Feminismo Negro e a Miopia Sobre a Masculinidade Negra

Qual é e de onde vem essa masculinidade negra que você conhece? O que você conhece do homem negro?

Táíwò Òkòtó
6 min readFeb 17, 2019

O que vocês conhecem do homem negro? Vou dizer: nada! Ou muito pouco. Bem pouquinho mesmo. O problema da discussão da masculinidade que vem se levantando agora é que ela parte de um conhecimento de masculinidade por apontamento, por denúncia, muito influenciado por uma teoria onde o homem é o outro. Pra piorar, essa denúncia vem bastante viciada, com o vício do racismo. Aí pergunto: qual a masculinidade negra que você conhece? A partir de quem você a conhece? É de exaltação?! Não!! Sempre de denúncia! Mas como você sobrevive a mais de 500 anos de massacre direcionado primeiramente a corpos masculinos e não tem nada de positivo? Como pode isso? Alguma coisa errada não tá certa por aqui, e tem nome: feminismo, feminismo negro inclusive.

O que vocês conhecem do homem negro? O que lhes vem à cabeça ou quais as últimas que ouviram sobre o homem negro? Provavelmente algo como: aquele que não tem compromisso com a família; aquele que bate em mulher; aquele que prefere as brancas. Resumindo: o homem negro que não tem zelo nenhum pelas mulheres, mulheres negras, pela família, pelos seus. O homem negro é conhecido pelo que tem de pior, apenas. É resumido a isso. O homem negro que se conhece é o que não tem nada de positivo. O homem negro que só quer saber de si, não estando aí pra nada, nem pra vida. Muitas das narrativas dizem que homem negro não tá nem aí pra própria vida, que “o homem preto não tá se esforçando”.

Lukaku, que numa entrevista emocionante contou sobre sua saga no futebol e sua relação com a promessa feita ao pai de cuidar de sua mãe.

Mas peraí, vocês viram a entrevista do Lukaku, na ocasião da Copa do Mundo? O que esse homem não fez pela sua mãe?! Ele não é um homem negro?! Sim! É um homem negro, que, como muitos outros jogadores de futebol, qual a primeira coisa que busca fazer quando ganha dinheiro? Ajudar a mãe, ajudar a família. Foi o que ele fez. E vamos daí para os sinais/semáforos da vida. Têm cor, e tem gênero. Os cruzamentos, as encruzas, são pretas e masculinas, bem como as ruas, em geral. Os moleques ali, como eu tive um dia, como os camelôs, estão pra sustentar família. E vou falar pra vocês, estão se expondo a todo tipo de perigo pra sustentar a família. A rua é muito assassina. Vi um post sobre os meninos da candelária e o destino dos que não foram mortos naquele dia. A rua é terra de ninguém. Quem ali está, está por própria conta e risco desde menino. Está sozinho. Fazendo o que? Se virando como podem pra sustentar a família. Isso pra quem tem família. Quem não tem, se virando pra sobreviver aos dias. Chamando a responsabilidade de cuidar de si, não tendo mais ninguém pra lhe cuidar. O pequeno se faz grande. Menino se virando como pode pra ser homem. Um menino, responsável pela sua vida e por segurando as pontas pra sustentar a família.

Se a rua é assassina, o morro também é. Saiu uma reportagem sobre o perfil de quem está no tráfico. São menores, que também entram pra sustentar a família. 92% são do sexo masculino, uma taxa que é praticamente a mesma pra quando se trata de encarceramento e genocídio. E um exemplo marcante sobre o tráfico é o do Nem da Rocinha. Vocês leram sua entrevista? Então leiam. Leiam seu relato de que entrou para o tráfico para poder conseguir recursos para tratar da doença da filha. Vejam também os casos dos rappers Tupac e Notorious BIG — tem um doc no Netflix — que primeira coisa que fizeram quando conseguiram grana foi bancar uma casa bacana para suas respectivas mães. Ó aí esse homem que não quer saber de ninguém, que não cuida da família. Curiosamente, se dedicando a figuras femininas, mulheres negras.

Existem muitos exemplos de esforço, de dedicação masculina, de masculinidade positiva. Mas não é vista. É ignorada. E, recorrentemente, quando aparece um homem negro fazendo algo de bom também recebe, em forma de crítica: ah não fez mais que a obrigação.

Não passou da hora de questionar esse conhecimento quase exclusivo de uma masculinidade por denúncia, vinda de ressentimentos?

Ah, vocês lembram do vídeo do Kevin Durant também, de um tempinho atrás, falando de sua mãe? Todo mundo ficou com um cisco no olho, não foi? Portanto, pergunto de novo: que masculinidade vocês conhecem? Não passou da hora de questionar esse conhecimento quase exclusivo de uma masculinidade por denúncia, vinda de ressentimentos? Pois como disse: como se sobrevive como alvo número 1 do maior processo de genocídio da história e não se tem nada de positivo? Se questionem sobre isso. Se questionem sobre como — até mesmo como povo — a desvalorização do que somos está diretamente ligadas ao que fazem com a gente. Desvalorizar é ajudar a matar. Desvalorizar é desumanizar. Vender que alguém não tem nada de positivo é ajudar a preparar o terreno. Quem não tem nada de positivo não faz falta, se faz descartável. Todos em relação “àquilo” ficam dessensibilizados. Pensemos nisso.

Até o direito de nos expressarmos sobre problemas que também são nossos nos é tirado. Até pouco tempo, era motivo de piada falar de alguns sofrimentos, como dizer que a solidão do homem negro também existe. Uma dura verdade. Duas duras verdades: 1) a solidão em si e 2) sua negação.

O que eu vejo é que quem tá chegando, quem está galgando, está colocando a realidade mais dura em segundo plano em prol das próprias necessidades. O que eu vejo é que quem tá chegando — na universidade — tá se desligando fácil e caindo em conversa de branco, e o ajudando, no mínimo por displicência. As pessoas estão resumindo o mundo negro e seus problemas aos locais onde elas chegam e ao que se limitam ver. Estão a pensar o mundo pelo próprio umbigo. Pegaram as manias dos brancos e, sobre nós mesmos, estão reproduzindo.

“Despositivar” é ajudar a matar. Ajudar na narrativa que só enxerga o homem negro como vilão é ajudar a matar

Vejam que ajudar a invisibilizar, não apoiar, não dar voz, nem ouvidos, é ajudar a matar. Desumanizar é dessensibilizar, que também é ajudar a matar. “Despositivar” é ajudar a matar. Ajudar na narrativa que só enxerga o homem negro como vilão é ajudar a matar. É pesado! Mas é verdade. Como assim chegar e não olhar pra margem? Como assim chegar e se fazer mais um a recriminar a margem? Vamos lá, moçada. Vamos nos repensar. De qual lado a gente está?

Junto à pergunta sobre o que você conhece do homem preto, quero perguntar também a vocês que são tidos por militantes, quantas pessoas vocês conhecem que tenham sido do tráfico ou da rua — onde a ampla maioria é homem? Conhecem alguma? Com certeza, vocês passam por muitas todos os dias. Nem olham, né? Invisíveis. Ou melhor, invisibilizados. Como também não são marginais, são marginalizados. Por quem? Pela gente também. Estamos tão fixados no branco e em chegar no branco que esquecemos de nós. Ninguém se preocupa com aquela voz, que precisa também, até mais que a gente, ser ouvida. Pois é, essa voz não tá chegando. E se chega é em terceira pessoa, que pegou a primeira como objeto e a analisou dentro de uma ótica específica, própria. É o que sempre fizeram com a gente. Estamos fazendo o mesmo com a gente. Aí vai dar ruim né… já tá dando.

Enfim, pra fechar, voltemos a nos perguntar o que conhecemos do homem negro? O que conhecemos de positivo sobre o homem negro? De onde vem o que conhecemos do homem negro? Você não praticamente só ouve e vê coisas negativas sobre o homem negro? E quais os maiores vetores de propagação dessa visão? O racismo e o feminismo negro. Prestem muita atenção nessa intersecção, racismo e feminismo negro. Eles têm andado juntinhos. O homem negro que conhecemos foi pintado pelo racismo e pelo feminismo negro, e o quadro é o mesmo, um homem negro sem valor. E se pedirmos pra você elencar o que você pode falar ou tem ouvido sobre o home negro de positivo, garanto que lhe será difícil.

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