8 de Macho, mães solo e aborto

Maisa Carvalho
9 min readFeb 27, 2024

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mulheres segurando bebês, imagem feita por I.A.

O “Oito de Macho” se aproxima e agora que não precisa tirar nem o Tichel Memer nem o Biroliro fiquei pensando que seria uma ótima oportunidade pra falar de direitos reprodutivos das mulheres, imagina só. Claro que já tem grupo que decidiu fazer a data ser sobre homem travestido e deve ter mais um monte de outras pautas consideradas mais importantes por quem instrumentaliza mulheres, mas deixa eu contar.

Li recentemente que metade das mães solteiras (solo, como dizem agora) vive na pobreza. Fui checar:

No Reino Unido [1], em 2022, a cada 10 famílias monoparentais (só com uma mãe ou um pai), 9 eram de mães solo, 1 era de pai solo. Metade das crianças vivia em pobreza relativa, que se define pela casa receber menos de 60% do rendimento médio do país.

Nos EUA [2], “só” 10% das famílias vivem na miséria, porém 40% das mães solo vivem em miséria. Essa miséria é definida como fome, falta de abrigo, estar doente e não conseguir ir ao médico, não ter acesso a estudo, não saber ler, não ter trabalho e temer o futuro.

Na Europa [3], 48% das mães solo estão sob risco de miséria.

No Japão [4], 41% das famílias monoparentais vive na pobreza.

Segundo o IBGE (2016), no Brasil eram 56,9% as mães solo [5] abaixo da linha de pobreza, o que significa receber menos de 200 reais por mês. [6]

Aqui é importante avisar às feministas de outros países que o Brasil não é o UK, o Japão, um estado dos EUA e nem faz parte da Europa. Embora não exista por exemplo um limite gestacional, o aborto em nosso país só é permitido em 3 situações: risco à vida da grávida, estupro, e anencefalia. Ainda precisamos lutar por algo muito básico, e seria bom ter respeito, compreensão e apoio pela nossa necessidade. Às vezes achamos que nossos direitos estão garantidos e são intocáveis, mas basta um estalar de dedos, uma mudança no clima e tudo é posto a perder. As feministas dos EUA acabaram de viver isso na pele.

Também é bom lembrar do mapa do aborto, que pode ser visto na Wikipedia. Não é coincidência que países mais desenvolvidos sejam os que tem maiores liberdades quanto à prática do aborto. Não se esqueçam de suas irmãs sul-americanas, nós não somos ignorantes em questões feministas e não estamos enganadas quanto às nossas necessidades.

Voltando ao assunto de monoparentalidade feminina: se você engravidar e não tiver pelo menos uma outra pessoa pra dividir os cuidados do menor e as contas, você corre esse risco aí.

Como evitar ser uma mãe solo?

O jeito mais simples é não engravidando. O jeito mais seguro de quem tem relações sexuais com o outro sexo não engravidar é usando camisinha. E só a camisinha pode prevenir tanto gravidez quanto doenças venéreas.

O aborto sob demanda (gratuito, legal, seguro, livre) é o remédio final para a gravidez indesejada. A gravidez indesejada acontece quando uma mulher se encontra grávida e não quer se reproduzir, quando ela deseja interromper o processo, independentemente do motivo. O motivo de uma mulher é o que menos importa, nenhuma mulher deveria ser coagida a se justificar frente à recusa de se reproduzir. Não querer deveria bastar, como basta a qualquer feminista séria, mas correr o risco de ser jogada pra baixo da linha da pobreza deveria convencer a qualquer outra pessoa. A quem diz se preocupar com a fome, a miséria, a falta de lar.

Esse direito de não se reproduzir deveria nortear todas as pessoas que se dizem feministas. Como não norteia, selecionei outros motivos para que tenham a chance de confrontar a própria hipocrisia.

Por exemplo, aquelas pessoas cuja pauta do ativismo são as crianças. Para quem ama criancinhas acima de tudo, se preocupa com o bem estar delas, chora à noite pensando em seu sofrimento, crê que as crianças são o grupo mais oprimido do mundo, apoiar o aborto sob demanda deveria ser parte do seu ativismo, ou a preocupação é só da boca pra fora. Por quê? Explico. Uso aqui informações públicas de um dos grupos que ajuda mulheres a abortar legalmente no Brasil. Entre as mais de 400 mulheres ajudadas no ano passado, 22 eram menores de idade. 6 delas tinham menos de 14 anos, ou seja, foram vítimas de abuso. Essas gestações, em específico, eram “avançadas”, e é comum que em meninas a gravidez só seja descoberta em estágios posteriores, quando a barriga alcança um certo tamanho. O grupo que ajudou essas meninas ressalta especificamente a importância da legalidade dos abortamentos em estados avançados. Em 2014, mais de 25.000 meninas entre 10 e 14 tiveram filhos [7]. Isso tem nome.

Lembram do caso da menina de 10 anos violada pelo tio em 2020? Aquele que a ex-ministra Damares Alves publicizou, fazendo com que conservadores a assediassem, perseguissem e atrapalhassem seu acesso ao aborto? Isso não aconteceu porque ela é criança ou porque o feto tinha tantas semanas, aconteceu porque existe um tabu com aborto. Não existe em nosso país restrição na idade da menina ou mulher para que um aborto legal aconteça, assim como não existe restrição legal nem na idade nem no tamanho do feto. O que existe é uma interpretação de uma norma técnica mal escrita do Ministério da Saúde, que não é uma lei, e que define “abortamento” como “interrupção da gravidez até a 20–22 semana e com o produto da concepção pesando menos de 500 gramas”. A norma também define aborto como o produto do abortamento. Mas sabem o que uma batida de carro, uma queda da escada ou um milk shake de poejo e salsinha podem proporcionar na 24 semana? Um aborto, com riscos muito maiores pra mulher (ou menina), é claro. Similarmente, se o abortamento só se dá até a 22 semana, podemos interpretar que qualquer intempérie que aconteça com o feto depois disso não é abortamento. O artigo 124 do Código Penal “Provocar aborto em si mesma ou consentir que outrem lho provoque”, de 1940, não cai por terra ou se torna mais grave porque o Ministério da Saúde fez uma norma técnica, que é uma orientação de procedimento. Mas o artigo 124 é ultrapassado tanto pelo artigo 128 (em que o aborto não deve ser punido se não houver outro modo de salvar a gestante ou se a gravidez for resultado de estupro). A norma técnica também não ultrapassa a lei 12.845, de 2013, que garante a profilaxia da gravidez para vítimas de abuso sexual nem a decisão do STJ de 2012 sobre anencéfalos. A norma técnica é inferior a tudo isso, mas é usada como desculpa.

Em 2020, no Capão Redondo [8], as crianças tinham 86% a mais de chance de sofrerem violência sexual que no resto da cidade de São Paulo. O bairro já foi considerado o mais violento do mundo e é frequentemente colocado como um dos mais violentos de São Paulo. Algo me diz que essas crianças não foram planejadas, mas elas estão ali sofrendo as consequências. O sofrimento delas e de suas mães poderiam ter sido evitados com a normalização de um procedimento simples.

É preciso nascer para morrer. E para sofrer violação sexual é preciso ter nascido.

Talvez sua pauta favorita seja a raça. Assim como direitos infantis, essa não é minha pauta, e aviso para que ninguém espere meu comprometimento com o assunto. Sou comprometida apenas com os direitos sexuais das mulheres, tendo um carinho especial pelo aborto. Entendo que as características das mulheres que querem abortar ou das que abortaram ou das que são mães solteiras ou das que estão prostituídas são secundárias para o assunto e muitas vezes usadas para tirar de foco os direitos das mulheres, de todas elas, independente de classe social, raça, orientação sexual etc. Dois desses direitos são a autonomia corporal e soberania reprodutiva, que estão diretamente ligados ao aborto.

Talvez autonomia corporal e soberania reprodutiva não sejam sua pauta de maior interesse. Respeito isso, as pessoas devem se voluntariar para trabalhar com os temas que gostam. Mas talvez te interesse saber que 90% das mulheres brasileiras que se tornaram mães solo entre 2012 e 2022 são negras. [9]

Essas mulheres poderiam ter sido beneficiadas se tivessem tido direito ao próprio corpo, se tivessem tido a chance de controlar sua reprodução. E se essas não tiveram, deveríamos trabalhar para que outras tenham. Só as mulheres estão sujeitas a esse controle e as supostas justificativas para o controle mudam, de modo que o direito ao corpo é mascarado. Por exemplo, em 2007 (antes do julgamento do STF sobre fetos anencéfalos), uma compilação dos projetos sobre o aborto na Câmara dos Deputados dizia que “O ponto nevrálgico das discussões travadas no seio da sociedade sobre o aborto é o caso dos bebês portadores de enfermidades congênitas graves que inviabilizam uma vida normal; a anencefalia é o exemplo mais eloqüente.” [10]

No dia 21 de Fevereiro de 2022 a Colômbia legalizou o aborto até a 24a semana de gestação. A polêmica (que não deveria ter existido para nenhuma feminista séria) foi a respeito do tempo de gestação, ou seja, esse era o “ponto nevrálgico” dois anos atrás, não uma possível anomalia genética. Essas justificativas são descarrilamentos do direito que as mulheres deveriam ter ao próprio corpo; são justificativas de tutela que alçam fetos a uma classe especial de cidadãos e as mulheres a uma subcategoria de direito inferior aos próprios fetos.

É preciso nascer para que a viabilidade fetal seja comprovada. Também é preciso nascer para ser um bebê. Qualquer coisa além disso é malabarismo para controle das mulheres.

As mulheres não têm como decidir deixar de serem mulheres, assim como as que tiveram filhos não tem como decidir deixar de serem mães. Algumas coisas são imutáveis, mas é simples e muito possível que uma mulher que não queira se tornar mãe interrompa esse processo. O aborto também não vai diminuir o sofrimento de mulheres que já são mães solo, mas pode impedir que milhares de outras mulheres sejam forçadas a se reproduzir, que sejam jogadas abaixo da linha da pobreza, que crianças não planejadas tenham existências miseráveis e sejam sistematicamente abusadas. Também pode ajudar mulheres que já são mães a impedir o aumento da prole.

Como eu disse lá em cima, o aborto é o remédio final. Ele é a pauta mais urgente para evitar multiplicação de problemas, não é a solução de problemas já existentes. Mas os problemas são fáceis de listar e as sugestões de solução não faltam:

1) aborto sob demanda, gratuito, legal, seguro e livre;

2) as mulheres precisam estar a par de que têm esse direito em caso de gravidez;

3) as mulheres precisam também de educação reprodutiva, prevenção e planejamento;

4) as que decidirem se reproduzir devem ter apoio completo em todas as fases da gravidez, parto e pós-parto, incluindo acompanhamento da mulher e do bebê;

5) caixa de cuidados para o recém-nascido [11] adaptada para a necessidade brasileira;

6) uma vez que se tornem mães, as crianças devem ter acesso a creches até os 6 anos, com diferentes opções de horário e

7) escola depois dos 6 anos. Replanejamento da idéia dos CIEPs (com educação em período integral) e investimento massivo em educação [12].

Começando do mais fácil pro mais difícil, atacamos a compulsoriedade reprodutiva, diminuímos um pouco algumas das dificuldades da maternidade, resgatamos as mulheres da miséria e as crianças do perigo. Mas precisamos priorizar os direitos das mulheres, porque ninguém vai focar por nós enquanto todos os grupos tentam descarrilar nossas pautas específicas e direcionar nosso trabalho. Nunca se esqueçam: nós somos metade do mundo.

E como começar a fazer isso? Por conscientização. Nós, que somos feministas e levamos o assunto a sério, precisamos centralizar a discussão para que seja sobre os nossos direitos. Um primeiro passo é debater o assunto com todas as feministas que você conhece e trazer seus argumentos de volta pra autonomia corporal e soberania reprodutiva, todo o resto é secundário. Vá nas páginas de grupos feministas que você conhece, naquelas pessoas que dizem lutar por mulheres e crianças e faça perguntas públicas sobre o assunto. Aquelas que não falam sobre o aborto ou que não usam as palavras chave como “livre” e sobretudo “sob demanda”[13] são as que não estão de acordo. Você vai se surpreender porque é chocante a quantidade de mulheres mal informadas ou mesmo mal intencionadas a respeito do assunto, mulheres que fingem concordar ou mesmo fingem ser feministas quando são contra autonomia corporal e soberania reprodutiva. Muitas de nós compreendem a importância de reconquistar direitos que foram recentemente perdidos e manter direitos que ainda estão nos protegendo, mas também é importante conquistar novos direitos. O aborto é o mais simples deles.

[1] https://www.theguardian.com/business/2022/jul/04/half-of-all-children-in-lone-parent-families-are-in-relative-poverty

[2] https://marriott.byu.edu/magazine/faculty-research/single-mothers-self-reliance

[3] https://eige.europa.eu/sites/default/files/documents/mh0216841enn.pdf

[4] https://www.asianews.it/news-en/Japan:-almost-half-of-single-parent-families-live-in-poverty-58740.html

[5] https://www.jusbrasil.com.br/artigos/a-realidade-das-familias-monoparentais-femininas-no-brasil/945384736

[6] https://agenciadenoticias.ibge.gov.br/agencia-noticias/2012-agencia-de-noticias/noticias/38545-pobreza-cai-para-31-6-da-populacao-em-2022-apos-alcancar-36-7-em-2021#:~:text=O%20percentual%20de%20pessoas%20em%20extrema%20pobreza%2C%20ou%20seja%2C%20que,31%2C6%25%20em%202022.

[7] https://bvsms.saude.gov.br/01-a-08-02-semana-nacional-de-prevencao-da-gravidez-na-adolescencia/#:~:text=A%20taxa%20de%20gesta%C3%A7%C3%A3o%20na,significativos%20e%20requerem%20medidas%20urgentes.

[8] https://g1.globo.com/bom-dia-brasil/noticia/2023/05/12/brasil-tem-mais-de-11-milhoes-de-maes-que-criam-os-filhos-sozinhas.ghtml

[9] https://brasil.elpais.com/brasil/2020-02-12/no-capao-redondo-crianca-tem-85-vezes-mais-risco-de-ser-estuprada-do-que-em-outros-distritos-de-sao-paulo.html

[10] https://bd.camara.leg.br/bd/bitstream/handle/bdcamara/1437/projetos_aborto_silveira.pdf?sequence=1&isAllowed=y

[11] https://www.bbc.com/portuguese/noticias/2016/04/160404_caixa_finlandia_mundo_rb

[12] https://www.redebrasilatual.com.br/blogs/blog-na-rede/ciep-modelo-de-educacao/

[13] a WDI se opõe a gravidezes forçadas em sua Declaração e o formulário para contatos reafirma especificamente o compromisso com o aborto sob demanda: https://docs.google.com/forms/d/e/1FAIpQLScuid0XLU7HKoIyqeOpdbM-NGqol88WWIp84FznAVV28r9giA/viewform

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Maisa Carvalho

Do Movimento de Libertação das Mulheres e só dele. Feminista Radical. Autoridade em maionese. Aqui também: https://medium.com/@maisinhacar