O que há por trás da mendicância no transporte público?

Mailsom Portalete
9 min readJan 18, 2017

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Série de reportagens especiais investiga as motivações que levam ao comércio informal no transporte metroviário

“Qualquer moeda ajuda”, dizem aqueles que pedem auxílio aos passageiros, ao longo das viagens realizadas pela Trensurb. (Foto: Kálita-Ruama)

“Olá, senhores, desculpe interromper a sua viagem. Meu nome é João, e estou vendendo essas balinhas de goma e torrones para ajudar no sustento da minha família. Quem não quiser ou não puder adquirir, também pode estar me ajudando com qualquer moedinha de cinco ou dez centavos. Desde já eu lhe agradeço, que Deus lhe abençoe, tenham todos uma boa viagem.”

Quem costuma usar o transporte metroviário em Porto Alegre ou em alguma das outras cinco cidades do percurso — Canoas, Esteio, Sapucaia do Sul, São Leopoldo e Novo Hamburgo — certamente já ouviu a fala acima. O discurso, criado não se sabe quando nem por quem, é repetido à exaustão por dezenas de ambulantes, que trocam freneticamente de vagões e de trens durante as viagens.

Pedintes, comerciantes, integrantes de ONGs, músicos, pessoas sem condições de bancar tratamentos de saúde e até crianças encontraram nos carros e estações da Empresa de Trens Urbanos de Porto Alegre S. A. (Trensurb) um modo de sustento.

Entre os vendedores ambulantes, o desemprego é relatado como a maior causa da situação. Numa prática perpetuada através das gerações, a exemplo dos próprios pais, crianças e adolescentes vendem seus produtos com a autorização e assistência dos progenitores. Cidadãos portadores de enfermidades ou responsáveis por crianças com doenças raras pedem esmola, alegando que o poder público não cumpre o seu papel de assistência social.

Crianças atuam como vendedores de bala nas estações. (Foto: Mailsom Portalete/Beta Redação)

Manda a lei da oferta e da procura que um mercado só se sustenta havendo um produto para ser vendido e um público consumidor. Mas entre os usuários dos trens não há um consenso: afinal, ao mesmo tempo em que há consumidores, existem pessoas que se incomodam com a presença indesejada dos ambulantes.

O comércio popular sempre foi uma realidade brasileira, principalmente dos grandes centros. Dados da Secretaria Municipal da Produção, Indústria e Comércio (Smic) de Porto Alegre apontam 830 ambulantes cadastrados e com alvará válido — a maioria no Centro Popular de Compras do Centro Histórico, o Pop Center.

Só na Capital, por exemplo, foram apreendidos, em 2015, mais de 14 milhões de mercadorias — na maior parte, DVDs de filmes. Já em 2016 foram contabilizados até o momento pouco mais de 900 mil itens, dos quais a maioria é de vestuário.

Mas a Trensurb se torna um foco da atuação desses trabalhadores devido à alta circulação e concentração de pessoas: só em 2015 a empresa transportou cerca de 57,5 milhões de passageiros. Por dia útil são transportados 185 mil pessoas, somando 4,7 milhões a cada mês — e todos possíveis “consumidores” do mercado informal, ainda que exista também o comércio regularizado nas plataformas da empresa.

Fixada em quiosques e lojas nas áreas de embarque e em galerias situadas no interior das estações, esta outra categoria de comerciantes foi legalizada por intermédio de licitação, publicada pela empresa. Atualmente existem 30 quiosques — todos ocupados — e 126 lojas, das quais 67 estão em funcionamento, nas 22 plataformas do transporte metroviário.

A política da Trensurb proíbe qualquer tipo de atividade não regularizada com fins lucrativos em suas dependências. A empresa classifica, de forma geral, a atuação dessas pessoas como comércio ilegal, irregular ou mendicância. O motivo alegado para a proibição é o incômodo gerado aos demais passageiros do metrô — reportado através de frequentes reclamações dirigidas à Central de Atendimento ao Usuário. Segundo dados da empresa, só em agosto foram registrados 33 casos de mendicância ou comércio ilegal; no entanto, a estimativa é que cerca de 50 pessoas realizem essas práticas mensalmente.

De acordo com a empresa, quando alguém é flagrado em ato de mendicância, a ação se resume à solicitação ao pedinte para que se retire do sistema, incluindo seu acompanhamento, até a saída, por agentes da segurança metroviária. Já nos casos de comércio indevido, a ação se diferencia de acordo com a cidade onde se dá a ocorrência. Este é o caso de Canoas: além do procedimento padrão, devido à existência de convênio com a prefeitura, o material comercializado é apreendido e encaminhado à Secretaria de Desenvolvimento Econômico do município.

Campanha tenta coibir o comércio irregular e a mendicância nos trens. (Imagem: Trensurb)

Ao longo das próximas semanas, uma série de matérias investigará o que está por trás do comércio ilegal e da mendicância praticada nas dependências da Trensurb, especialmente a partir das histórias de pessoas que convivem com essa realidade.

Douglas, por exemplo, é um rapaz que prefere vender seus produtos de modo informal do que ter um emprego padrão. Ele traz consigo um diferencial: afirma conseguir vender suas balas de goma e torrones em inglês, espanhol, francês e até japonês — cuja habilidade foi registrada em vídeo.

Já os irmãos Cristiano e Gabriel contam mais sobre sua trajetória musical: ambos tocam vários instrumentos e cantam, desde crianças. Atualmente desempregados, encontraram na paixão pela música um modo de sobrevivência — e a última alternativa que teria lhes restado.

Mas esta série inicia retratando dois casos opostos. De um lado, Rosa, uma jovem colombiana que diz ter vindo para o Brasil acompanhada do marido e da filha apenas com a renda das pulseiras artesanais que vende até hoje. Discreta ao vender seu artesanato, Rosa oferece cada pulseira por R$ 3 e não faz nenhum tipo de discurso. Ela evita trabalhar dentro dos trens, comercializando seu produto apenas nas estações.

Do outro lado, a observação da reportagem sobre o trabalho de Maria, um exemplo de como alguns ambulantes aproveitam-se da boa vontade alheia para ganhar dinheiro, utilizando apelos emocionais e encenando falsas dificuldades.

Rosa foge da Crise

Rosa tem 21 anos. Nascida na Colômbia, a moça vive de artesanato. Ela perambula pelo metrô levando embaixo do braço uma dúzia de pulseiras. Quase todas coloridas, algumas trançadas, outras de miçanga, e as clássicas com as cores da bandeira da Jamaica. Todas confeccionadas à mão. São vendidas a R$ 3 cada. A arte foi aprendida no país natal.

Ela é casada e é mãe. O marido, Luis, trabalha na construção civil. A filha, de cinco anos, está matriculada em uma escola de educação integral. A família reside em Canoas. “No meu país, morávamos em cidades diferentes. Eu não queria ir pra cidade do Luis e ele não gostava da minha. Além disso, a Colômbia estava vivendo uma crise muito forte, se trabalhava muito e ganhava pouco. Meu marido tinha amigos no Chile, então resolvemos nos mudar”, explica a jovem.

Viajavam a pé e de ônibus. De cidade em cidade, paravam por um ou dois dias em cada local. De acordo com a moça, o percurso foi demorado. “Saímos da Colômbia direto até o Peru. Depois de passar um tempo trabalhando por lá, fomos para a Bolívia, e só então entramos no Brasil. Nossa estadia na Bolívia foi longa, porque conseguimos um lugar bom para ficar. Mas era difícil trabalhar lá. Ganhava-se muito pouco”, narra a vendedora.

O casal tinha planos de seguir viagem. “Enquanto estávamos andando eu vendia pulseiras, e meu marido, balas e doces. Quando chegamos no Brasil a gente se revezava para cuidar da criança. Eu vendia num dia, ele no outro. Terminado nosso tempo aqui, a ideia era descer pelo Uruguai, Argentina, até nosso destino final, o Chile. Mas aqui percebemos que estava bom, e resolvemos ficar”, aponta.

A filha do casal fica na creche das 8h às 17h. Nesse horário é que a mãe percorre as estações do metrô na busca por clientes. “Gosto de vender nas estações de Porto Alegre pois têm bastante gente. E as pessoas curtem, eu vendo bem. Principalmente as meninas compram. Mas evito comercializar no interior dos trens porque não quero atrapalhar a viagem das pessoas. Além disso, já tem muitos que vendem e pedem dinheiro nos vagões. Na plataforma é mais tranquilo”, conta.

Na Colômbia, Rosa trabalhava como assessora de pensionatos. Luis sempre trabalhou de pedreiro. “Se for converter o valor que me pagavam na Colômbia daria uns R$ 20 por dia. E também lá não me davam vale-transporte nem auxílio-alimentação. Era muito ruim”, recorda.

Ao chegar na terra tupiniquim, a moça buscou emprego em diversos locais. Conseguiu atuar fazendo faxinas e em um grande restaurante da capital. “Eu não tinha documentos e eles me aceitavam nesses lugares. Eu trabalhava bastante, mas me pagavam direitinho. No mesmo estabelecimento havia dois rapazes da República Dominicana. Com eles a história era outra. Trabalhavam muito e ganhavam pouco”, observa.

De acordo com o relato da jovem, ela também já foi explorada por ser imigrante. “Teve uma época em que alugamos uma peça para morar. Nos exigiram o aluguel adiantado, mas tivemos que sair em 20 dias. Isso aconteceu porque ficavam mexendo nas nossas coisas, revirando as mochilas na hora em que não estávamos. Depois que começaram a nos roubar resolvemos procurar outro lugar”, lamenta.

Rosa nunca ficou sem trabalhar, mesmo que na informalidade. Em 2016 ela se viu obrigada a voltar a fazer pulseiras, pois não conseguiu mais deixar a filha na creche até as 19h, como nos anos anteriores. Com a venda do seu produto ela complementa a renda da família. “Eu faço esse trabalho para não sobrecarregar meu esposo. Varia bastante quanto eu ganho por dia, às vezes R$ 20 ou 30. Quando vendo bem tiro até R$ 60, mas no dia seguinte já baixa pra R$ 40. Não tenho nada garantido”, ressalta.

A estratégia dela é vender uma pulseira em cada estação, para fugir dos seguranças. Já Luis se mantém com o mesmo empregador desde que chegaram no Brasil, há dois anos. Segundo a colombiana, o rapaz sempre foi muito bem tratado e pago em dia. A renda média dele fica em R$ 450 semanais.

A família está regularizada no país. Conforme a imigrante, conseguiram fazer os documentos com a ajuda de uma igreja que os abrigou por um tempo e orientou a respeito da papelada. Atualmente, a família mora em uma residência cedida por uma integrante da instituição que os ajudou desde o começo. “Estamos mobiliando aos poucos”, conta.

Conforme Rosa, o casal tem carteira de trabalho, porém ainda não conseguiram a primeira assinatura. “Eu estou pensando em começar a vender bala. Tenho observado que vende mais fácil do que pulseira. Mas ainda não decidi”, pondera.

Falsidade de Maria

Porto Alegre, estação Mercado da Trensurb. No topo das escadarias que dão acesso à Avenida Júlio de Castilhos, quase na esquina com a Avenida Borges de Medeiros, avista-se uma jovem sentada no chão. Pele morena, cabelos pretos. Presos e desgrenhados. Em uma posição aparentemente desconfortável, a jovem, que aqui chamaremos pelo nome fictício de Maria, traz no rosto sem maquiagem um semblante sofrido. A expressão combina com a voz chorosa que apela: “Moço! Moço! Uma balinha de goma, ou 50 centavos pra me ajudar. Moço! Por favor?”.

Maria tem um porte médio, uns 60 quilos, e em torno de 25 anos. Ela prossegue seu coro sem interrupções, a não ser pelos “obrigada” proferidos a cada goma vendida ou esmola recebida, até ter a atenção chamada por um grito.

“Maria, eu tô indo embora. Pode ir pra lá agora, se quiser”, berra uma mulher magra, alta, de cabelos crespos e loiros, que traz uma criança de cinco anos em uma mão e uma sacola plástica na outra.

“Já vai?”, retruca a jovem do topo da escadaria.

“Sim, por hoje já deu, já. Tô cansada”, responde a loira, indo em direção às catracas.

“Lá” é o ponto ocupado pela loira para, também, vender balinhas de goma. Maria retoma a ladainha por mais alguns minutos.

São quase 17h de uma terça-feira. De repente, a cena começa a se desconstruir. A jovem se levanta e abana a poeira da roupa. Já em pé, deixa à mostra uma bota de couro, cano longo. É possível perceber agora que ela sentava-se em uma mochila da qual tira espelho e maquiagem. Maria passa, então, batom, pó, rímel nos olhos. Ajeita o cabelo.

Ela troca o casaquinho desgastado que vestia por uma blusa preta de abotoar. A moça volta a sentar-se, mas agora na murada, com o celular que acabou de tirar da mochila, após depositar nela os pacotes de bala que não conseguiu vender. Confere algumas mensagens e apenas observa, em silêncio, a intensa passagem de usuários da empresa de trens sem emitir um som sequer.

Questionada, a jovem preferiu não dar entrevista. Rapidamente se dirigiu a saída e misturou-se na multidão que adentrava as dependências da estação Mercado. Para muitos cidadãos, assim como para Maria, encerrava-se mais um dia de trabalho.

Edição e orientação: Cybeli Moraes e Felipe Boff

LEIA A 2ª REPORTAGEM DA SÉRIE: “Três tempos de uma educação precária”

Reportagem produzida originalmente para a plataforma Beta Redação e publicada em outubro de 2016.

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