Não dá pra ter as duas coisas

Maisa Carvalho
5 min readApr 14, 2018

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Quando um cafetão homenageia a direita, o sistema da esquerda dá pane

um dia eu vou presa pela minha infâmia

Essa semana um famoso prostituinte fez uma festa em frente ao seu estabelecimento, que promove a exploração sexual. A festa continha uma homenagem a um juiz e uma jurista, ambos de direita. Na homenagem, o prostituinte dava um mata-leão numa mulher seminua, com a vulva a mostra. A festa era uma comemoração a respeito da prisão de um ex-presidente da república.

No mesmo dia houve uma missa católica em homenagem a uma das fundadoras do Partido dos Trabalhadores, uma senhora católica como seu companheiro, que por sinal foi presidente da república.

Seguiu-se uma discussão nonsense na internet sobre a esquerda ter ido à missa e a direita ter ido ao prostíbulo. Começando porque, pra além desse casal ser católico, a galera da teologia da libertação sempre esteve ali pela esquerda. Quer dizer, a associação da esquerda com o catolicismo devia ser tão surpreendente quanto a da direita com a exploração sexual feminina. E vice-versa.

Devemos lembrar aqui que as mulheres não são exploradas sexualmente porque os homens são maus, burgueses capitalistas de direita contra a igualdade. A exploração sexual¹ não é ideológica e não é exclusiva de uma ou outra classe social, ela é uma exploração majoritariamente de casta, naturalizada quando feita contra mulheres.

Não é à toa que setores da esquerda colocam a exploração sexual feminina como uma escolha ao mesmo tempo que colocam a prostituição masculina como uma imposição para uma minoria de homens, como se fosse o único jeito que eles têm para se sustentar. Enquanto essa exploração de mulheres é naturalizada (pela naturalização da subordinação feminina), a masculina é vista como uma violação de direitos humanos, uma quebra, “antinatural” em sua homossexualidade. Nenhum homem deveria ser submetido a isso, portanto, os que estão lá estão forçados. Mulher é diferente, mulher gosta, e o abuso de uma mulher por um homem é heterossexual, portanto, “natural”.

Então, o que tornou a discussão ainda mais nonsense não foi nem o desconhecimento histórico da associação da esquerda com o catolicismo. Foi o fato de que parte da esquerda se colocou contra a humilhação (?) daquela prostituta (?) por um cafetão (esse termo tá certo). Sendo que essa mesma esquerda não tem acordo, não se posiciona duramente contra a exploração sexual feminina. Agora ela tem em mãos dois diálogos antagônicos que tenta equilibrar na mesma bandeja, e não porque reconhece que aquele cafetão (e todos os outros) é um explorador de mulheres, mas porque aquele ali, especificamente, um deles se posicionou à direita. E aí a coisa fica meio constrangedora. Como se colocar contra o cafetão e ao mesmo tempo defender leis que beneficiam os cafetões? Eu vou tentar responder usando aqui a mesma lógica que alguns setores usam quando Feministas Radicais apontam a exploração sexual.

O primeiro passo é decidir que aquela mulher que contracenava com o cafetão era prostituída. Como isso foi decidido, não sei. Talvez tenham olhado para as fotos e pensado, bom, essa aí tem cara de boa bisca. Ninguém pensou que poderia ser uma mulher liberal participando de uma encenação contra um homem que considerava corrupto. Uma atriz, paga ou não, comemorando a prisão deste político. Ou ainda a namorada do cafetão, num romance intergeracional (ele tem quase 70 anos, ela parece um pouco mais nova) que envolva exibicionismo e BDSM, um relacionamento amoroso, respeitoso e recheado de consentimento, afinal de contas, aconteceu entre dois adultos. De minha parte, não sei nem como decidiram que aquela pessoa era uma mulher. Alguém perguntou como essa pessoa se auto-identificava?

O segundo é decidir que aquilo foi abuso.

Um anda bonito, o outro elegante?

Qual a diferença entre as duas cenas acima? Como é que as mesmas pessoas que consideram a foto da esquerda consensual, roleplay, fetiche saudável e expressão de sexualidade adulta podem OUSAR dizer que a da direita é um abuso? Com base em que decidiram isso, senão querer se distanciar cafetão, rico, branco, hetero, um abusador ideal?

Errr…

O terceiro passo é escrever uma narrativa dessa mulher. Uma vez decidido que ela é “trabalhadora sexual”, que especificamente naquele dia e não em todos os dias de exploração sexual ela sofreu um (01) abuso, separam-se as duas coisas e a estrutura de exploração continua intacta. É só olhar a cena como um abuso isolado.

Não é de “putafobia” que chamam isso de considerar mulheres prostituídas como abusadas e falar por elas? Ou está valendo agora e não é mais “preconceito”?

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Pra não deixar dúvidas: eu imagino que a mulher que estava tomando um mata-leão seja prostituída e tenha sido abusada. Eu vou achar isso de qualquer mulher seminua que esteja junto de um cafetão. Mas eu sei que a exploração sexual é uma violação dos direitos das mulheres. Sei que não é um acontecimento aleatório, que ocorre por causa de um homem específico em determinada situação. Eu não acho que aquele cafetão pouca-telha é um homem horrível, eu acho que TODOS os cafetões são, porque não tenho mais o cinismo ou ingenuidade dos que olham para a pornografia e se convencem de que ela é uma simples atuação. Seria loucura e falta de foco tratar uma estrutura caso-a-caso e ficar tentando decidir se situações visivelmente abusivas são, na verdade, de atuação. Foi isso que a esquerda tentou fazer agora. Com que direito vocês vem fingir que se importam com um caso de exploração sexual, se ao mesmo tempo vocês defendem essa exploração dizendo que é um trabalho como qualquer outro? Ou vocês se posicionam em grupo a favor da PL Gabriela Leite ou vocês se colocam contra um cafetão. Porque, veja bem, defender direitos dos cafetões ao mesmo tempo que se coloca contra um deles não é só antagônico, é hipócrita. Escancara que vocês não se preocupam com o abuso, só com o abuso perpetrado pela direita.

Quanto aquelas poucas que estão satisfeitas, que amam o que fazem: eu acredito em vocês. Não tenho motivo nenhum pra achar que estão mentindo quando dizem que gostam de trocar sexo por dinheiro. Nesse espírito, desejo então que se fodam, que ganhem muito dinheiro e que quanto mais velhas e experientes no trabalho vocês fiquem, mais sejam valorizadas como profissionais, que é o trajeto natural da maioria dos ofícios do mundo. Eu não quero impedi-las particularmente de exercer essa função, se houvesse um jeito em que vocês, que afirmam que não são exploradas, pudessem continuar e nós conseguíssemos evitar que qualquer outra mulher que não desejasse fosse explorada sexualmente, eu o apoiaria. Infelizmente eu desconheço uma solução próxima disso, então, como tudo no mundo, é necessário focar os esforços nas vítimas, e não em quem está satisfeita.

¹ Quando eu falo de exploração sexual eu me refiro à prostituição, não à exploração da possibilidade reprodutiva, que é a base da dominação das mulheres.

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Maisa Carvalho

Guerreirinha do Movimento de Libertação das Mulheres e apenas dele. Feminista Radical. Autoridade em maionese.