uma tradução de virginia brindis de salas

ma njanu
7 min readMay 16, 2020

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poema-ensaio

CANÇÃO AFROURUGUAIA DE UM POEMA AFROBRASILEIRO

Teus olhos,
Virginia,
em teu olhar
recordo as asas negras
de minha mãe

quantos amores
respostas
saídas e o calor
do sangue
que passeia por
nossas veias
tu não escreveria?

tão longe de ti
no tempo
em casa
no rio da prata
contigo
eu dancei

sorrindo a descoberta
do candombe e
o avô que nunca
conheci
foi você a me
fazer pensar
nas memórias que
escondi

Me dá teus pés,
Virginia,
deixa que a juventude
destes dedos
suavizem o peso
da poesia
não escutada

sete décadas
e nenhuma revolução
a não ser das nossas
mãos negras
tão semelhantes,

meu coração para ti,
a justiça que demora
é certa

o menino falará do teu
canto,
a menina também
e dirá coisas
do sul sem
mencionar a
palavra
raiva.

Dedico este poema à Virginia Brindis de Salas, principal poeta afrouruguaia e a primeira mulher negra em nosso continente a publicar um livro de poemas. Comecei a pesquisar sua obra durante este período de isolamento social e me deparei com duas de suas publicações Pregón de Marimorena (1946) e Cien Cárceles de amor (1949), ambas sem tradução para o português. Há menção a uma terceira obra, Cantos de Lejanía, mas que nunca fora publicada.

Sem falar que há raríssimos registros em nossa língua sobre sua vida e obra. Pesquisando nos arquivos de domínio público do Uruguai, bem como de entusiastas e admiradores da sua escrita, descobri que esta mulher, tão talentosa e vanguardista, foi também vítima do racismo colonial de uma forma a resultar na invisibilidade que hoje se tem sua poética.

A poeta afrouruguaia trabalhou durante algum tempo como doméstica de uma importante poeta branca uruguaia que, apesar de aparentar ser sua amiga, foi uma das responsáveis por incutir em Virginia uma insegurança sobre sua capacidade de ser uma escritora, uma vez que era uma mulher negra e pobre. [Evito citar seu nome aqui, principalmente por respeito à memória e ao trabalho de Brindis de Salas, e por não objetivar divulgar (mais ainda) a literatura de pessoas brancas, que já têm seus meios e cânones de divulgação].

Outra tentativa de invisibilizar sua obra foi realizada por um crítico uruguaio que ao organizar uma antologia de poetas negros uruguaios não citou Virginia Brindis de Salas, alegando inclusive que o Pregón de Marimorena não havia sido de sua autoria, fato que não pode ser confirmado e é rechaçado por pesquisadores empenhados no estudo da sua obra, como Richard L. Jackson, Marwin A. Lewis (2003) e a estudiosa Caroll Mills Young (1993), que conclui ser fato a autoria de Brindis de Salas da sua própria obra (!!!) [coisas misteriosas que não ocorrem muito pra branquitude].

Brindis de Salas nasceu em Montevideo, em 18 de setembro do ano de 1908 e foi muito atuante no movimento negro afrouruguaio entre os anos de 1939 até sua morte em 06 de abril 1958 na Argentina. Foi uma das fundadoras e colaboradoras do jornal Nuestra Raza, periódico dirigido por alguns poetas afrouruguaios, como Pilar Barrios. Conhecido por difundir e propiciar o ativismo político e social do movimento negro e das favelas do Uruguai, contribuindo com publicações de poetas negres, bem como em relação à denúncia das condições miseráveis às quais viviam o povo uruguaio de cor e das classes mais baixas.

Ela foi uma líder intelectual, poeta aclamada e grande figura do Círculo de Intelectuais, Artistas, Periodistas e Escritores Negros (CIAPEN), fundação uruguaia criada e organizada pelo movimento negro afrouruguaio em 1946.

Lendo alguns textos críticos, ensaios sobre sua vida, bem como seus poemários, é de se saber que Brindis de Salas foi uma das primeiras poetas amefricanas a difundir uma espécie de literatura marginal.

Virginia Brindis de Salas foi uma vanguardista a tratar da literatura negra afrodiaspórica com uma riqueza e destreza imensa de imagens, que dispensam as menores alegorias; a respeito da nossa identidade tanto racial e social, como de gênero — fato extremamente inovador considerando o contexto patriarcal herdado das formações coloniais. Em suas poesias se observam a força da identidade afrouruguaia e a preservação de seus patrimônios culturais, costumes e tradições trazidas durante sua migração forçada em decorrência da escravidão e domínio colonial espanhol.

Assim como outros poetas que oxigenaram a poética negra desse lado do Atlântico no século passado, a exemplo do grande Solano Trindade aqui no Brasil, Brindis de Salas foi o principal nome da literatura afrodiaspórica no Uruguai.

Sua poesia é incrivelmente bonita, me atravessa com uma velocidade, calor e permanência sem igual e por isso também eu resolvi traduzir alguns poemas dela aqui, que estão no Pregón da segunda edição de 1952. Não apenas pelo fato urgente de guardar, com o respeito devido, sua memória, mas principalmente pela obsessão a qual tenho sido tomada com sua leitura, escrita e oralidade. A felicidade por lê-la é imensa.

Sinta meu abraço, Virginia.

Beijo seus pés!

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Boa leitura!

Virginia Brindis de Salas

poemas traduzidos

MADRIGAL

Tú miras mi carne morena
con ojos que son dos ascuas;
quisiera ser una fuente
donde escancies sed de ansias.

Quero quemar la sangre
de mis venas en el trópico
de tu frenesí trashumante.

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MADRIGAL

Você olha minha carne negra
com olhos que são duas brasas;
eu queria ser uma fonte
onde você sacia seus desejos.

Eu quero queimar o sangue
das minhas veias nos trópicos
do teu delírio nômade.

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SEMBLANZA

¿De dónde provienes tú
pasionable y exaltada?

Tu sangre vió los ardores
de la Nigeria especiante.

Convada
y de ébano arrogante
el mapa de tu mirada.

Tus axilas aromadas
vegetación de la seiba.

Paso de culebra
tus caderas,
muchacha negra.

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SEMELHANÇA

De onde tu vens
apaixonada e exaltada?

Teu sangue viu os fervores
da Nigéria apimentada.

Curvado e de ébano altivo
o mapa do teu olhar.

Tuas axilas perfumadas
a vegetação da seiva.

Passo de serpente
teus quadris,
garota negra.

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PREGÓN NUMERO UNO

Toma mi verso
Marimorena
yo sé que lo has de beber
como una copa de alcohol,
a cambio de él
quiero tu angustia
Marimorena.

Quiero tu angustia,
quiero tu pena,
toda tu pena
y el tajo de tu boca
cuando ríes
como una loca
Marimorena,
toda ebria
más que de vino,
de miseria.

Tu voz,
que nunca arrulló
a tus hijos
ni a tus nietos
y es voz de paria
arrulla mimosamente
toda la prensa diaria.

Y no hay quien te haga callar
por dos vintenes un diario
no hay quien deje de comprar
para aliviar tu sudario.

Déjame ver tu cara
Marimorena,
que la atención acapara
causando lástima y pena.

Cuánto te deben
Marimorena,
esos que escriben
y que tú pagas
con tus vintenes,
con tus pregones,
por la mañana
y por la tarde
miles de veces;
en cambio tú
pagas con creces;
su periodismo,
su propaganda politiquera
todais sus lacras, su egoísmo,
sus fementidas torpes carreras.

Marimorena
todos los días vende los diarios;
tiene una pena
Marimorena
y es su sudario.

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GRITO NÚMERO UM

Aceite meu verso
Marimorena
eu sei que tens de bebê-lo
como um copo de álcool,
em troca disso
quero a tua angústia
Marimorena.

Quero tua angústia
quero tua dor,
toda a tua dor
e o corte da tua boca
quando você ri
como uma louca
Marimorena,
toda bêbada
mais do que de vinho:
de miséria.

Tua voz,
que nunca embalou
seus filhos
nem seus netos
é a voz marginal
que aconchega
toda notícia da cidade.

E não há quem te faça calar
um jornal por dois trocados
não há quem pare de comprar
para aliviar teu cansaço

Deixe-me ver teu rosto
Marimorena,
que se chama a atenção
causando tristeza e piedade.

Quanto eles te devem
Marimorena,
aqueles que escrevem
e que você está pagando
com seus trocados,
com seus gritos
pela manhã
pela tarde
milhares de vezes;
você paga muito bem
e com lucro:
seu jornalismo,
sua propaganda política,
todas suas cicatrizes,
seu egoísmo,
suas ilusórias correrias desastradas.

Marimorena
todos os dias vende os jornais;
há uma sentença nisso
Marimorena
e é a sua morte.

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TRADUÇÃO: Ma Njanu

Referências:

BRINDIS DE SALAS, Virginia. Cien cárceles de amor. Montevideo: Compañía Editorial S. A., 1949.
---. Pregón de Marimorena. Montevideo, Sociedad Cultura Editora Indoamericana, 1952 [1946].

BRITOS SERRAT, Alberto. Compilador. Antología de poetas negros uruguayos. Tomos I-II. Montevideo, Mundo Afro, 1990-1996.

DÍAZ, José Enrique (Setiembre de 2012). Disponível em: «Historia de CIAPEN (Circulo de Artistas, Intelectuales, Periodistas, escritores y Poetas)»

GORTÁZAR, Alejandro. Realismo, politica y poesía en la obra de Virginia Brindis de Salas. Disponível em: https://bibliotecanacional.gov.co/es-co/colecciones/biblioteca-digital/poemas-y-cantos/Paginas/03-ensayos.html?id_poeta=Virginia_Brindis

LEWIS, Marvin A. “Resistance and Identity in Afro-Uruguayan Poetry”. Afro-Uruguayan Literature. Post-Colonial Perspectives. Cranbury, Bucknell University Press, 2003, pp. 78-103.
ORONOZ, Isabel. Rompiendo silencios. Montevideo, Cabildo, 2013.
Rocca, Pablo. “Las rupturas del discurso poético (de la vanguardia y sus cuestionamientos, 1920-1940)”. Historia de la literatura uruguaya contemporánea. Tomo II: la literatura en movimiento (poesía, teatro y otros géneros) . Pablo Rocca y Heber Raviolo. Directores. Montevideo, Banda Oriental, 1996, pp. 9-59.
YOUNG, Carol. “Virginia Brindis de Salas vs. Julio Guadalupe: A Question of Authorship”. Afro-Hispanic Review 12-2, Fall 1993, pp. 26-30.
---. “The new voices of Afro-Uruguay”. Afro-Hispanic Review 14-1, Spring 1995, pp. 58-64.
---. “Voicelessness to Voice: Womanist Writers of the Black Uruguayan Press”. Afro-Hispanic Review 23-2, Fall 2004, pp. 58-64. (Com tradução parcial de San Gois).
---. Virginia Brindis de Salas (1908-1958). WILLIS, Mirian DeCosta. Daughters of the diaspora: afra-hispanic writers.(2003). p.2-24. (Tradução de San Gois).

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