Resenha crítica de Crash | No limite

Maitê Amorim
4 min readOct 14, 2022

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Crash: No limite (2004), é um filme do gênero drama dirigido pelo diretor canadense Paul Haggis, estreado no ano de 2004 durante o festival de cinema de Toronto e lançado internacionalmente no ano seguinte. Crash estrela nos papéis principais os atores Sandra Bullock, Brendan Fraser, Matt Dillon, Don Cheadle e Ryan Phillippe.

No longa, Jean Cabot, interpretada por Sandra Bullock, é uma rica moradora da Califórnia, esposa de um promotor. Ela tem seu carro de luxo roubado por dois assaltantes negros, roubo que culmina num acidente que acaba por entrelaçar habitantes de diversas origens étnicas e classes sociais de Los Angeles: um veterano policial, um detetive e seu irmão traficante de drogas, um bem-sucedido diretor de cinema e sua esposa, e um imigrante iraniano e sua filha.

O longa recebeu seis indicações ao Oscar e venceu 3 estatuetas por melhor direção, melhor roteiro original e melhor montagem. Na cerimônia, o filme concorria com os longas Munique, O segredo de Brokeback Mountain, Capote e Boa noite e Boa sorte. A aclamação da Academia teve grande repercussão, especialmente devido às críticas controvérsias e divididas.

O filme tem como pano de fundo a cidade de Los Angeles, na Califórnia, segunda cidade mais populosa dos Estados Unidos, conhecida por sua grande diversidade étnico-racial e por fases de grande tensão racial que levantaram debates ávidos sobre violência policial e relações raciais nos Estados Unidos. Em Crash, esse cenário funciona como um retrato dessa conjuntura, intencionalmente escolhido para retratar a história sobre vida na cidade cosmopolita e as diversas nuances do preconceito.

Na cena inicial, se ouve apenas a voz de um detetive negro, que diz: “É o sentido do tato. Em uma cidade normal, você anda, você esbarra e as pessoas trombam em você. Em Los Angeles ninguém te toca, acho que sentimos tanta falta do toque que batemos uns nos outros só pra sentir alguma coisa.” A cena mostra uma batida de carro entre duas mulheres, uma asiática e outra latina, que discutem fervorosamente e usam de insultos raciais uma contra a outra.

A cena comunica de forma explícita, visualmente, a identidade racial dessas duas personagens, aspecto que se segue concomitantemente nas cenas seguintes. Após o assalto, vemos a personagem de Sandra Bullock sendo socorrida pelo marido. Anteriormente, os dois assaltantes conversam entre si, reclamando que não foram bem atendidos num restaurante de luxo devido ao preconceito racial. Logo em seguida, um dos personagens centrais, um policial branco, conversa com uma atendente negra em um hospital e profere xingamentos de cunho racial contra ela.

Os personagens são apresentados através de situações que parecem propiciar quase sempre diálogos explícitos sobre preconceito racial ou momentos de alta tensão racial. Sendo essa a temática central do filme, fica explícita a intencionalidade presente em cada fala, e a sutileza das interações importa pouco, ao passo que o que é essencial para a interpretação da cena está no diálogo. Isso dá pouco espaço para a interpretação do telespectador e da fluidez das cenas. De acordo com Moscariello (1985), “é necessário valorizar as componentes que lhe valem poder ser qualificado como ‘discurso’ e não apenas como simples ‘espetáculo’”. A linguagem cinematográfica possui códigos específicos que são assimilados pelo espectador no intuito de compreender a obra.

A estrutura narrativa do filme segue um modelo muito utilizado e bem sucedido no cinema, a de um extenso elenco que vai se entrelaçando ao longo da história, mas serve sempre a uma narrativa principal. Apesar disso, em Crash, as coincidências entre os personagens são muitas e requerem quase uma suspensão do senso de realidade e descrença pelo telespectador. Durante todo o filme, incidentes se seguem e colocam a prova o caráter de muitos dos personagens, que se apresentam constantemente numa zona cinza entre o mal e bem, em que não há dicotomia e as personalidades nunca são solucionadas ou concluídas. De acordo com Bárbaro (1965), “toda obra de arte adquire no contato com o público um valor social; isto é, promove e determina certas correntes efetivas e ideológicas”.

Ao fim do filme, há uma espécie de looping em que vemos um novo acidente de carro, dessa vez entre uma mulher negra que xinga uma mulher imigrante. A cena conclui a premissa central de Crash, em que não há como rotular grupos como estruturalmente racistas, mas sim como analisar comportamentos racistas em sua individualidade, vindas de pessoas com atitudes boas e ruins. A percepção que se tem é de que toda a construção dos personagens até então parece ter sido estrategicamente feita para servir a uma afirmação ideológica, os esvaziando de personalidade.

Crash conclui que cada indivíduo tem uma dignidade que é alheia a qualquer fator externo, que o racismo é inerente a todo e qualquer ser humano e que não traz qualquer relação com questões estruturais, e sim com aspectos subjetivos e individuais.

O gosto que fica é de um filme que poderia trazer uma discussão rica sobre tensões raciais nos Estados Unidos e personagens igualmente ricos e bem trabalhados, mas escolhe trazer uma visão facilmente palatável, digerível e reconfortante sobre o tema, e acima de tudo, deixar de lado a sua relação essencial com a realidade.

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