MACACOS

Marcella Freire
2 min readMay 10, 2023

O palco povoado de gente. Apenas um ator em cena. Quem dera o texto tivesse o poder de convocar a estar presente, como em uma chamada, cada pessoa que vi incorporada por Clayton Nascimento. Ele que tantas vezes repetiu que é preciso dar nome às coisas para que elas existam, foi além: deu dramaturgia, direção e o próprio corpo. Vestindo apenas uma bermuda preta, sem camisa, descalço, sem qualquer elemento cênico além de um batom vermelho, Clayton traz uma multidão para o palco do Teatro Ipanema e nos leva a percorrer com ela por mais de 500 anos de história.

Macacos é uma denúncia. Um crime é arrastado por séculos na humanidade. Ma. Ca. Cos: ouvimos entoar cada sílaba, antes mesmo do ator entrar em cena. Clayton é cirúrgico ao dissecar a anatomia do racismo estrutural no país, desde (antes) de 1500. A plateia se transforma numa sala de aula, interessada e participativa, que ele passa a chamar de sétima F. Refutando os papéis que sempre lhe foram impostos, ele assume o de professor. No lugar de uma arma em punho, um batom. Seu corpo vira um quadro riscado de vermelho, indicando direções e apontamentos de uma história escrita com sangue.

Mais uma vez, o palco é o escancarado templo da possibilidade, onde é permitido ser tudo: grandes artistas pioneiros do jazz, do samba ou do rock (todos pretos), advogados, professores. No palco, Clayton pode até mesmo ser quem ele realmente é: o ganhador dos prêmios Shell e APCA de teatro. Fora dele a realidade é outra, avisa: “se sabemos como tem acabado a vida do negro no Brasil, nós já sabemos como vai terminar esta peça”.

Surpreende que a peça consiga ser também divertida, ainda que tome caminhos necessariamente desconfortáveis e comoventes. Caminhos, principalmente, moventes: capazes de impulsionar o movimento, de nos fazer agir diante do intolerável. Dispondo desta poderosa egrégora criada, fizemos um juramento. Clayton, ao contar a própria trajetória, provou que tudo é possível para quem persevera. Lutaremos por justiça para Eduardos e paz para Terezinhas quantas vezes forem necessárias. Até quando? Até o dia que paz deixar de ser coisa de branco.

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Marcella Freire

Jornalista que faz teatro. Atriz que faz jornal. Pesquisadora do entrelaçamento entre arte e política. Chega mais :)