Entre Hannah Gadsby e eu — sobre o enjoo pós-Nanette
Faz alguns dias que eu estou engasgada. Engasguei quando dei play em Nanette — stand-up comedy da australiana Hannah Gadsby, que agora está disponível na Netflix. Engasguei quando dei play em Nanette e ainda não consegui desengasgar. Fico voltando pra certas cenas, revejo, repenso, reengasgo, rio de novo, choro de novo, sinto de novo essa vontade de abraçar a Hannah. Depois dos dias de engasgo, veio a imensa vontade de escrever sobre, embora eu não fizesse a menor ideia do que escrever. Como dizer? Como falar sobre esse violento soco no estômago que eu levei — e precisei levar?
Foram muitas as reflexões sensacionais sobre a história da arte (e o papel das mulheres e dos homens dentro dela), sobre sexualidade, comédia e a necessidade de construir uma narrativa própria sendo alguém que está à margem do discurso dominante. Hannah não só é mulher, gorda e lésbica, mas também não se encaixa nenhum pouco nos estereótipos de gênero. Sendo uma mulher “incorreta”, como ela mesma se denomina em certo momento, e sendo homossexual em uma cidade pequena onde — nos anos 90 — o maior debate era se a homossexualidade deveria ou não ser legalizada (!!!), Hannah fala sobre como gostaria de ter ouvido uma história como a dela durante a sua adolescência. Teria feito com que ela se sentisse menos sozinha. Afinal, o mundo ainda é, no fim das contas, escrito pelos homens brancos heterossexuais. É deles o discurso que predomina, são eles os personagens principais de grande parte das histórias. Daí a importância da gente começar a levantar a voz, começar a construir uma narrativa própria, uma reafirmação da nossa experiência no mundo (a referência que Hannah gostaria de ter tido durante a adolescência, por exemplo, fico pensando que alguns adolescentes estejam começando a ter agora — com bastante ênfase no começando, claro, porque estamos caminhando a passos mais lentos do que eu gostaria).
Mas, entre os muitos questionamentos impactantes de Nanette, o que mais continuou sendo repassado em looping na minha cabeça foi o momento em que Hannah fala sobre a violência que sofreu. He beat the shit out of me and nobody stopped him: revi essa cena e ouvi ela dizer essa frase muitas e muitas vezes e em nenhuma delas deixou de doer. Acolho a dor dela porque também sou mulher, acolho a dor dela porque sei que a lesbofobia mata todos os dias, mas de alguma forma também sei que essa dor me coloca em uma outra posição. Não sou como a Hannah. Eu, com as minhas maquiagens, os meus batons, os meus vestidos, meus brincos e anéis, eu não sou como a Hannah. Embora não me adeque ao padrão magro de beleza, sei que, em muitos outros aspectos, sou uma mulher socialmente aceitável. Sei que, se eu estivesse conversando com outra mulher em um ponto de ônibus (como aconteceu com ela), muito provavelmente a minha feminilidade convenceria qualquer namorado ciumento de que eu sou só uma mulher feminina e heterossexual — e não uma ameaça. A violência que me assombra não é a mesma que assombra a Hannah (embora as duas se encostem em muitos pontos).
Depois do looping de He beat the shit out of me and nobody stopped him, tentei voltar à minha vida e comecei a sentir um enjoo recorrente. Um enjoo quando vou passar o corretivo, o blush, o rímel e o batom de cada dia. Um enjoo quando pinto as unhas. Um enjoo quando coloco longos brincos nas minhas orelhas que foram furadas quando eu ainda era um bebê e precisava ser marcada como uma bebê do gênero feminino (com tudo que esse conceito é capaz de carregar). Sinto enjoo em pensar naquele ponto de ônibus, em pensar que eu, naquele ponto de ônibus, talvez não apanhasse como ela. Desde que assisti Nanette, me olho no espelho e vejo uma construção de mulher com a qual eu me acostumei tanto que já não estranhava mais. A gente aprende a gostar, a querer, a assimilar. Não sei dizer quando ganhei meu primeiro batom, mas acho que eu tinha uns 10 ou 11 anos. Lembro de ter feito a primeira depilação aos 12. É provável que aos 15 eu já não conseguisse me sentir bonita sem 3 quilos de base e corretivo escondendo as olheiras, espinhas e teóricas imperfeições. A gente aprende a se adequar (e, sendo uma mulher gorda, a gente aprende, inclusive, a compensar, como se estar perfeitamente adequada ao padrão de beleza em outros quesitos pudesse suavizar a falta grave que é estar fora dele no quesito magreza).
Mas a construção de mulher que vejo no espelho agora me faz retomar tudo a que Hannah — ao contrário de mim — não se adéqua. No meu batom e minha base e meu rímel, vejo a mulher que senti a necessidade de sustentar socialmente, mas também vejo o rosto nu e limpo de Hannah, e o impacto diário dessa recusa sobre a vida dela. Afinal, se recusar a atender às demandas de um padrão de beleza criado por homens para o benefício dos homens é o suficiente para ser espancada em um ponto de ônibus. É como homens vêm tratando mulheres (especialmente lésbicas), no fim das contas: se estiverem de acordo com os padrões de feminilidade, que sejam fetichizadas; se não estiverem, simbolizam o ápice da afronta. Mulheres cuja existência não pode servir ao desejo masculino — e, se tem uma coisa que o patriarcado nos ensina diariamente, é que mulheres que não servem ao desejo masculino não servem para mais nada. A construção que vejo no espelho agora me lança diretamente a pergunta: até que ponto não tenho me construído também em função do desejo masculino? Até que ponto não tenho ostentado como se fosse uma escolha uma série de necessidades que o mundo jogou nas minhas mãos sem perguntar se eu de fato queria?
Se o espancamento de Hannah me dói de forma tão pontual, é justamente porque o meu rosto maquiado, feminino e depilado também é uma peça do mesmo sistema que produz a violência contra o rosto limpo e não-feminino dela. Para que a engrenagem siga funcionando, é preciso que mulheres como eu adotem a feminilidade e se convençam de que ela é de fato uma escolha, de que ela é natural, de que não há nada de errado em furar a orelha de bebês que não escolheram usar brincos — e, para que a engrenagem siga funcionando, é preciso que mulheres como Hannah sejam espancadas e invisibilizadas, tratadas como mulheres incorretas (que tantas vezes são vítimas de estupros corretivos “para aprender”). Depois de falar sobre o espancamento, ela ainda diz que deveria ter denunciado ele, mas não denunciou porque sentiu que merecia aquilo. A lógica perversa da heterossexualidade compulsória e dos papéis de gênero passa exatamente por aí: não se adequar ao molde pode ser a fonte de uma angústia tão grande, de um auto-ódio tão profundo, que não conseguimos nem levantar qualquer voz contra a violência. Somos resignadamente engolidas e mastigadas por ela.
E a verdade é que eu não sei o que fazer com isso. Eu não sei o que fazer com o engasgo e o enjoo que Nanette deixou em mim. No dia seguinte, uma vontade louca de raspar a cabeça. Mas também a consciência de que, ainda que eu raspasse, provavelmente compensaria com longos brincos e maquiagens ainda mais pesadas. Para não fugir da lógica. Para que eu, como uma mulher gorda, ainda me sinta minimamente integrada, parte de um grupo legitimado socialmente. Qual é a minha responsabilidade aqui agora? Como utilizar esse enjoo como um grito pelas outras Hannahs que estão por aí sendo espancadas?
Eu não faço ideia. Mas, conforme vou reassistindo, vou olhando mais o rosto dela, sem maquiagem e sem brincos, e vou achando ela cada vez mais bonita. Vou enxergando no rosto dela uma beleza que me acalma. Não a beleza da mídia, dos produtos e exigências, mas a beleza de uma mulher que, como ela própria diz, foi destruída, mas se reconstruiu — e agora enfrenta uma plateia imensa com uma nudez que me fascina. Enxergo nela algo tão bonito que, de repente, começo a experimentar em mim essa disposição para acolher a minha própria nudez e aprender a ver nela qualquer coisa de valioso que eu talvez já tenha esquecido. É verdade mesmo que não há nada mais forte que uma mulher destruída que se reconstruiu. E não há nada melhor que mulheres reconstruídas para renovar o fôlego das que ainda estão precisando se reconstruir.