Linha de frente

Marcelo Roncatti
13 min readMar 21, 2017

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Como uma extensão do Dia Internacional das Mulheres, pego um gancho para falar sobre luta e sobre design. O universo gráfico, ao lado da literatura, contribui ativamente na linha de frente das diversas lutas da mulher ao longo da história. Pela paz ou pela revolução, clamando por luta ou por direitos básicos, pelo direito ao aborto ou pela vida, assuntos globais e sociais, pelo simples direito de expressão ou pelo protagonismo, na Palestina, nos Estados Unidos, no Brasil. Onde existir tinta e papel existirá uma expressão, existirá uma mulher lutando, existirão artistas gráficos contribuindo para colocá-las como protagonistas. Contar parte desse rico universo não é tarefa fácil! É como mergulhar na história, e portanto, é selecionar projetos dentro de um vasto volume de conteúdo. Porém, fica claro que assuntos hoje em pauta, já foram motivo de debate em muitos outros momentos.

Pela Palestina

A criação do estado de Israel em 1948 foi seguida de uma série de conflitos árabe-isralenses e esse processo de tensão imediata seguiu por 4 décadas, contribuindo para a produção de diversos posters de conteúdo politico-sociais. A mulher esteve presente como protagonista em diversos momentos nestes episódios. A história dos posters palestinos datam do século dezenove. O site PPPA (Palestine Poster Project Archives) é marcante visualmente por conta disso, disponibilizando um vasto campo para pesquisa e análise de publicações gráficas com informações sobre data de publicação e artistas. Ali existe uma série de posters históricos dentre os quais destaco o poster de Marc Rudin (que posteriormente trocou seu nome para Jihad Mansour) de 1980, artista e ativista envolvido com a Frente Popular pela libertação da Palestina nos anos 1960, para a conferencia da nações unidas pelas mulheres, feito para a GUPW — General Union of Palestinian Women. Também o vasto e belíssimo trabalho de Burhan Karkoutly da Síria nos posteres para a GUPW de 1978 e o poster grego para o dia em solidariedade pela palestina.

General Union of Palestinian Women 1980 e International Women`s Day 1981, Marc Rudin
Mother and Fighter, Burhan Karkoutly, 1978 e o dia em solidariedade pela palestina, 1980

Guerrilla Girls

Falar sobre luta sem mencionar o Guerrilla Girls seria imperdoável. O grupo formado por artistas mulheres de abordagem provocadora e visual impactante, criado em 1985 na cidade de Nova Iorque, tomou o espaço urbano com posters, outdoors e intervenções artísticas que questionam o protagonismo de gênero e o desequilíbrio racial no universo artístico e as vezes temas cotidianos como violência doméstica. Mantendo-se quase sempre anônimas, no melhor estilo Luther Blisset, todas representantes usam máscaras de gorilas, e portanto, todas são Guerrilla Girls, acabando com a singularidade. O grupo esta ativo até hoje.

Do Women Have to be Naked to Get into the Met. Museum? — 1989
Unchain outdoor (2015) e The Birth of Feminism — Poster — 2001
Guerrila Girls denunciando temas cotidianos da violência domestica e expondo seus nomes para o público.

A produção em Chicago

Os Estados Unidos, claro, têm grandes exemplos: o Chicago Women’s Graphics Collective fundado em 1970 por integrantes da CWLU (Chicago Women’s Liberation Union) tem uma série de posters aclamados internacionalmente. O grupo eclodiu no meio do choque de sistemas que vivia a cultura ocidental onde se contestava uma série de padrões usuais da época, entre eles a saúde pública, a guerra do Vietnã, o papel das mulheres no mercado de trabalho e o respeito às mulheres no direito de serem livres em suas expressões. Sim, estamos falando de 1970/1975.

”…art needed to respond to the negative attitude towards women in advertisements, television and the media…” — Estelle Carol. Graphics collective member

As mulheres de Greenham

Existiu também um grupo de mulheres feministas pacifistas na Inglaterra muito ativo, que gerou uma publicação muito marcante, pois contava parte do que foram as mulheres de Greenham Common.

“I’ve been accused of being cruel and hard-hearted for leaving my children behind, but it’s exactly for my children that I’m doing this. In the past, men have left home to go to war. Now women are leaving home for peace.” — Sarah, Greenham Peace Camp

Foto de Lesley McIntyre
Capa e página interna da publicação The Greenham Factor — 1983/84

As mulheres de Greenham têm grande valor. A marcha do grupo Women for life in Earth de 117 quilômetros até a base aérea britânica de Greenham Common protestando contra silos nucleares americanos instalados ali foi uma ação pacifista que chegou à grande mídia. O ato não-violento mas ultra radical confrontando a máquina militar demonstrou para todo o mundo a capacidade de mobilização, organização, força e coragem de mulheres que marcaram época e entraram para a história. A vigília durou 19 anos e o acampamento encerrou seu ato em 2000.

Pesquisando consegui encontrar a publicação The Greenham Factor em pdf.

Banner, 1983 por Thalia, Jan Campbell e Jan Higgs para Women for life on Earth em Greenham Common ao lado Bottons e a direita uma foto do ato.
Poster que comemora o primeiro ano do ato em Greenham Common. Ao lado menina segura posters anti-nucleares na frente da base e mulher é presa durante ato.

Armamento gráfico!

Outro grupo que marca história por sua singularidade é o Madame Binh Graphics Collective. O coletivo de artistas mulheres comunistas produzia posters, folhetos, arte de rua e impressões com mensagens sobre direitos das mulheres, solidariedade com movimentos de libertação nacional, propagação da luta feroz contra o racismo e era abertamente contra o “imperialismo americano”. Criado em 1975, o Madame Binh Graphics Collective também ministrava aulas de serigrafia, workshops em design, desenvolvimento e criação de banners e propagandas para mulheres e membros envolvidos em causas anti-fascistas. O poster em litografia offset colado em parte da cidade de Nova Iorque que abrigava Assata Shakur após sua fuga da prisão é memorável e está entre alguns dos grandes momentos da luta por liberdade negra nos Estados Unidos. Assinado como Republic of New Afrika, o MBGC produziu um sem-número de trabalhos anônimos, assim como Yuri Kochiyama que produzia textos anonimamente para Malcolm X. O grupo, que chegou a ficar sectarista e quase militar, teve quatro de seus membros presos em 1981 e até 1983 se transformou efetivamente em um coletivo com todos os participantes na prisão.

Assata Shakur is Welcome Here (lito offset), no centro, Stop the Murders in Atlanta sticker de serigrafia 81, e a direita poster para marcha ao Pentagono.

A prisão de Rikers Island em NYC, o controle, o caos constante do encarceramento e toda a rotina mental de provocações não conseguiram parar o grupo que então criou o que chamou de “prision art”. Com materiais permitidos produziam colagens feitas com revistas disponibilizadas na prisão, usando pasta de dente como cola em alguns momentos.

“There are no special people, only different circumstances.”

Poster marcha das mulheres ao Pentagono e notícia da prisão de membros do MBGC no The New York Post, 26/09/ 1981
Convocatória para aulas de serigrafia.

A porraloca brasileira

No Brasil, o período em que Angeli manteve a Rê Bordosa “viva” é bastante marcante. Aversa às convenções, a personagem claramente representava a tentativa de desconstrução de uma sociedade tradicional, conservadora e machista. Criada na década de 1980, Angeli fez história no jornal da Folha de São Paulo, apresentando Rê Bordosa em tirinhas do jornal e na revista Chiclete com Banana. Em épocas de “meu corpo, minhas regras” Rê Bordosa seria a velha escola deste comportamento.

Topografia flutuante

Mas Rê Bordosa foi criada e feita por Angeli, e hoje o que não faltam são grandes artistas, designers e ilustradoras mulheres dispostas não apenas em colocar seus trabalhos no mercado, mas em questionar o status quo do homem como protagonista, desconstruindo paradigmas e esteriótipos. Em junho de 2016 o Selo Piqui lançou a publicação Topografias em papel pólen bold com gramatura de 90g/m². Uma antologia de histórias em universos paralelos, onde o fio condutor é a travessia topográfica de cada personagem por uma belíssima paleta de cores construída pelas mãos de seis habilidosas e distintas autoras, promovendo questionamentos sobre a vida sempre colocando a mulher como ponto central da história. A publicação tem como autoras as artistas Bárbara Malagoli, Julia Balthazar, Lovelove6, Mariana Paraizo, Puiupo e Taís Koshino. É possível encontrar no trabalho de cada artista questões profundas sobre o universo das mulheres. Lovelove6 por exemplo, lançou em 2015 um livro compilado da Garota Siririca, onde com muito humor fala da masturbação feminina.

A capa de Topografias feita por Ingrid Kita, pag. interna da história Chuva de verão de Julia Balthazar e capa do livro compilado Garota Siririca de Lovelove6

Uma das participantes de Topografias, e minha amiga, Bárbara Malagoli acaba de lançar pela Bebel Books a publicação Flutuantes em risografia. O título faz referência ao sublime universo feminino, muitas vezes líquido, outras tantas irresoluto e apresenta mulheres em suas diversidades, “curvilíneas, bundudas e tudo mais” como ela mesmo define. Cada uma a seu jeito, serão 12 cartões separados em tamanho A5 dentro de um envelope também impresso em risografia pela Riso Tropical.

Ela também contribuiu recentemente para o projeto womaninterrupted.

O título da publicação me fez lembrar de Nísia Floresta, considerada uma das primeiras feministas do Brasil, escrevia sobre a escravidão e a opressão vivida pelo sexo feminino.

“Flutuando como barco sem rumo ao sabor do vento neste mar borrascoso que se chama mundo, a mulher foi até aqui conduzida segundo o egoísmo, o interesse pessoal, predominante nos homens de todas as nações.”
escreveu em “Passeio ao Jardim de Luxemburgo”, 1857.

É quase incontável o número de mulheres no “universo gráfico” brasileiro, contribuindo ativamente. De editoras como a Ubu e Bebel Books, até comunidades como a IdeaFixa e a Feira Plana, todas geridas e administradas por mulheres. A cena brasileira parece cada vez mais forte e ativa.

Utopia Banished

Atualmente o design como figura essencial para o universo feminino continua enriquecedor e cheio de caminhos a serem explorados. Um deles é o livro The Feminist Utopia Project: Fifty-Seven Visions of a Wildly Better Future editados por Alexandra Brodsky e Rachel Kauder Nalebuff que seguem a publicação Utopia e todas suas possibilidades imaginativas criadas por Thomas More. O livro usa o ideal como crítica para o real, com “sonhos” escritos em formas de textos, entrevistas, ensaios, tirinhas, ilustrações, poemas e manifestos que imaginam um “futuro feminista”.

Xilogravura de mapa da segunda edição do livro Utopia (1518)

“There’s value in imagining utopias precisely because we’re far from it.” — Rachel Kauder Nalebuff

The Feminist Utopia Project e frames de cartões para divulgar o livro.

Vida longa ao clube da luluzinha!

Outro grande trabalho de design marcante publicado recentemente é o projeto de branding e identidade feito pela Pentagram para o clube de mulheres The Wing. Desenvolvido pela designer Emily Oberdam com participação de um time formado inteiramente por mulheres designers, o projeto tenta trazer em sua representação gráfica os desdobramentos e diversidade da mulher em suas formas e personalidades distintas sem cair no estereotipo. O monograma do W é um variável desta representação e parte da solução foi usar a linguagem vernacular nas ilustrações. Os clubes de mulheres datam do século 19 e suas histórias estão diretamente conectadas aos progressos da democracia por um mundo mais igual.

The Wing logo e material

Para entender a importância deste papel, fiz uma tradução livre do site do The Wing que cita as raízes destes clubes.

Quando o movimento dos clubes começaram, as mulheres procuravam ali instrução, educação e cultivavam suas identidades fora de casa. Mas como os tempos mudaram muitas mulheres fizeram dos clubes suas prioridades. Quando as comunidades precisavam de bibliotecas, elas as construíam (75% a 80% das bibliotecas de todo o país); quando o bem-estar social entrava em crise, elas o forneceram; quando as mulheres exigiam maior controle sobre seus corpos, lutaram por ele. Cada nova geração de mulheres encontrou o poder na comunidade e, em conjunto, essa determinação fez do mundo um lugar melhor e mais inclusivo. Hoje nós continuamos a defender os nossos direitos conquistados, e na tradição dos clubes de mulheres que começaram antes de nós, nunca desista de seguir em frente na luta.

Papel de parede, lápis e caixinha de fósforo

“Women are by nature progressives.” — Eleanor Roosevelt 1922

Camisetas reproduzem antigo visual dos clubes de mulheres e sacola Bag Lady.

16 anos de Workshop de serigrafia

“Não deixe o racismo nos dividir”, “Enquanto a mulher não for totalmente livre, o povo não será livre”. Estes poderiam ser chamados para as marchas das mulheres deste março de 2017 mas são de 1970.

Em 1974 três ativistas fundaram em Londres o See Red Women’s Workshop, um coletivo de serigrafia feminista. Um anúncio em uma revista feminista na época chamava por colaboradoras para a criação de posters que confrontassem os estereótipos. O objetivo era combater imagens sexistas sobre a mulher e criar um universo de alternativas e debates positivos através de posters. O See Red Women’s Workshop criou uma enorme produção de artes gráficas cheia de estilo, humor, sexualidade e identidade única. O grupo continua ativo e acaba de lançar um livro, pela Four Corners Books, compilando posters de 1974 até 1990.

Anne Robinson, uma das autoras do livro e membro do See Red desde os anos 80, diz que os posters da revolta dos estudantes de Paris em 1968, assim como o grande protesto das mulheres de Greenham Common foram sua inspiração.

Existem grandes histórias e produções feitas e nascidas desse universo. Posters, outdoors, publicidade e anúncios com convocatórias para lutar pelo direito ao aborto, contra o racismo, publicações anti-homofobia, cartazes contra controle de natalidade, etc... Este texto é apenas um recorte do rico universo gráfico de parte da linha de frente destes confrontos.

Dedico este texto a Michelle minha companheira e grande mulher que é, e a minha pequena filha que amo tanto e desejo que seja uma mulher livre e agradecida por aquelas que lutaram por ela ao longo da história.

Até a próxima.

Abaixo parte da bibliografia deste texto:

Graphic Agitation (Social and Political Graphics since the Sixties); Liz McQuiston; Phaidon Press (1995)

The Design of Dissent: Socially and Politically Driven Graphics; Milton Glaser, Mirko Ilic, Tony Kushner; Rockport Publishers (2006)

Graphic Agitation 2: Social and Political Graphics in the Digital Age; Liz McQuiston; Phaidon Press (2004)

Revolution as an Eternal Dream; Mary Patten; Half Letter Press (2011)

Visual Impact: Creative Dissent in the 21st Century; Liz McQuiston; Phaidon Press (2015)

See Red Women’s Workshop Feminist Posters 1974–1990; Prudence Stevenson; Susan Mackie; Anne Robinson; Jess Baines; Four Corners Books (2017)

Estilos, Escolas & Movimentos ; Amy Dempsey; Cosac Naify (2011)

The Greenham Factor; Print Prop. London (1983)

Documentário: She’s Beautiful When She’s Angry; Mary Dore (2014)

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Marcelo Roncatti

Multi-faceted Designer Co-founder > @colletivodesign Partner > @ideafixa São Paulo — Brasil