Por que avaliações de desempenho individual não funcionam?

Manuela Landi
10 min readJun 1, 2022

--

Imagem de Manfred Stager por Pixabay

É comum uma ou duas vezes ao ano empresas entrarem numa corrida para entender quem são seus melhores e piores funcionários, como se essa fosse uma relação possível de ser estabelecida, ou ainda pior, como se os resultados da empresa dependessem dessa constatação. Saber quem é um bom profissional ou não traz uma ilusão de controle à liderança que, com a lista dos avaliados em mãos, pode se acalmar com a ideia de que se a empresa estiver cercada pelos melhores, os resultados esperados serão atingidos ou superados.

É uma experiência desconfortável para qualquer funcionário saber que seu futuro profissional — possibilidades de crescimento e movimentação na empresa, às vezes até mesmo a inscrição num curso — é decidido por terceiros, numa reunião da qual ele sequer participa. Mesmo quando o processo envolve uma etapa de auto-avaliação, a decisão final fica ainda na mão de terceiros. Portanto, é inegável a ansiedade que esses momentos de ‘ciclo de avaliação de desempenho’ geram nos funcionários. Some a esse fato, que junto com a decisão sobre o futuro profissional ocorrem discussões, as famosas calibragens, que rotulam os funcionários entre aqueles que ‘servem’ ou ‘não servem’ para a instituição, reforçando a insegurança e, consequentemente, comportamentos de competição.

Para além dos rótulos e dos conflitos de saúde mental gerados pela pressão e ansiedade, que são, sem dúvidas, problemas sérios aos quais as empresas devem se atentar caso queiram continuar com tal prática, este texto tem o objetivo de desconstruir a ideia de que processos de avaliação de desempenho, sobretudo os individuais, são necessários para garantir e gerenciar performance.

Penso serem dois os motivos principais pelos quais processos de avaliação de desempenho não funcionam: 1) As pessoas não têm capacidade de avaliar o outro com base em competências de forma completamente neutra; 2) Processos de avaliação individual não dão conta da complexidade de interações necessárias dentro de um sistema para que resultados de fato aconteçam.

Por que as pessoas não têm capacidade de avaliar o outro de forma neutra?

Observando a realidade prática vemos, por exemplo, como é difícil para jurados esportivos chegarem a um consenso técnico sobre a qualidade de um salto, de um giro ou de um passo na ginástica olímpica, patinação, saltos em barras etc, mesmo quando ali se tem critérios bastante objetivos e até numéricos como angulação, altura, velocidade, dentre outros, a serem considerados. Imagine então em uma realidade de conceitos abstratos e subjetivos que rege comportamentos em sistemas complexos, como uma organização corporativa. Será mesmo que uma pessoa tem condições de, apenas pela observação, avaliar de forma justa e imparcial outra com a qual ela convive? A resposta é não.

Vale dizer que ninguém, nem mesmo a pessoa mais experiente em processos de avaliação de desempenho, com anos de prática, está apta a fazer julgamentos sobre competências e potencial de outra pessoa de forma completamente justa. Isto porque todos temos vieses. A depender de nossa criação, visão de mundo, repertório e experiências anteriores, sem perceber, aplicamos a nossa “régua” de medir o mundo na avaliação do outro.

Não estou aqui falando dos vieses inconscientes influenciados por raça, etnia, gênero, idade etc. Esses vieses existem e são importantes de serem considerados, mas independentemente deles, existem vieses que dizem respeito a como cada pessoa compreende conceitos abstratos (aqueles usados em listas de competências, códigos de cultura etc.) e atribuem significados diferentes a eles de acordo com suas próprias experiências.

Isso ocorre por um processo chamado de “efeito idiossincrático do avaliador”. Por efeito idiossincrático, entende-se um espelhamento que acontece, de forma consciente ou não, entre a figura do avaliador para com o avaliado. A pessoa avalia de acordo com a sua própria inferência do que o conceito quer dizer. Idiossincrasia é relativo ao modo único e característico de se comportar de alguém — a marca registrada. No processo de avaliação, a idiossincrasia faz com que o avaliador tome como referência sua visão de mundo para conceituar de forma bastante própria determinados conceitos abstratos que designam competências ou potencial. O que quer dizer que avaliar alguém diz mais sobre a figura do avaliador do que do avaliado.

(…) o grande achado desse estudo é que o efeito idiossincrático do avaliador se aplica apesar do gênero, etnia ou idade, tanto do avaliador, quanto do avaliado. A idiossincrasia do padrão de avaliação provém da singularidade do avaliador e parece ter pouco ou nada a ver com a pessoa avaliada. Na verdade, é mais ou menos como se esta nem estivesse ali.”
(Nove Mitos Sobre o Trabalho, Marcus Buckingham e Ashley Goodall — pg162 e 163)

Para ilustrar, vamos ao exemplo:
Quando o funcionário João avalia o funcionário José pela competência ‘criatividade’, ele não está emitindo sua opinião sobre a criatividade de José, mas sim sobre o que ele próprio, João, entende por criatividade e como ele acredita que José deveria ter se comportado a partir da sua própria régua de João. Quando João avalia Maria, outra pessoa, pela mesma competência, seu padrão de avaliação não muda, mesmo Maria sendo uma pessoa completamente diferente de José (às vezes com cargo e função diferentes). O que de fato ocorre é uma transferência do padrão de João para qualquer pessoa que ele esteja avaliando. E isso revela que as notas que João atribui dizem muito mais sobre ele do que sobre José ou Maria.

Mesmo quando a organização opta por conceituar de forma própria as palavras abstratas que compõem o leque de competências a serem avaliadas como: pensamento estratégico, capacidade de cooperação, faro para negócios, inovação, comunicação, empatia, visão de negócios, liderança e por aí vai, e ainda definir de forma detalhada a escala da avaliação — o que é um 4 em detrimento de um 5, por exemplo — o efeito idiossincrático continua existindo. Quanto mais descritivos os modelos de avaliação, mais confusas as pessoas ficam e, por isso, mais comumente elas se voltam para suas próprias definições daqueles termos ou escalas, fazendo o efeito idiossincrático ser ampliado ao invés de mitigado.

O efeito idiossincrático foi identificado em um amplo estudo realizado pelo psicólogo organizacional Maynard Goff em parceria com os professores Steven Scullen e Michael Mount. Juntos eles analisaram avaliações de 4.392 líderes de equipes, feitas em modelo de avaliação 360, considerando subordinados diretos, pares e superiores e chegaram à conclusão que mais de 50% do resultado de uma avaliação é influenciada pela personalidade singular de quem avalia, revelando assim o efeito idiossincrático aplicado a todo e qualquer avaliador.

Vamos, então, ao segundo motivo.

Por que processos de avaliação individual não dão conta da complexidade de interações necessárias dentro de um sistema para que resultados de fato aconteçam?

Organizações são sistemas complexos. No entanto, poucas se veem dessa forma e grande parte delas, tomadas por um estilo de gestão linear e mecanicista, acabam por ignorar os princípios inerentes que regem todo e qualquer sistema, independente de nossa vontade.

Segundo Donella Meadows, grande estudiosa da teoria da complexidade e da compreensão sistêmica, um sistema é caracterizado por constituir elementos que interagem entre si de forma mútua e simultânea para atingir um fim ou um propósito específico*. Numa empresa, as pessoas são os principais elementos desse sistema, que interagem, ou seja, se relacionam, a fim de atingir um objetivo em comum dentro daquele ambiente.

Mais relevante do que o olhar individualizado sobre cada elemento é compreender o que surge a partir de suas interações. A forma como essas relações ocupam o espaço e o tipo de informação que surge a partir delas é que determinam se os resultados — o propósito desse sistema existir — serão atingidos ou não. Dito isto, é possível inferir, valendo de uma expressão comumente usada pela Gestalt, que “o todo é maior do que a soma de suas partes”.

Um exemplo bastante simples de que a relação dos elementos diz muito mais do que os elementos em si é a compreensão de um objeto banal como uma mesa. Uma mesa comum é composta por um tampo, e 4 ripas (pernas). Se todas essas partes estiverem apenas juntas entre si, desmontadas, continuaremos tendo os mesmos elementos com suas propriedades individuais (as ripas e o tampo), mas não temos o TODO que é a Mesa. A função mesa se manifesta apenas quando os elementos estão dispostos e interagindo de uma forma específica, caso contrário não passam de um amontoado de elementos. A metáfora vale para qualquer sistema com elementos que se relacionam entre si.

Pense por exemplo na complexidade de interações que regem o trabalho: Com quantas pessoas você conversa, troca e-mails ou mensagens em um único dia? Quantas pessoas você consulta para uma tomada de decisão relevante? Se alguém der uma resposta atravessada, isso altera o seu humor e, às vezes, até sua vontade de continuar trabalhando? Se você sente que não tem informações suficientes para executar seu trabalho ou não consegue entender o objetivo de curto, médio e longo prazo da área por falta de comunicação clara e eficiente da sua liderança ou equipe, a sua motivação para trabalhar oscila? E se o seu trabalho depende da resposta ou de informações de terceiros para ser continuado e essas informações demoram a chegar, o quanto isso implica problemas na sua entrega?

Logo se vê, que existe uma grande teia — uma rede complexa de pessoas e informações, serviços e ferramentas — e que, a depender de como essas relações se dão, uma mesma pessoa pode ter 'alto' ou 'baixo' desempenho, que nada tem a ver com suas capacidades individuais. É uma grande ilusão a classificação entre alta ou baixa performance, como se o indivíduo fosse responsável sozinho pelo seu desempenho ou como se o trabalho que ele executa fosse independente das suas relações. Mesmo o trabalho mais especialista e técnico depende do meio e de suas interações.

Quando observamos a natureza dos sistemas, vemos que a força coletiva torna os resultados muito mais surpreendentes.

Um exemplo interessante é notar como fungos simples, capazes de digerir apenas um tipo de componente, quando em interação com outros indivíduos da mesma espécie, se convertem numa espécie de super-organismo, com propriedades não esperadas para cada indivíduo. A conformação dos seres em redes, cria uma inteligência coletiva com propriedades únicas nascidas a partir das relações. É como se fosse impossível atingir uma super-capacidade que só surge por meio da interação social entre seres individuais. E nessa conformação sistêmica, se torna impossível distinguir qual dos fungos individuais contribuiu mais ou menos, porque a soma deles se torna um, fazendo jus à frase já citada “o todo é maior que a soma de suas partes”.

O problema é que ainda temos dificuldade de entender que essa lógica da natureza também se aplica a nós humanos, pois trata-se de um princípio inerente a todo e qualquer sistema existente. Nós humanos, sendo parte da natureza e nos organizando em sistemas sociais, não ficamos de fora. Portanto, quando existe interação social, surge uma espécie de dança única que se dá entre os elementos e que desperta em todos os envolvidos novas propriedades.

“O desempenho é sistêmico. A capacidade de gerar valor está dividida, de maneira não uniforme, entre todos os agentes que formam um sistema complexo”.
(Neils Pflaeging)

Por mais que seja difícil admitir, fica clara a conclusão de que processos de avaliação individual, no fundo, não funcionam. Enquanto continuarmos encarando sistemas complexos com um olhar fragmentado, continuaremos sendo ineficientes e rasos no trato com as pessoas e, sobretudo, em despertar nelas o que elas têm de melhor a oferecer.

Mas se sistemas de avaliação individual não funcionam, o que as empresas devem fazer para medir desempenho?

Está certo que faz parte do papel das empresas acompanharem seus indicadores de sucesso, entenderem quais práticas funcionam ou não, revisarem caminhos e estratégias de negócio para se provarem perante o mercado ou até para atrair investimentos, novos funcionários e continuarem a crescer.

Se as empresas precisam acompanhar indicadores de sucesso, parece que a resposta está dada: elas devem medir resultados e não pessoas. Faz mais sentido que as empresas avaliem resultados identificando se os objetivos que tinham no início de um ciclo foram alcançados ou não. Se o foram é porque seus funcionários estão trabalhando bem e entregando o “desempenho” esperado.

Essa análise pode até descer ao nível das equipes, garantindo a entrega coletiva, mas não faz sentido descer ao nível do indivíduo, enaltecendo ou punindo-o por um desempenho, dado que este nunca será fruto de uma ação individual, como acabamos de ver.

“Ah, mas não seria justo que numa equipe tenha alguém que não esteja fazendo sua parte, por isso precisamos medir o desempenho individual”. Esse é um argumento que a princípio parece revelar um certo senso de justiça, mas no fundo é um argumento que reforça a lógica da competição e do individualismo. Numa equipe é natural que em determinados momentos, uma pessoa esteja mais distraída ou menos engajada que outra. Isso ocorre mesmo e é um comportamento orgânico de grupos. Entender isso também faz parte do processo de liberar o controle e aceitar a premissa de auto-organização dos sistemas, mais um princípio da teoria de sistemas complexos.

Pode ser que em determinado momento, alguém esteja passando por uma questão familiar delicada ou esteja confuso em relação a uma decisão de carreira e isso implique diminuição de sua contribuição na equipe, de modo que os demais colegas acabam suprindo essa falta. No entanto, isso oscila. Se hoje acontece com o João e a Maria e o José o cobrem em alguns gaps, daqui a alguns meses, pode ser a Maria quem irá precisar de ‘cobertura’ de seus colegas João e José e organicamente a equipe vai encontrando seu eixo de equilíbrio.

Caso esse desequilíbrio fique muito latente e não se recomponha, a própria equipe, em processos de auto-reflexão coletiva, pode sinalizar que um de seus integrantes está com dificuldade de se adaptar ou de contribuir e então, seus membros juntos poderão tomar uma decisão, seja de desligar um colega ou de propor algum outro arranjo de grupo, sem que o processo formal de avaliação individual de desempenho seja necessário.

Ao invés de gastar tempo criando processos de avaliação individual que sabemos serão criticados por todos os seus usuários na hora de sua aplicação, seja pela sua extensão, pela falta de tempo dos líderes, seja por não gerarem valor de fato, as empresas poderiam investir nas relações: fortalecer o elo das equipes e criar encontros e artefatos que fortaleçam vínculos de confiança pessoal e profissional. Percepções de felicidade, de saúde e de engajamento podem ser muito mais valiosas e bem aproveitadas a curto e longo prazo para fins de análise de dados da empresa do que percepções individualizadas de performance.

Investir em relações significativas, em transparência de informações e apostar na compreensão da empresa como um sistema complexo, respeitando seus princípios inatos como o da auto-organização, o do trabalho em redes e o de que as relações entre seus integrantes dizem mais que o integrante em si, é uma forma de criar um ambiente propício a melhores práticas e resultados. Além disso, vimos acima que existem efeitos do comportamento humano que fogem à razão simplista de uma avaliação. Aceitar que somos seres subjetivos e parciais, carregados de vieses, repertório e marcas individuais, sem querer categorizar e quantificar tudo e todos em números e scores, também contribui para um ambiente mais propício à alta performance como um todo.

*Tradução e adaptação livre do significado de sistemas a partir da obra de Donella H.Meadows “Thinking in Systems”.

--

--

Manuela Landi

People & Culture, HRBP, Storyteller, Project Manager, Nature Lover, and Advocate, Systemic Thinker, Eternal Learner