felicitaciones, virginia

ma njanu
6 min readSep 19, 2020

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uma tradução-presente

Unguet segurando o retrato de sua mãe, imagem da Internet com intervenção minha, autoria: Veronica Caballero.

Num dia como esse, há 112 anos, provavelmente sob ventos gelados que anunciam a chegada do fim do inverno no Sul do continente, nascia a segunda* mulher ladinoamefricana negra a publicar um livro de poesia. Seu nome será Virginia e sua poesia marcará nossa memória e experiência afrodiaspórica de tal forma, pois que se dedicou a transformar o olhar do povo negro uruguaio sobre seu passado, reivindicando o lugar poderoso e ancestral não só da palavra, mas da organização política.

Na sua obra Pregón de Marimorena, cada grito é uma poética para o Atlântico negro: do suspiro, punho erguido, corpo vivo, coletivo e forte. A linguagem fazedora de aquilombamento, resistência cultural e denúncia contra o racismo, a colonização, o capital, o sexismo, a hipersexualização da mulher negra e a condição da classe trabalhadora uruguaia, especialmente dos povos marginalizados. Pois é no lugar da favela, “dos bairros populares”, em sua obra, que Marimorena revive a noite dos subúrbios, onde “danzan corazones turbios para que otros vivan” (dançam corações turvos para que outros vivam) e prega a esperança senão de dias, mas de noites melhores.

Candomberos, autoria desconhecida.

As diversas matizes da obra de Brindis de Salas, tendo escrito entre 1950 e 1972, marca as gerações posteriores, abrindo caminho para que outras poetas negras reconheçam a importância de reescrever a história e enfrentar o monstro do silenciamento e invisibilidade, como também Audre Lorde nos ensinou, porque sabia que no exercício da fala, interditada pelas inúmeras tentativas coloniais, contém segredos fundamentais de libertação.

Quando conheci sua poesia, me vi no desafio de partilhar, através da tradução, seus escritos com pessoas queridas e próximas da literatura periférica, porque, não obstante a distância territorial, Brindis de Salas é uma mais velha da poesia marginal, a qual precisamos tomar-lhe a bença. Na perspectiva poética da relação (GLISSANT, 2005), o ouvido que fala manifesta a língua, assim como a boca que ouve e os olhos que tocam a linguagem, recria uma nova realidade, sem diluir o outro. Neste sentido, a diáspora é, ou melhor, está em processo de relação onde eu emirjo na obra de Brindis de Salas sem sair de mim e sou permeada por ela sem que ela mesma deixe de sê-la. Nos prolongamos uma na outra.

A tradução, este ato de leitura sentinte e atenta, pela qual somos transformades expressa a maneira como a relação entre poeta e leitore se constroi horizontalmente; e se coloca no caos-mundo, totalmente à risca da imprevisibilidade. Ler em outra língua e traduzi-la passa a ser uma espécie de aproximação intensa, de análise, quase como sentar ao lado da criadora do poema e lhe olhar no mistério. É nesta imprevisibilidade, por exemplo, que ao traduzir Unguet, poema dedicado à sua hija, tive de transformar os últimos versos para que quem não compreende a ideia de “bisavô” ou o “Abuelito / gramillero”, cuja função no candombe é de mantenedor da memória coletiva e histórica do passado de seu povo; pudesse sentir, mesmo assim, a força atravessadora de fronteiras da ancestralidade amefricana, cuja categoria traz implicações políticas e culturais “para um entendimento mais profundo dessa parte do mundo onde ela se manifesta” (GONZÁLEZ, 1988, p. 76-77).

Não creio que isso se enquadre como a bendita “traição” tão falada entre grupos de tradutores, do qual, aliás, não faço parte. Não sou eu uma tradutora, mas, assim como Virginia, uma poeta que grita.

Segue o poema,

UNGUET

Tu corazón
arrulla, como el caracol
la vida del mar,
el patio y el zaguán
de nuestra casa.

Unguet,
quién te viera pasar
como una vara de mimbre
en el tembladeral.

Niña mi niña
recental de viejos seres
nacidos en la manigna.

Cuando tú puedas contar
lo que tus ojos vieron;
cuando tú puedas cantar
lo que tus oídos oyeron,
como el caracol
el susurro del mar.

Qué lejano mar,
para tu inquietante andar
Unguet,
como una vara de mimbre
hija del viento
en el tembladeral.

Y que tú puedas decir
Benguela o Mozambique
sin tener que maldecir
el barco que se va, a pique.

Unguet,
hija sureña;
en el invierno
frío,
en el verano,
estío,

La vena tropical
de bisabuelo
seca y ancestral.
Este es tu suelo.

_______________

UNGUET

Teu coração
arrulha, como o caracol
a vida do mar
o quintal e o saguão
de nossa casa.

Unguet,
quem te visse passar
como uma vara de vime
no terremoto.

Menina
minha menina
recental de antigos seres
nascidos na manigua**.

Quando tu puderes contar
o que teus olhos viram;
quando tu puderes cantar
o que teus ouvidos ouviram,
como o caracol
o sussurro do mar.

Que mar distante,
para teu perturbador andar
Unguet,
como uma vara de vime
filha do vento
no terremoto.

E que você possa falar
Benguela ou Moçambique
sem ter que amaldiçoar
o barco que se vai a pique.

Unguet,
filha do sul;
no inverno
frio,
no verão,
estio,

A veia tropical
seca e ancestral
da memória.
Esta é tua história.

* ERRATA: pesquisando sobre a obra de Virginia Brindis de Salas, vi num site de referências negras e em alguns outros textos, que ela teria sido a primeira mulher negra a publicar uma coletânea de poemas na América do Sul. Algo que incorporei no pensamento — até por confiar nas minhas fontes de pesquisa. No entanto, depois da provocação de uma leitora — fui pesquisar sobre Maria Firmina dos Reis.

É muito afirmado em sites e outros arquivos que ela foi a primeira romancista negra brasileira, e isto é bem verdade, nós sabemos. No entanto pouco vi falar sobre sua antologia de poemas “cantos à beira-mar”, que só vim conhecer hoje, já tô lendo e pode ser a primeira a ter sido escrita neste continente.

Veja, em 1871 Brindis de Salas ainda não era nascida, mas aqui no Nordeste, lá no Maranhão esta senhora atuava em periódicos, participou ativamente da imprensa maranhense, escreveu romance, contos, se alfabetizou sozinha…e escreveu Cantos à beira-mar. Talvez algumas outras pretas escreveram livros, antologias na mesma época de Firmina e Virginia, ou até mesmo antes, mas por algum motivo (!) ainda não sabemos.

“Cantos à beira-mar, publicado originalmente em 1871, é dedicado à memória da mãe de Maria Firmina dos Reis e conta com cinquenta e seis poesias, das quais o próprio título da obra indica os caminhos percorridos em muitas delas, como não poderia ser diferente. Sendo Guimarães uma cidade litorânea, onde Maria Firmina dos Reis passou grande parte de sua vida, o mar e a praia são presenças marcantes nas poesias, esta última transformada em lugar de beleza, meditação ou melancolia, como pode ser verificado nos poemas “Uma Tarde no Cumã”, “Nas Praias do Cumã” (p. 127). “Cismar” (p. 118), “Itaculumim” (p. 119), “Meditação” (p. 125), “Melancolia” (p. 61), entre outros, nos quais o ambiente da praia, por vezes, aparece como o lugar propício para a reflexão em torno dos próprios sentimentos e anseios” (trecho de Jéssica Catharine Barbosa de Carvalho).

** manigna ou manigua, em América Latina e Caribe, se refere à vasta e pantanosa extensão do campo, onde viveram os povos originários e campesinos, com outras perspectivas de existência e relação com a terra, a água, a mata e toda a natureza, em sentido contrário à civilidade ocidental. Um exemplo conhecido é o oeste cubano, formado em grande parte de ascendência africana, onde estes povos construíram sua vida, cultura e luta revolucionária contra a colonização agrária.

Referências

BRINDIS DE SALAS, Virginia. Pregón de Marimorena. Montevideo, Sociedad Cultura Editora Indoamericana, 1952 [1946].

DÍAZ, José Enrique (Setiembre de 2012). Disponível em: «Historia de CIAPEN (Circulo de Artistas, Intelectuales, Periodistas, escritores y Poetas)».

GLISSANT, Edouárd. Introdução a uma poética da diversidade. Editora: UFJF, .2005

GONZÁLEZ, Lélia. A categoria político-cultural de amefricanidade. In: Tempo Brasileiro. Rio de Janeiro, nº 92/93, p. 69–82, jan./jun. 1988.

GORTÁZAR, Alejandro. Realismo, politica y poesía en la obra de Virginia Brindis de Salas. Disponível em: https://bibliotecanacional.gov.co/es-co/colecciones/biblioteca-digital/poemas-y-cantos/Paginas/03-ensayos.html?id_poeta=Virginia_Brindis

ORONOZ, Isabel. Rompiendo silencios. Montevideo, Cabildo, 2013.
Rocca, Pablo. “Las rupturas del discurso poético (de la vanguardia y sus cuestionamientos, 1920–1940)”. Historia de la literatura uruguaya contemporánea. Tomo II: la literatura en movimiento (poesía, teatro y otros géneros) . Pablo Rocca y Heber Raviolo. Directores. Montevideo, Banda Oriental, 1996, pp. 9–59.

— -. Virginia Brindis de Salas (1908–1958). WILLIS, Mirian DeCosta. Daughters of the diaspora: afra-hispanic writers.(2003). p.2–24. (Tradução de San Gois).

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