Whiplash e a garra

Marcio André dos Santos
5 min readMay 2, 2018

Por Marcio André dos Santos

O que nos torna excelente naquilo que a gente se propõe a fazer? É o talento inato? É o dom? É o esforço? É o treino constante? É a garra? Ao assistir o filme Whiplash: em busca da perfeição, que conta a história de um jovem baterista de jazz com um professor de música exigente ao extremo (inclusive extemporâneo e vão logo entender a razão), faço aqui algumas reflexões sobre superação, esforço e dedicação.

Não se preocupem, não vai rolar spoiler do filme. Na verdade a história do filme é muito simples, como já sinalizei acima. Como professor e educador fiquei me questionando até que ponto vale a pena levar os alunos até o limite de seus esforços intelectuais. Por outro lado, levando em conta minha própria formação escolar e universitária, lembro que em determinados momentos da minha vida escolar, até o final do ensino médio, não ter feito os esforços devidos para ter um rendimento que se possa chamar de excelente em certas disciplinas. Era um aluno de mediano a fraco e me contentava com isso. De quando em vez me esforçava um pouco, mas nada que me tirasse o sono. Já na universidade o cenário era outro. Sabia das limitações de minha formação intelectual e tinha consciência de que precisava “correr atrás do preju” para ficar no nível dos demais colegas. Meu capital cultural, para aquele ambiente, era baixo, se comparado aos meus colegas de classe média, boa parte brancos. No início lia os textos que davam para ler, no ônibus, nas filas dos bancos (era office boy no início da graduação), sempre correndo, raramente chegava ao final. Lá pelo terceiro semestre, depois de ganhar muita bronca dos professores pelo meu baixo desempenho, é que comecei a me dedicar mais sistematicamente as leituras. Lia em qualquer lugar. Diziam que eu era meio maluco por estar sempre com um livro debaixo do braço, mesmo quando era um espaço que em nada combinava com um livro.

Minha experiência como professor me revela que não há necessariamente uma fórmula que funcione para todos em termos de aprendizado. Tem aluno/a que já traz consigo uma determinação de se tornar um grande profissional. Outros desenvolvem isso ao longo de sua formação. E têm aqueles/as que se contentam em ser medianos e até mesmo se boicotam (ou são boicotados) e aí largam tudo. Leem quando querem, esforçam-se pouco ou quase nada, não investem seu potencial para avançar. Não é fácil explicar o que acontece. Mas penso que personalidade combinada aos condicionantes sociais como classe, raça, gênero, dentre outros, podem ter um forte peso. É preciso considerar o contexto social, racial, econômico e psicológico para compreender o que faz com que alguns queiram se superar e outros fiquem onde estão.

O filme Whiplash leva a ideia de superação ao extremo e com exageros facilmente condenáveis por qualquer um de nós. Quantas horas são necessárias para que possamos ficar bons ou até excelentes em uma dada atividade? Quer aprender a tocar violão, guitarra, bateria? Quer falar inglês, francês ou lingala em um ou dois anos? Quanto tempo terá que investir para “chegar lá”? Não estou descartando as condições do aprendizado: espaço adequado para formação, livros, professores/as. Para qualquer coisa que se queira aprender é preciso “ralar” e muito! Esqueça os talentosos natos, se é que existem. Esqueça quem já nasceu com um certo “dom” para tocar algum instrumento. Me refiro às pessoas comuns como eu e você. Me refiro a muitos jovens que colocam na cabeça que não podem aprender isso ou aquilo, sentindo-se sem vocação para nada. O livro Mindset: a nova psicologia do sucesso, de Carol S. Dweck, mostra que é preciso desenvolvermos mais o que a autora chama de mindset de crescimento. Talvez você e eu não sejamos bons o suficiente ou excelentes em alguma coisa, ainda. Note bem esta palavra: ainda. A maravilha desta palava é que o ainda deixa em aberto a possibilidade de dar continuidade aquilo que se tenta ou se quer fazer ou aprender. Evidente que poucos de nós se tornará um Charles Parker ou um Miles Davis ou uma Maria Bethânia. Não basta só querer. Por outro lado, a persistência em querer se superar é fundamental.

Tento mostrar aos meus alunos, assim como aos meus filhos, que não existe avanço ou superação em termos de aprendizado sem esforço continuado. É um clichê, eu sei, mas funciona bem na prática. Eu mesmo vivo me desafiando quanto a isso. Quero aprender várias coisas, ler vários livros, tocar pandeiro, violão...

Não tem segredo de Estado. É se organizar e trabalhar para fazer acontecer. Como escrever um bom artigo sobre, sei lá, democracia, sem ler vários textos sobre isso? Como fazer um projeto de pesquisa ou um TCC de qualidade sem se dar ao trabalho de passar horas, dias, semanas e até meses labutando o tema que escolheu? Em uma época em que se plagia praticamente tudo pela internet, muitos estudantes resolvem ter a “brilhante” ideia de pegar este atalho para dar conta de suas obrigações acadêmicas. Certamente o pior tipo de auto-engano. Uma aposta na mediocridade intelectual.

Ser um músico de jazz é bem diferente de ser um acadêmico. Há, porém, uma característica comum que deve ser desenvolvida pelas pessoas de ambos os campos: uma coisa chamada garra, ou seja, ter determinação, vontade. Tudo isso se cultiva. É fácil? Não, não é fácil. É igual para todo mundo? Também acho que não. Mas que é possível, é.

Veja Whiplash e tire suas próprias conclusões. Se puder e quiser depois comente aqui.

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Marcio André dos Santos

Poeta, professor, cientista político e ativista do movimento negro.