O paradoxo da criatividade

Como pessoas criativas utilizam o ócio a seu favor.

Mandalah
8 min readMay 13, 2020

A criatividade é paradoxal.

Para ser criativo é preciso, antes de mais nada, criar. Criar e deixar o mundo julgar, como escrevi em meu artigo sobre o mindset do inovador. Mas só agir não basta, para ser criativo de verdade é preciso também saber a hora de não agir.

A criatividade requer períodos de inatividade.

É aí que está o desafio: talvez a maior barreira para o desenvolvimento da criatividade no mundo atual não seja a falta de ação, e sim o excesso.

Vivemos em uma sociedade cada vez mais ocupada (e preocupada). Condicionados por uma cultura workaholic, nos sentimos quase que na obrigação de estar conectados, 100% do tempo. Nos sentimos culpados em relaxar, em cuidar de nós mesmos, afinal temos que estar sempre atentos aos nossos “negócios”. Isso pode estar nos custando caro.

A palavra negócio, aliás, vem de negar o ócio.

Só nos esquecemos que ao negar o ócio, também negamos a criatividade. E um negócio menos criativo é naturalmente um negócio menos inovador, menos lucrativo, menos perene. (Troque a palavra negócio na frase anterior por “profissional”, “artista”, “cientista”, e ela continuará fazendo sentido).

O fato é que quem está sempre ocupado, não tem tempo de inovar.

A boa notícia é que a criatividade, ao contrário do que muitos acreditam, não é um dom reservado para pessoas “abençoadas”, é uma característica natural e essencial do ser humano, uma habilidade que pode ser desenvolvida por todos.

Ao estudar a vida de pessoas criativas ao longo da história, é possível notar alguns padrões que podem ser replicados. Paradoxalmente, a melhor maneira para ser criativo não é tentando ser criativo diretamente, e sim criando as condições necessárias para que a criatividade possa emergir naturalmente.

Então como chegar lá? A seguir listo 4 princípios fundamentais, incluindo coisas que você pode fazer, e especialmente não fazer, para levar uma vida mais criativa.

1. Cultive a mentalidade de integração trabalho-vida

A ideia de equilíbrio trabalho-vida é muito difundida nos dias de hoje, aceita como uma boa prática por muitos. De fato, melhor o equilíbrio que o desequilíbrio. Mas pessoas criativas de sucesso vão além, elas transcendem o equilíbrio para pensar em integração trabalho-vida.

A ideia de equilíbrio remete a compensação, faz pensar que trabalho e vida pessoal são coisas distintas, e que uma precisa compensar a outra. Já a visão de integração trabalho-vida nos faz entender que trabalho e vida pessoal se retroalimentam, como uma coisa só. Em outras palavras, pessoas com uma visão mais sistêmica e integrada entendem que o tempo que passam cuidando de si, de sua saúde, hobbies, é parte fundamental do seu trabalho. E que o tempo investido no trabalho, por sua vez, também é fundamental para uma vida pessoal satisfatória.

“O espaço e a tranquilidade proporcionados pela ociosidade são uma condição necessária para se afastar da vida e vê-la inteira, para fazer conexões inesperadas e aguardar os selvagens relâmpagos de inspiração." — Tim Kreider, escritor americano

Como disse Alex Pang, fundador da Restful Company e pesquisador da Universidade de Stanford, muitas figuras criativas e produtivas da história não obtiveram sucesso apesar do lazer; obtiveram sucesso devido a ele:

“Figuras tão diferentes quanto Darwin, Charles Dickens, Henri Poincaré e Ingmar Bergman, trabalhando em campos distintos e em épocas diferentes, todas compartilhavam uma paixão por seu trabalho, uma grande ambição pelo sucesso e uma capacidade quase sobre-humana de se concentrar. No entanto, quando você olha atentamente para suas rotinas diárias, elas passavam apenas algumas horas por dia fazendo o que reconheceríamos como o “trabalho mais importante”. No resto do tempo elas estavam caminhando nas montanhas, tirando uma soneca, andando com os amigos ou apenas sentados e pensando… A chave para desvendar o segredo de sua criatividade está em entender não apenas como elas trabalharam, mas como descansaram e como as duas coisas se relacionam.”

2. Reduza [drasticamente] os estímulos

“Muita informação estraga o poeta. Muita informação, acumulada dentro do ser humano, restringe essas transvisões que a gente tem.”— Manoel de Barros, poeta brasileiro

A verdade é que o excesso de informação não estraga apenas o poeta: estraga executivos, cientistas, aposentados, enfim, todos nós.

Já não é novidade para ninguém que vivemos na era da distração, do excesso de estímulos e de informação. Mas os impactos negativos disso ainda não estão claros para todos.

Especialistas mostram que o mundo está cada vez mais viciado em “posts”, “stories” e notícias, por vezes repetidas, por vezes fake, não importa. O que buscamos no fundo é a recompensa de dopamina que a procura por esses conteúdos gera em nós, como mostra a neurociência.

Fonte: Revista Wired

Em cada pequeno espaço de tempo livre que temos, acessamos nosso dispositivos digitais em busca de alguma novidade. Não conseguimos mais aguardar numa fila, entrar num elevador ou esperar alguém ficando mais de alguns segundos sem acessar o smartphone. Não conseguimos passar mais de alguns minutos conversando com alguém, nem mesmo nossos pais ou filhos, sem acessar o smartphone! “Olho no olho” está se tornando uma arte perdida.

Como preço por isso, estamos cada vez mais ansiosos e menos criativos.

Então o que fazer? O primeiro passo para a recuperação é reconhecer o vício. Pare por um momento e analise seus hábitos: por que tudo isso? O que fazemos com toda essa informação? Provavelmente muito pouco. Por outro lado, o que toda essa informação está fazendo com a gente? Minando nossa criatividade (e possivelmente nossa felicidade também).

Reduza os estímulos.

Fonte: Austin Kleon, Steal Like An Artist

O excesso de informação, embora de certa forma confortável, pode ser paralisante. Se por um lado a informação preenche, de outro ela esvazia. Pode preencher você de conteúdo, mas esvazia de significado.

“O que censuro aos jornais é fazer-nos prestar atenção todos os dias a coisas insignificantes, ao passo que lemos três ou quatro vezes na vida os livros em que há coisas essenciais. De vez que rasgamos febrilmente cada manhã a faixa do jornal, deviam-se então mudar as coisas e pôr no jornal digamos… os Pensamentos de Pascal!” — Marcel Proust, Em Busca do Tempo Perdido

Siga o conselho de Proust. Passe a prestar mais atenção em coisas realmente significativas. Adote uma “mentalidade de curador” na sua vida pessoal e profissional.

Pessoas verdadeiramente criativas limitam seus estímulos, assumem a responsabilidade pelo conteúdo que consomem e que não consomem. Entendem, enfim, que ideias novas precisam de espaço livre para surgir.

3. Ajuste o foco

Pessoas criativas sabem da importância fundamental da concentração e do foco, e principalmente colocam isso em prática.

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Reserve um espaço de tempo semanalmente, entre 1 e 3 horas idealmente, para atuar no Modo Criação, focando em alguma oportunidade ou desafio específico que precise resolver, ou em algo que queira criar.

Durante esse período, bloqueie todas as distrações, especialmente as digitais. Para quem não está acostumado com o Modo Criação, os primeiros minutos podem ser tortuosos, mas seja persistente, os benefícios são incontáveis.

Experimente também realizar uma “Monk Mode Morning”:

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Uma dica importante para atuar com fluidez no Modo Criação é evitar o autojulgamento. Muitas vezes quando nos focamos em algo, nos sentimos travados, não conseguimos sair do lugar. Então rapidamente acessamos o celular ou abrimos uma nova aba no computador, como uma fuga. Por vezes achamos que se estamos bloqueados é porque não temos o que dizer, ou somos incapazes. Mas a verdade é que na maioria das vezes nos travamos porque estamos querendo criar e julgar ao mesmo tempo.

“Artistas que buscam a perfeição em tudo são aqueles que não conseguem alcançá-la em nada.” — Eugène Delacroix, pintor francês

Um estudo de neurociência publicado na revista National Geographic, por exemplo, mostrou que músicos de jazz e rappers, quando estão improvisando, conseguem suprimir os mecanismos de automonitoração dos seus cérebros. Ou seja, nos momentos de foco, para destravar a criatividade, você tem que parar de se julgar. Como disse o incrível pianista Keith Jarrett: “a única coisa que funciona é deixar fluir”.

4. Uma chamada para a não-ação

“É o silêncio entre as notas que compõe a música.” — Provérbio Zen

Muitos artigos como esse são encerrados com uma chamada para a ação, o famoso “call-to-action”. Neste, gostaria de fazer diferente, e convidar você para a não-ação.

Depois de ler esse artigo, pare por uns minutos e não faça nada. Isso mesmo: nada.

“Posso sentar, ficar parado, olhar pela janela?” Sim, mas não faça mais nada além disso. Não pode ler um livro, nem ligar para um amigo, muito menos acessar seu smartphone. Experimente e veja o que acontece.

“Todas as misérias dos homens derivam do fato de não conseguirem manter-se tranquilamente sentados sozinhos em uma sala.” — Blaise Pascal, matemático, físico e filósofo francês

Paradoxalmente, é quando você se esvazia e pratica o silêncio, que você começa a ser preenchido de criatividade e de ideias valiosas.

“De vez em quando afaste-se,
relaxe um pouco,
porque quando você voltar…
… mais poderá ser abarcado num vislumbre,
e uma falta de harmonia
ou proporção
poderá ser vista com mais facilidade.”
— Leonardo da Vinci

Felizmente, o mundo todo tem falado cada vez mais do poder do mindfulness (atenção plena) e da meditação. Agora só está faltando transformar todo esse verbo em ação, ou melhor: em não-ação.

O resto, como disse Hamlet, é silêncio.

| por Murilo Bueno, Mandalah São Paulo.

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