A doutrina da felicidade

Marcelo Schenberg
6 min readMay 21, 2019

Abrace seu pesar, pois é nele que sua alma irá crescer — Carl Jung

Recentemente eu tenho me dedicado a divulgar imersões que eu facilito.

Sim, eu ofereço retiros na natureza. Faz parte do meu trabalho como alquimista da consciência.

Estou com dificuldade em colocar o meu “produto” no mercado. Ele tem todos os ganchos errados pra vender.

É que eu não estou oferecendo felicidade, nem transcendência, nem paz (as hashtags que mais vão bem com “retiro”).

Também não estou oferecendo luxo ou mimos com o corpo e com a alimentação (ainda que a alimentação vegetariana seja “gourmetizada”).

Eu estou oferecendo exatamente o que não vende: estou convidando as pessoas a saírem da zona de conforto para sentirem mais… tristeza¹.

Peraí, você disse isso mesmo? Sim, eu disse isso mesmo.

Estou convidando você a ficar triste, e cobrando um punhado de reais por isso.

E aí? Vamos!?

Pois é.

Agora eu te pergunto: você percebeu, enquanto lia estas palavras acima, como nossos vieses trabalham na nossa cabeça?

Nós demonizamos a tristeza. Ela é “tudo de errado” numa sociedade em que a gente deseja “tudo de bom”.

Felicidade não se compra… oops!

A tristeza nos faz vulneráveis. Ela revela algum “problema”. Não é produtiva. É disfuncional. É sinal de fracasso.

Nós medicamos a tristeza, escondemos a tristeza, lutamos contra ela, morremos de medo dela.

Mas a verdade é que, no nosso contexto coletivo, capacidade de sentir tristeza genuína é o que mais precisamos.

A tristeza é o portal para a vida, nossa maior esperança, e nossa maior fonte de criatividade, se soubermos como deixá-la fluir.

O problema é que, numa sociedade idealizada como “de gente feliz”, a tristeza está contida em águas represadas.

Sem podermos sentir tristeza, acabamos reduzindo nossa capacidade de sentir muito mais.

Como Barry Childers afirmou, “nós nos imunizamos contra as exigências de uma situação estreitando nossa consciência”². Ao estreitarmos nossa consciência, funcionamos numa banda de frequência reduzida, onde não cabe nada que seja verdadeiramente expansivo ou profundo.

Viramos ratinhos correndo pra lá e pra cá pela superfície, atrás do queijo nosso de cada dia.

Com licença, tô atrasado pra minha felicidade…

Como eu disse, nos tempos em que vivemos, temos motivos de sobra pra sentir tristeza. A Terra está triste, e ela está nos convidando a partilhar deste pesar com ela.

Emprestando a terminologia da Teoria Geral dos Sistemas, a ecofilósofa e educadora Joanna Macy nos lembra que “ninguém está isento desta dor, assim como não podemos existir sozinhos no espaço vazio.”³

Joanna está se referindo a dor de confrontarmos as perdas irreversíveis da catástrofe ecológica. Ela continua:

Esta dor é inseparável das correntes de matéria, energia e informação que fluem através de nós e nos sustentam como sistemas abertos interconectados. Nós não estamos fechados para o mundo, mas somos componentes integrantes do mesmo, como as células em um corpo maior.

Agora deixa eu te contar um segredo: quando libertamos esta tristeza represada, quem diria, junto dela flui muito mais. Flui mais júbilo, mais êxtase, mais compaixão, mais empatia, mais esperança, mais pertencimento.

Quando paramos de represar a tristeza, aprendemos a estar em casa no mundo.

Note como nós sorrimos sempre pra fotos, como se fosse uma obrigação. Meus filhos desde pequenos aprenderam que é uma obrigação, então quando as pessoas apontam a câmera e falam “sorria!” eles mostram os dentes. Eles nasceram nisso. Numa cultura da imagem, então simplesmente mostram os dentes.

Edward Curtis/Library of Congress

Nós não vemos os povos originários deste continente sorrindo pra fotos. Isto não significa que eles eram infelizes, mas que não tinham este programa instalado no subconsciente. Nós, por outro lado, rodamos esta diretriz que diz que, quando todo mundo estiver olhando, você precisa arreganhar os dentes pra mostrar que é feliz.

Eu invoquei a presença dos povos nativos aqui porque eles são mestres em sentir. Ao contrário do que Descartes (homem, branco, europeu, solteiro) presumiu, para as populações conectadas com a Terra os sentimentos não são “enganosos”, mas são seus guias mais confiáveis.

Os povos nativos sentem quando o tempo vai fechar ou quando algo está errado, sonham com a planta que precisam pra curar uma doença, recebem da voz da Terra o nome para seus recém-nascidos, ou mesmo para si próprios após ritos de passagem iniciáticos. São capazes de passar dias em silêncio se comunicando com algo que é inacessível para nós.

Não se trata de crença ou superstição, mas simplesmente que eles estão abertos ao que Joanna Macy chamou ali em cima de “correntes de matéria, energia e informação que fluem através de nós e nos sustentam como sistemas abertos interconectados”.

Estamos destruindo o planeta porque colocamos a nossa felicidade no topo da pirâmide de valores. Custe o que custar. A felicidade virou a cenoura amarrada diante de nós, pra cima da qual avançamos desatentos ao fato de que ela se move conosco (quem a pilota são nossas diretrizes internas, os programas que rodamos em nossas mentes). Nesta corrida obsessiva, esquecemos de observar o que está acontecendo ao nosso redor, e esquecemos também como é simplesmente viver, receptivos ao que está chegando.

Sistemas abertos são adaptativos porque eles recebem fluxos de informação e mudam quando percebem que o ambiente mudou. Mais do que isso, interagindo, eles tecem relações que moldam o próprio ambiente.

Sistemas fechados, por outro lado, rebatem o fluxo de informação e insistem em permanecer funcionando como antes, até serem totalmente destruídos pelo novo contexto externo.

Se não aprendermos a honrar nossa natureza como sistemas abertos, e insistirmos que precisamos ser felizes, a custo de nos isolarmos do restante da Terra, vamos sofrer as consequências destinadas aos sistemas fechados. Este é um padrão de comportamento recorrente na natureza, e não uma profecia apocalíptica minha.

Meu professor Brian Swimme, do California Institute of Integral Studies, nos lembra que⁴:

A comunidade global anseia por esse tipo de experiência mais profunda. Todos nós — seres humanos e outras espécies também — queremos ser vistos. “Aqui estamos nós!” Nós choramos. “Notem-nos!” Perceber um ao outro é perceber tanto a beleza quanto o terror, tanto o deslumbramento como a incrível tristeza. Mas até que tenhamos a experiência de reverência e tristeza, a destruição do planeta continuará.

Se você considerar estas questões, talvez um retiro que nos ensine a sentir mais tristeza não seja uma roubada, afinal.

Sentir tudo, incluindo alegria e tristeza profundas, é a nossa medida como sistemas abertos. O ganho é que ao nos permitirmos sentir mais, ganhamos mais felicidade genuína no longo prazo também, pois ganhamos mais vitalidade e mais senso de comunhão com a vida.

[1] Obviamente não é só tristeza que experimentamos no retiro — nós testemunhamos muitas risadas genuínas lá — mas esta é uma etapa que precisa ser atravessada. A idéia central é que experimentar tristeza e frustração sem resistência funciona como uma forma de empoderamento.

[2] e [3] WORKING THROUGH ENVIRONMENTAL DESPAIR. Joanna Macy. Em Ecopsychology: Restoring the Earth, Healing the Mind, ed. Theodore Roszak, Mary E. Gomes, and Allen D. Kanner (San Francisco: Sierra Club Books, 1995).

[4] EXPERIENCING DEEP TIME — Brian Swimme On The Story Of The Universe. Entrevista a Renee Lertzman para The Sun Magazine, Maio de 2001.

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