, começo dizendo que em 2018 publiquei um breve Relatório de Políticas Públicas (em inglês, Policy Brief) chamado Formas Contemporâneas de Racismo e Intolerância nas Redes Sociais.

Derivado diretamente de minha tese de doutorado em sociologia, defendida no mesmo ano, este relatório revelava e, acima de tudo, denunciava, que as principais vítimas de discursos de ódio de cunho racista nas redes sociais são mulheres negras jovens em ascensão social.

Além disso, o documento sinalizava também alguns caminhos e alternativas possíveis para o combate a este sério e preocupante fenômeno social.

Dois anos depois, publiquei meu primeiro livro sobre esta mesma temática, intitulado No Laughing Matter: Race Joking and Resistance in Brazilian Social Media (Não é tão engraçado assim: raça, humor e resistência nas redes sociais brasileiras, em tradução livre).

Este trabalho é também um subproduto de minha tese de doutorado, e um de seus aspectos mais marcantes consiste na revelação de que, em muitas circunstâncias, os discursos de cunho racistas são convenientemente camuflados em piadas depreciativas. Constatação esta que dialoga diretamente com a fundamental produção do professor Adilson Moreira em seu livro Racismo Recreativo.

Na sequência, já em 2022, publiquei Discurso de Ódio nas Redes Sociais, obra esta que “bebeu” na fonte de meus trabalhos precedentes mas que também trouxe muita coisa nova como, por exemplo, uma clara argumentação expondo como as corporações por trás das plataformas de redes sociais lucram com o ódio.

No entanto, esta breve retrospectiva de minha produção acadêmica não tem por objetivo de ressaltá-la, mas sim primordialmente de evidenciar dois aspectos mais importantes e não salientes à primeira vista.

Em primeiro lugar, tanto minha produção acadêmica quanto outras dezenas igualmente relevantes surgidas no passado recente nos alertam sobre o quanto ainda temos de resistir, caminhar e avançar para atingirmos maior equidade racial no Brasil.

Lamentavelmente, o país enfrentou inúmeros retrocessos em muitas áreas ao longo dos últimos quatro a seis anos (educação, saúde, segurança alimentar, direitos trabalhistas, violência contra mulheres, proteção ao meio ambiente, etc.). Retrocessos esse alimentados sobretudo pela predominância de um discurso de ódio sem precedentes em nossa história, muito negacionismo e por um desejo de reescrever a história de acordo com míopes conveniências político-partidárias momentâneas.

Como consequência deste cenário geral, é possível inclusive compreender com um pouco mais de clareza porque os discursos de ódio de cunho racistas emergiram e proliferaram com tanta força ao longo destes últimos anos no Brasil, conforme revelado tanto em meus livros e artigos quanto de diversos(as) outros(as) autores(as).

Na medida em que o discurso de ódio emana de autoridades públicas, tem-se a institucionalização e naturalização desta prática, de tal forma que o(a) cidadão(ã) comum se vê legitimado(a), “autorizado(a)” e “no seu direito” de também destilar ódio e intolerância contra qualquer pessoa.

Inclusive, prova inconteste deste quadro é o fato de termos tido um dos mais virulentos e agressivos processo eleitoral de nossa história, que envolveu não só violências verbais nas redes sociais, mas também o uso de arma de fogo em plena luz do dia.

Por outro lado, o segundo aspecto relevante que quero ressaltar neste artigo é de cunho mais positivo e empolgante. Apesar dos retrocessos sinalizados, no passado recente vimos emergir também com uma força incrível um amplo leque de produções literárias negras de ficção e não-ficção.

Vimos, por exemplo, o surgimento de uma inédita coleção de livros temáticos abordando diferentes aspectos, dimensões e facetas do racismo à brasileira e todos os títulos encabeçados por autores(as) negro(as). A Coleção Feminismos Plurais já está em seu 13º título e, muito provavelmente, não deve parar por aí.

Testemunhamos também o desenvolvimento de um novo campo de análise das relações étnico-raciais brasileiras em tempos de internet, chamado de racismo algorítmico através dos trabalhos do pesquisador Tarcísio Silva e de outros expoentes nesta disciplina emergente.

Tivemos também ao longo deste período, uma escritora negra, a filósofa Djamila Ribeiro, autora de um livro sobre racismo (Pequeno Manual Antirracista) figurando no topo da lista de títulos mais vendidos no Brasil no ano de 2020.

Além disso, depois de dois anos de distanciamento social por conta da pandemia, eventos internacionais como a Flipelô 2022 em Salvador, conforme relatado em envolvente artigo da jornalista Mariana Vilela, escancararam toda a força da produção literária negra brasileira e africana. Afinal de contas, fazer literatura também é um ato de resistência e, mais ainda, de dar vazão a vozes mais plurais.

Fora do mundo das letras, houve avanço no empreendedorismo negro em diversas áreas de atuação e o fortalecimento do Black Money, sem contar inúmeras iniciativas que nem sempre ganham visibilidade, mas nem por isso são menos importantes, pois geram impactos significativos em suas comunidades.

Enfim, todas estas conquistas (e inúmeras outras não contempladas neste artigo) são muito importantes e representam sinais positivos de mudanças e transformações.

Contudo, ainda existe muito trabalho a ser feito e não podemos descansar e relaxar sobre os louros destas conquistas. É preciso continuar a pavimentar o caminho por onde passarão as gerações futuras de negros(as) para que eles(as) não tenham de encarar as mesmas dificuldades, limitações e desafios que nossos antepassados enfrentaram e que nós continuamos a enfrentar na atualidade.

Lamentavelmente, a comunidade negra ainda permanece invisibilizada em muitos espaços sociais e alijada da maioria dos espaços de poder, decisão e produção de conhecimento, conforme abordei em outro artigo (A “cor” do conhecimento na mídia brasileira).

Portanto, não obstante o relevante valor simbólico do dia 20 de novembro a consciência negra precisa nos acompanhar não só nesta data específica, mas ao longo de todos os demais dias de cada ano. Isso nos remete, inclusive ao argumento defendido tanto por Djamila Ribeiro quanto por Angela Davis, no sentido de que não basta não ser racista, é preciso também ser antirracista.

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