Crónica de um coxo

Uma história de cidadania (ou falta dela)

Manuel Palmeira
4 min readAug 7, 2017

Tudo começou há cerca de quatro meses com uma dor no joelho que após exames se mostrou ser um problema apenas resolúvel através de cirurgia. Entre os exames, resultados, diagnóstico e cirurgia o problema foi agravando levando a que, pela primeira vez na minha vida, tivesse de usar canadianas para me conseguir deslocar, durante três meses. Durante este tempo passei por algumas experiências que acho que merecem ser partilhadas, umas cómicas, outras nem por isso. Espero que com este texto passem a olhar para alguém com canadianas de outra forma.

Estes últimos meses ajudaram-me a perceber melhor a realidade em que vivemos hoje em dia. Tendo sido educado para ajudar quem precisa, estive sempre numa bolha em que toda a gente se ajuda, ou pelo menos não impede quem necessita de ajuda. Não podia estar mais redondamente enganado.

Nesta experiência apercebi-me que, para muitas pessoas, canadianas significam gesso. Sendo uma lesão no joelho, sem gesso, significa que não tenho qualquer problema e que apenas estou a tentar aproveitar-me dos outros ao usar canadianas. Não digo que não haja quem se aproveite mas ninguém no seu pleno juízo anda a passear de canadianas pela rua. Num autocarro isto traduz-se em ninguém ceder lugar no banco (mesmo nos lugares prioritários), ceder um bocadinho de espaço no banco da paragem ou sequer desviar-se para uma pessoa conseguir passar. Não tendo qualquer cabelo branco faz com que também o motorista não espere que me sente antes de arrancar. Tudo isto sob a máxima “você é jovem, você aguenta”. Resumindo, a experiência de viajar num transporte público passa de banal a actividade radical digna de ser uma nova modalidade nos X Games.

A frase “você é jovem, você aguenta”, uma constante durante todo este processo, para mim foi a cereja no topo do bolo na noite passada no hospital, logo após a cirurgia. Mal sabia eu que, dado o número cada vez maior de oferta nos serviços privados de saúde, estes já andavam a tentar diferenciar-se oferecendo packs experiência. Aparentemente devo ter escolhido o pack interrogatório do Jack Bauer pois não me foi dado qualquer analgésico durante a noite dado que sou jovem e tinha era que aguentar. Havendo opção, para a próxima escolho a que inclua waterboarding, ouvi dizer que é capaz de ser mais soft.

Filas são cada vez mais um conceito abstracto num mundo onde ninguém tem um segundo a perder. Sendo meu o problema do joelho, nunca pedi para passar à frente de ninguém, mesmo tendo direito a tal, no entanto um lugar numa fila deveria ser algo cedido voluntariamente e não algo que alguém tem que pedir para acontecer. Mas tendo em conta as correrias para passar à frente do coxo na fila, seja onde for, este é um pensamento completamente utópico.

Andar na rua, especialmente depois da cirurgia, tornou-se numa experiência curiosamente interessante. Não me vou alongar muito mais na parte da falta de cuidado das outras pessoas que não se desviam, dão encontrões, que pontapeiam as canadianas ou dos condutores que mesmo estando verde para os peões decidem apitar e colar o carro ao coxo, vou sim contar três experiências que não estava verdadeiramente à espera.

Não conseguindo conduzir passei a utilizar a Uber com maior frequência. A primeira coisa que me surpreendeu foi a quantidade de vezes que, estando de smartphone na mão à espera de um motorista, fui abordado por pessoas que achavam que estava a pedir dinheiro na rua seja para dar uma moeda (raro) seja para dizer o já típico “devias de estar era a trabalhar!”.

Outra situação engraçada aconteceu depois de um almoço com a minha namorada. Tendo o carro ficado longe, fiquei junto à estrada à espera que ela me apanhasse. Não sabia eu que tinha escolhido mal o sitio. Porquê? Simples, mesmo estando eu parado sem fazer nada, grande parte dos condutores que por ali passavam faziam-me sinal que não e agradeciam. Do outro lado da estrada tinha um grupo de arrumadores de carros que já começava a reclamar comigo por estar no território deles e foi aí que percebi que, graças às minhas canadianas, tinha sido promovido de simples transeunte a arrumador de carros.

A terceira e última aconteceu há poucos dias atrás quando cheguei ao duche na praia. Depois de todas as outras coisas que foram acontecendo foi algo que me deixou estupefacto. Cheguei ao duche, tinham acabado de chegar antes de mim duas raparigas com os seus quatro anos. Olham as duas para trás e uma diz “deixa passar o senhor que o senhor está aleijado” restaurando assim a minha fé na humanidade. Esta foi a primeira e única vez, até ao dia em que publico este texto, que alguém não familiar ou amigo meu facilita a vida a quem tem dificuldades de mobilidade. Apesar de serem crianças tão novas, deram um banho de cidadania a todas as pessoas com que me cruzei nesta cruzada deixando uma réstia de esperança de que as próximas gerações sejam novamente civilizadas.

E assim venho pedir-vos que saiam um bocadinho do vosso mundo de vez em quando. Tirem os olhos dos vossos ecrãs enquanto andam na rua, observem o que se passa à vossa volta. Não precisam de largar as vossas coisas e levar as pessoas ao colo, basta não lhes dificultar a vida. Um pequeno gesto que não vos custa nada faz uma grande diferença no dia a dia de quem tem dificuldades em deslocar-se.

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Manuel Palmeira

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