A poesia contemporânea em A Intermitência das Coisas

Marcelo Frota
3 min readJun 18, 2019

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A simplicidade no trato poético é algo difícil. Muitos poetas buscam através de vocábulos mais “complicados”, construir uma linguagem mais elaborada para seus versos, compondo assim uma imagem poética mais rebuscada. Tal busca, válida e muitas vezes necessária para a construção do poema se torna no decorrer do tempo, parte intrínseca do estilo do poeta e acaba por fazer parte de toda sua obra. Válido também é o outro lado da moeda.

A simplicidade e a contemporaneidade na escrita são duas características da poetisa paulista Fernanda Rodrigues, que tornam seu primeiro livro A Intermitência das Coisas (Penalux, 2019) uma obra extremamente prazerosa de ler. Por meio de versos diretos e claros, os poemas discorrem sobre o cotidiano, o corre-corre dos nossos dias, a efemeridade dos sentimentos e os medos que temos nas grandes, e nas pequenas cidades.

São versos compostos com cuidado e também com apuro linguísticos. Precisos em suas imagens e que colocam o leitor na casa da poetisa, que é, ao mesmo tempo, a casa do leitor. É o que nos faz sentir o poema Manhãs: “olho a minha caneca de café com leite//quando cheia/sei que o dia será bom.” Quem nunca olhou para sua caneca de café com leite e se sentiu melhor por ela estar quase cheia em uma manhã de inverno e pensou/intuiu que o dia poderia ser bom por esse pequeno detalhe cósmico?! Tal otimismo, algo raro no Brasil em que vivemos hoje, enche o coração de calor e esperança, pois muitas vezes são as pequenas coisas que salvam um dia do desastre.

A perda do amor e o vazio que vem com essa deserção compõem os versos duros e diretos de Aniversário desfeito: “cinco anos passados/entre um amor descortês/e o descobrimento/que melhor amigo é utópico/e o mundo caótico”. O mundo caótico torna-se a realidade no momento em que o verbo traição começa a ser conjugado, no eu, no você, com ela ou com ele. O efeito devastador é sempre o mesmo e a desolação, junto com a desconfiança, passam a fazer parte do cotidiano. Subentende-se que houve perdão e que a relação continuou, embora seu fim pareça anunciado em “cinco anos de um relacionamento/em plena decomposição.

O poema Pressão nos remete ao complicado cotidiano da mulher moderna e as expectativas da família e da sociedade: “pressão para ter filho/sem esperar o primogênito crescer/nem surgiram os dentes/e o irmão tem que nascer”. Ter filhos, ser mãe, estar sempre feliz aos olhos dos outros parece ser a obrigatoriedade da mulher mesmo nos dias de hoje. As prioridades de ter uma profissão e ser independente, aos olhos da sociedade, parecem estar em segundo plano ante a obrigatoriedade da maternidade. A mulher, esse ser guerreiro por natureza, precisa lutar várias batalhas para ser plena ante as expectativas que recaem sobre seus ombros diariamente.

Em Arte não morre, a poetisa se rende a paixão por um ícone: “o catálogo visual/ultrapassa limites/em um único hero:/David Bowie”. O poema homenagem ao camaleão do rock que nos deixou no começo de 2016 nos mostra a contemporaneidade da obra de Fernanda Rodrigues com a celebração a obra de David Bowie trazendo a memória décadas de imagens e versos, mostrando que a verdadeira arte transcende gerações e barreiras linguísticas. Tal homenagem liga seu A Intermitência das Coisas a meu novo livro, O Sul de Lugar Nenhum (Penalux, 2019), em que eu, em lisérgica idolatria, também presto tributo a Bowie e seu legado atemporal.

Ao final da leitura de A Intermitência das Coisas, fica a sensação de quero mais, do que está porvir, pois a poesia de Fernanda Rodrigues se conecta a nosso tempo por se conectar a nosso cotidiano, trazendo ao leitor a sensação de estar nas páginas do livro por identificação com a simplicidade das coisas que acontecem diariamente. Essa conexão faz com que o leitor esteja no livro e sinta que muitos poemas foram escritos para ele, algo semelhante às músicas de Renato Russo, que tocavam/tocam o coração de quem às ouve e as transformam em obras pessoais, mesmo que as mesmas retratassem os temores, inquietações e anseios do próprio compositor.

Desse insumo, é feita a arte atemporal e é o que faz de A Intermitência das Coisas um livro essencial há nossos dias.

Marcelo Frota

(A Intermitência das Coisas, Rodrigues, Fernanda, Editora Penalux, 2019)

Disponível no site da Penalux: https://www.editorapenalux.com.br/loja/a-intermitencia-das-coisas

E nas principais lojas on line.

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