Não existe discussão quando mulheres não podem falar

Maisa Carvalho
4 min readFeb 7, 2018

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Imagine que você está discutindo com um terraplanista, uma daquelas pessoas que acreditam que a terra é plana. Ele afirma pra você que a terra é um disco, a gravidade uma mentira e que você precisa ler mais a bíblia, se informar melhor, sentir ou acreditar na horizontalidade terrestre.

Você argumenta, por exemplo, que se a terra fosse plana nós veríamos os eclipses mais ou menos assim…

(Eclipse lunar visto da terra plana, foto e arte autorais)

… E que por esta e outras razões, seu interlocutor terraplanista está errado. Você diz que não acredita no que ele diz, acha ou sente sobre o formato da terra, até porque o desejo ou a certeza do terraplanista não fazem com que a terra deixe de ser redonda, tampouco impedem a gravidade de agir.

Seria mais um dia normal na internet, em que alguém faz uma afirmação extraordinária sem apresentar uma evidência igualmente extraordinária, mas hoje o seu interlocutor inventou uma nova saída para vencer a discussão: ele te acusou de discurso de ódio. Ele disse que não acreditar nele é o mesmo que odiá-lo, negar a ele o direito de acreditar na terra plana e desejar que ele morra.

Parece muito absurdo?

Pois é absurdo, mas é também uma analogia com uma das dificuldades encontradas hoje pelo Movimento de Libertação das Mulheres: mulheres que contrariam homens desviantes, que desejam se organizar sem a presença de homens e que querem discutir a origem da exploração da casta sexual feminina são consideradas odiosas, preconceituosas e más.

Pode parecer que esta é uma reclamação sobre ser chamada de preconceituosa por pessoas antifeministas, mas longe disso: mesmo que após todos esses anos eu me importasse com acusações falsas e intrigas na internet, meus sentimentos não fazem diferença aqui. O que claramente está em jogo é o futuro do Movimento de Libertação das Mulheres.

Quando baseamos uma luta em sentimentos pessoais e abuso de empatia, em vez de nos apoiarmos em argumentos, nos aproximamos de um lugar em que o debate não existe. Se um argumento sobre uma estrutura de dominação é ofensivo então o grupo não importa, e sim as individualidades de cada sujeito que compõe o grupo. Num exemplo relevante para o dia de hoje, a prática da mutilação genital feminina não importaria tanto como violação de direitos humanos (mais especificamente, uma violência contra as mulheres) quanto o sentimento particular de cada uma das mulheres mutiladas, incluindo aí alguma que não tenha se importado com a mutilação. Então se encontrássemos um número razoável ou pelo menos socialmente apoiado de mulheres que não se importaram em sofrer a mutilação, a própria prática deixaria de ser uma violação.

E quem se colocasse contra essa prática seria preconceituoso.

Esse exemplo é só uma extrapolação para base nos sentimentos pessoais. A forma como isso ameaça o Movimento de Libertação das mulheres é outra: 1) tirando de nossas mãos o direito de nos definir como grupo, em torno da exploração da nossa possibilidade reprodutiva 2) consequentemente, tirando-nos o direito de definir homens como pessoas que exploram essa possibilidade reprodutiva, 3) dando aos homens o direito de redefinir mulheres com base em sentimentos, como se essa exploração não importasse e 4) consequentemente, permitindo com que eles se redefinam, no campo das idéias, pra fora da casta exploradora e pra dentro da casta explorada.

Desse modo, os próprios responsáveis pela exploração feminina reorganizam a luta, os discursos, as prioridades e ao mesmo tempo em que nos acusam de “fascismo” por contrariá-los, nos impedem de falar, pois contrariá-los é preconceito. Por “nos impedem de falar” eu não estou jogando pro alto uma acusação de “silenciamento” mas mencionando as diversas ameaças, situações de boicote e uso de violência física pelas quais Feministas Radicais vêm passando nos últimos anos.

Vejamos alguns desses casos:

  1. Em setembro de 2017 transativistas espancaram uma senhora de 60 anos em Londres, no Speaker’s Corner, um local conhecido por ser aberto para pessoas que queiram discursar sobre qualquer assunto;
  2. Em 2012 transativistas jogaram uma bomba de glitter na Germaine Greer, então uma senhora de mais de 70 anos;
  3. Em 2013 transativistas pressionaram para que uma conferência exclusiva de mulheres fosse cancelada;
  4. Em 2017 a Vancouver Women’s Library, uma pequena biblioteca de estudos feministas autônoma e gerida há décadas por mulheres em seu tempo livre foi atacada… por transativistas;
  5. Essa semana, Rose Mcgowan, que sequer é Feminista Radical, foi intimidada por transativistas ao fazer uma palestra sobre os abusos sexuais que sofreu;
  6. A nível local temos hoje, na Construção do 8 de março carioca, um transativista de mais de 40 anos (que se não fosse transativista seria conhecido como “pai de família”) ameaçando publicamente em frente a diversas testemunhas quebrar os dentes de uma mulher de 22 anos;
  7. Em 2014 ameaçaram invadir o terreno da minha família, onde realizamos a primeira Conferência de Feminismo Radical. Em 2015 e 2016 ameaçaram jogar bombas nos Encontros do Manas Chicas;
  8. Em 2016 a Michfest acabou, depois de 38 anos de autonomia e organização de mulheres. O motivo foi a intimidação transativista as envolvidas na organização. Como esquecer do CampTrans de 2012, que contou com transativista levando lança pra se proteger (?). Essas pessoas acamparam do lado de fora de uma festa feminista, exclusiva para mulheres, e acharam necessário LEVAR ARMAS.

Seria hilário como distopia, uma em que pudéssemos, pelo menos, pular pra fora da borda da terra plana, cair no espaço e parar de ouvir sobre delírios identitários. Para nossa tristeza é a descrição do que se passa por “feminismo” atualmente.

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Maisa Carvalho

Guerreirinha do Movimento de Libertação das Mulheres e apenas dele. Feminista Radical. Autoridade em maionese.