Saturno e os carnavais

Marcela Mota
5 min readFeb 13, 2024

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Desfile protesto Beija-Flor de Nilópolis, “Ratos e urubus, larguem minha fantasia” (1989)

Leia acompanhado da bela melancolia carnavalesca de Chico aqui.

Muito pode ser dito, à luz da Astrologia, a respeito do carnaval, dadas as várias associações possíveis que podemos encontrar na corresondência dos astros. Quando falamos sobre esses dias de grande festa, belíssimos desfiles e prazeres da carne (muito embora a palavra carnaval venha do latim carnem levare, que significa “abster-se, afastar-se da carne”, enfatizando o exercício do controle dos prazeres mundanos pela Igreja Católica), estamos pensando em Vênus. Quando, após sublimarmos a arte, nos concentramos no ressoar da levada de cada instrumento cuja batida se comunica com os corações foliões pelas ruas afora, estamos pensando em Mercúrio. Quando nos permitimos a embriaguez dos breves momentos de entorpecência eufórica, é à Lua que nos referimos. Para cada exagero ou excesso (todos, via de regra, perdoados durante estes tão curtos e esperados dias), a presença de Júpiter. Marte, com sua marcha obstinada, é o abre-alas dos desfiles, enquanto o Sol, aqui refém da sua própria auto-importância, ilumina cada grande palco ou trio elétrico onde os artistas costumam se apresentar diante das multidões que os acompanham.

Mas, principalmente, quando estamos falando do carnaval, estamos falando, em essência, de Saturno.

Obra de Jean Baptiste Debret (1826), ilustrando o entrudo.

O carnaval por nós hoje conhecido é um festival do cristianismo ocidental que precede a quaresma, normalmente envolvendo festas de rua públicas, máscaras e elementos circences. Em quase todas essas celebrações, prevalece a sátira social, o deboche às autoridades e uma inversão das regras do dia-a-dia. Do ponto de vista antropológico, o carnaval é um ritual de reversão, no qual os papéis sociais são invertidos e as normas de comportamento são suspensas. Sabendo-se que o Sol, o regente de Leão, é o luminar que não apenas é o doador de vida e representa a fama, mas sobretudo as figuras revestidas de autoridade, no exercício de um poder legitimado e constituído (como reis, imperadores e governantes), Saturno, em contrapartida, sendo o regente de Aquário (signo oposto a Leão) representa tudo aquilo que o Sol não alcança por completo. Da mesma forma que Saturno se exila no signo do Sol, o Sol também encontra exílio em Aquário, deixando claro a sua relação de afastamento não apenas zodiacal, mas também simbólico no que diz respeito à interpretação astrológica de seus significados. Ambos são inimigos um do outro.

O primeiro registro do entrudo, a antiga festa popular portuguesa que antecedia os três dias da entrada da quaresma, se deu em 1533 com a chegada dos primeiros colonos à capitania de Pernambuco, no Brasil colônia. No Rio de Janeiro, tanto as pessoas escravizadas quanto as famílias de origem europeia participavam da festa.

Jogos durante o entrudo no Rio de Janeiro, por Augustus Earle (1822).

“Num mundo cada vez mais individualista, o carnaval assusta porque afronta a decadência da vida em grupo, reaviva laços contrários à diluição comunitária, fortalece pertencimentos e sociabilidades e cria redes de proteção nas frestas do desencanto.

A festa é coisa de desocupados? Fale isso para trabalhadoras e trabalhadores da folia. O carnaval é também, para muita gente tratada como sobra vivente, alternativa de sobrevivência material, afetiva e espiritual.

Escolas de samba, por exemplo, surgem como instituições comunitárias das populações negras. Mesmo com todos os dilemas, possuem ainda setores orgânicos que, a partir delas, elaboram sentidos de mundo.

Por isso, afirmei que o carnaval está sob ataque faz tempo: os higienistas da Casa Grande querem eliminá-lo; os tubarões do mercado querem gentrificá-lo; os mercadores da fé querem atrelá-lo ao imaginário do pecado.

O Brasil não inventou o carnaval, é certo, mas o povo brasileiro o vivenciou de tal forma (na pluralidade de suas manifestações) que ocorreu o inverso: foi o carnaval que inventou um país possível e original, às margens do projeto de horror que nos constituiu.

É perturbador para certo Brasil — individualista, excludente, raivoso, intolerante — lidar com uma festa coletiva, inclusiva, alegre, diversa, rueira. Tenso e intenso como lâmina e flor, o carnaval assusta porque nos coloca diante do assombro da vida.”

(O Carnaval assusta, Luiz Antonio Simas)

Saturno, por ser o regente de Aquário, o signo do aguadeiro celeste que jorra generosamente a sua água a todos os que dela necessitam, representa também a coletividade humana que não é vista pelo Sol do alto de seu grande pedestal dourado. Contextualizando aos dias atuais, toda a população que é de alguma forma oprimida ou não contemplada pela efetiva ação estatal, e vive às margens de alguma desigualdade social: os mais pobres, as pessoas em situação de rua, os imigrantes clandestinos, pessoas com condições psiquiátricas, PCDs, pessoas negras, pessoas LGBTQIA+, populações indígenas, quilombolas, etc. Não é a toa que o grande maléfico também se rejubila na casa 12, que é justamente o lugar que representa o abandono, a solidão e o desamparo que vulnerabiliza a experiência da vida humana.

Desfile da Acadêmicos do Salgueiro no último domingo, que levou para a Sapucaí a luta do povo Yanomami.

Um dos termos que também associamos à Saturno é a realidade.

O regente de Capricórnio e Aquário, dois signos invernais, é quem comanda as estações mais duras e privadoras da existência, ao longo de todo o ano. Astro maléfico, frio e seco, é ele quem descortina a realidade diante dos nossos olhos, fazendo-nos olhar as coisas como elas realmente são, e não como gostaríamos que fossem. Não por acaso, o carnaval, ainda que seja indiscutivelmente uma linda festa, escancara a desigualdade através de seu sarcasmo, tornando-se ao mesmo tempo, por sua inversão de papéis, a festa mais democrática de todas, sendo a maior festa popular do país — o maior espetáculo da Terra.

O carnaval é a festa do povo, feita pelo povo e para o povo.

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Marcela Mota

Uma pausa para o café, os arcanos e as estrelas. Eu sou a @marceladoceu .