“Educação Centrada no Aluno”: debates e desafios

Marcelo Tavares
19 min readMay 7, 2018

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1- A ficção.

Primeiro dia de aula. Os alunos entram timidamente nas salas previamente definidas. A impressão inicial é fantástica: o ambiente é convidativo, mesas dispostas em ilhas, ideais para a discussão e troca de informações. Cumprimentam-se ainda constrangidos — são alunos do ensino médio. Escolhem aleatoriamente aonde vão se sentar, os últimos simplesmente pegando as cadeiras que sobraram. Toca um sinal. As luzes da sala esmaecem. Uma voz afável, ainda que indiscutivelmente artificial, dá as boas vindas. Todos os alunos devem pegar os seus notebooks, ou qualquer outro dispositivo com acesso à internet. A “Voz” explica que existe um link nos emails dos alunos explicando as regras de conduta da turma, o que é permitido e o que não é. Respeito ao ambiente da sala, aos colegas, compromisso com que é realizado. Os alunos, continua a “Voz”, devem ler o documento e depois discutir com os colegas as regras estabelecidas. Em seguida, devem colocar suas impressões sobre tudo aquilo num campo do próprio documento identificando que compreenderam e aceitaram o acordo.

Tudo isso levou cerca de 15 minutos. Como se trata do primeiro dia, a maioria parece realmente entusiasmada. Alguns demonstram verdadeira fascinação.

A “Voz” avisa que agora, terá início a primeira aula do dia. História. O projetor lança no quadro branco um slide mostrando o que é esperado que os alunos aprendam naquele dia: identificar as principais atividades econômicas do Brasil nos séculos XVI e XVII, quando ainda éramos uma colônia de Portugal. Em seguida, os alunos assistem a um vídeo de 15 minutos sobre o tema. Não se trata de um vídeo produzido pela escola, mas um pequeno documentário que apesar de facilmente encontrado por meio de pesquisas na Internet, não estaria naturalmente dentro do escopo do que jovens daquele idade normalmente vasculham na rede. Logo, a aparência de “novidade”foi alcançada. Durante o documentário é possível perceber que alguns alunos se mostram atentos, outros dispersam mais facilmente, verificando as últimas mensagens no telefone. A minoria faz anotações a partir do que ouve.

Terminado o vídeo, as luzes se acendem totalmente. A “Voz” anuncia que, a partir do documentário, cada grupo de alunos deve se concentrar numa das atividades econômicas discutidas pelo vídeo. A partir daí, deverão organizar um projeto sobre as características de uma das atividades exibidas, as principais regiões nas quais eram realizadas, a mão de obra, o mercado para o qual se direcionavam, a importância daquilo dentro do quadro de uma economia colonial. Se optarem por uma análise mais técnica, podem fazer cálculos sobre o volume e os valores exportados a partir de dados da época. Ou então se aprofundar sobre técnicas de cultivo ou quem sabe sobre o ciclo de vida das plantas cultivadas, suas características medicinais e efeitos na alimentação dos colonos. Textos de suporte para todas essas possibilidades já estavam disponíveis para quem os quisesse. Em síntese, terminava a “Voz”, os alunos deveriam se utilizar daquele horário durante três semanas para organizar o projeto que deveria, ao final desse prazo, transformar-se numa apresentação para a turma. Os próprios colegas seriam os examinadores, conferindo notas de 1 a 10. Até lá, qualquer dúvida poderia ser sanada: os alunos só precisariam levantar a mão e perguntar em voz alta. O sistema identificaria a dúvida e, numa fração de segundos, a dúvida de qualquer estudante estaria satisfeita.

A “Voz” deseja um bom trabalho a todos e avisa que o intervalo vai acontecer em 90 minutos. Quando todos voltarem, terá início a aula de matemática.

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Convido agora o leitor a analisar de maneira mais consciente a aula cujo roteiro acabamos de acompanhar. Não há dúvidas de que o que mais chama a atenção é a ausência de um professor, mas pelo menos por enquanto coloquemos essa questão de lado. Vejamos os grandes trunfos desse tipo de experiência pedagógica.

A disposição na qual os alunos estão sentados estimula o contato, o debate, a interação. As ilhas dispostas criam grupos de discussão e permitem atividades marcadas pela troca e pela contribuição recíproca entre eles. E, se tais grupos forem constantemente modificados, tal arranjo estimularia ainda a maior integração entre todos os alunos, evitando grupinhos de afinidade que se isolam uns diante dos outros.É tarefa árdua argumentar contra esse tipo de arranjo interno de uma sala de aula, notadamente quando recuperamos imagens de salas de aula tradicionais, carteiras enfileiradas, isolamento — como se a experiência de aprendizado fosse ser prejudicada pela interação e pela colaboração. Quando na verdade, o que acontece é o contrário (basta o leitor se lembrar de quantas vezes usou a estratégia de explicar para alguém determinado conteúdo como forma de estudá-lo ou rememorá-lo).

Século XIX…

Todos os alunos estão cientes de uma espécie de contrato que define as regras de conduta da turma. Outro aspecto fascinante da aula. Aliás, todos tiveram até mesmo tempo de discutir e expressar opiniões sobre os artigos do acordo. Dessa forma, qualquer tipo de transgressão tem gravidade maior na medida em que os estudantes estariam sendo incoerentes com aquilo que eles próprios concordaram. As possíveis consequências do mal comportamento seriam mais aceitas pois previsíveis e justificadas. Nesse tipo de experiência, verdade seja dita, questões displinares tendem a serem cada vez mais raras. O controle é muito mais de dentro pra fora ( na, medida em que os alunos comprendem e legitimam os procedimentos e as consequências sobre aqueles que os desrespeitarem) do que de fora para dentro.

Outro destaque: logo a inícios da aula todos sabem o que devem aprender. Talvez a melhor de todas as iniciativas da “Voz”. Os estudantes entendem o que é esperado deles. Se, ao final, algum aluno quiser se assegurar de que alcançou os objetivos determinados para aquele dia, é só se perguntar: “consigo identificar as principais atividades econômicas do Brasil naquele período?”. Se a resposta for sim, ele atingiu os objetivos. Se for não, o aluno — repito, conscientemente — pode pesquisar melhor, ler os textos, conversar com os colegas e até mesmo solicitar uma intervenção da “Voz”. É interessante pensarmos como que, nessa perspectiva, o que realmente interessa é aquilo que vai ser aprendido pelo aluno não o que deve ser ensinado. Substitui-se a preocupação de “fechar um programa” pela atenção em “garantir que o aluno aprendeu”. Mais do que informações transmitidas, privilegiam-se competências e habilidades a serem desenvolvidas.

Students will be able to…

Outro aspecto decisivo: os alunos, nessa experiência, assumiram protagonismo diante do conteúdo. Eles puderam escolher no que vão se aprofundar. Mais do que simplesmente definir a “atividade econômica colonial” sobre a qual vão se ocupar, eles têm a oportunidade de optar pela perspectiva com a qual se debruçarão sobre ela: uma análise mais técnica sobre o volume exportado pode interessar aos estudantes com mais afinidade em matemática. Entender sobre as características da dieta alimentar dos homens envolvidos naquelas atividades pode atrair alunos mais interessados em ciências biológicas. Ainda que a aula seja de história, há latente liberdade para que os alunos tomem seus próprios caminhos.

Por fim, para além da matéria, há clara preocupação com elementos sócio emocionais. Os alunos precisam interagir, discutir, chegar a acordos sobre qual será a direção que o trabalho vai tomar. Precisarão convencer ou então aceitar a opinião de outros colegas, sem que isso signifique desânimo ou frustração. Vão negociar, adaptar, debater. Depois, vão organizar o trabalho de forma a que todos possam contribuir, estimulando notório senso de equipe. Vão pesquisar, analisar fontes, descobrir com curiosidade informações que não conheciam e que poderão utilizar ao longo do trabalho. E, talvez principalmente, ao final vão fazer apresentações que propiciarão desenvolvimento da oratória, contornando a timidez de alguns e aprimorando a desenvoltura de outros. Por fim, vão capacitar sua análise de julgamento pois são os próprios alunos que vão definir as notas de cada trabalho.

Protagonismo, responsabilidade, integração, resiliência, empreendedorismo, curiosidade, pesquisa, oratória, julgamento, decisão. Todos os valores reunidos num único projeto de uma aula de história. A educação abraçando valores inquestionáveis para o século XXI.

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Mas voltemos a um elemento que ficou de fora. O professor. Qual a necessidade dele para que tudo aquilo acontecesse? Claro, estamos falando de uma tecnologia que deu à “Voz” a capacidade de solucionar problemas pontuais e orientar os alunos que desejassem alguma ajuda. Uma vez tal tecnologia alcançada (algo que sem dúvida já é uma realidade, ainda que — pelo menos que eu saiba — não seja aplicada dessa forma à sala de aula) qual a função do professor?

Minha resposta é: nenhuma. Para aquela turma, realmente, a presença física de um professor foi completamente dispensável. A “Voz”cumpriu muito bem a função de facilitador ou mediador, permitindo que toda a turma se engajasse a partir de suas características e demandas pessoais. O problema é que de todo os elementos que fizeram parte de nossa aula hipotética, o mais ficcional de todos foi justamente o aluno. Esse aluno, realmente, não existe.

2- As falácias

O modelo de aula exposto na seção anterior (sob o comando da “Voz”) possui seus (legítimos) defensores. Os elementos mencionados dessa metodologia constituem evoluções importantes da concepção tradicional sobre o ato de educar. Mas para os fins desse artigo, ater-se a algum tipo de denominação ou rótulo não contribuirá para a nossa análise. Até porque nenhuma metodologia pode arrogantemente pleitear ser a melhor ou mais adequada (isso dependeria de uma série de outros fatores que aqui não serão analisados). Assim, prefiro simplesmente analisar esse modelo hipotético como simplesmente “mais um” a partir das características explícitas retratadas na seção anterior, mais do que simplesmente encaixá-lo em alguma categoria pré existente.

Tal modelo tem por valores basais três aspectos decisivos: o protagonismo do aluno (na media em que ele pode fazer escolhas sobre o que gostaria de aprender a partir de um determinado currículo); a autonomia (o aluno define o caminho a seguir, o material de pesquisa a ser utilizado e até mesmo a avaliação dos resultados) e a diferenciação (a sala de aula respeita a velocidade de cada aluno, suas inteligências específicas e estabelece objetivos permeáveis à singularidade de cada estudante). Logo,repito, mais do que aquilo que deve ser ensinado tal modelo seria guiado pela ideia de que o mais importante é aquilo que realmente é aprendido. E qual o problema disso? Em teoria, nenhum. Parece-me consensual a perspectiva de que a educação do século XXI (por mais ingênuo que seja prever os valores da educação de um século a partir do seu décimo oitavo ano) quer estimular cidadãos confiantes acerca do que realmente querem para suas vidas, que assumam responsabilidades e riscos sobre suas decisões e que sejam conscientes das especificidades de cada indivíduo, sem que isso acarrete em valores e graduações de qualidade e/ou inteligência que diferenciem as pessoas. Mas então, continuo, qual o papel do professor nisso tudo?

A sala de aula sob a guia da “Voz”, apesar de estimular protagonismo, autonomia e diferenciação, se vê constrangida pelo peso inexorável da realidade. E quando falo de realidade, estou falando de alunos de carne e osso. Alunos que são o que um dia, nós professores, fomos. Aliás, um dos exercícios mais simples que costumo fazer é refletir : “se eu aos 14 anos estivesse na sala da aula da “Voz”, com toda aquela tecnologia, com toda aquela autonomia, eu realmente me concentraria em pesquisar, discutir, criar, calcular? Tudo com um sorriso no rosto, de maneira engajada, entusiasmada, radiante? E ao final ter orgulho do que foi feito, interessado em ouvir as opiniões balizadas de meus colegas e ter a certeza de que desenvolvi habilidades importantes?”.

Não hesitaria em responder que “não”. Talvez no primeiro dia, a força da novidade e os constrangimentos inevitáveis de um grupo de desconhecidos me fizesse apelar para fazer algo que me ocupasse o tempo. Mas bastaria apenas um colega, uma afinidade. Em duas semanas, eu estaria fazendo tudo o mais rápido possível, de qualquer maneira (desde que aquilo me garantisse a aprovação) mais interessado em ter tempo para conversar sobre alguma garota, algum resultado esportivo ou o número de figurinhas faltantes no meu álbum da Copa do Mundo. Isso porque eu não fui aquilo que consensualmente seria um “bom aluno”. Nunca tive objetivos claros de vida até os 20 anos e realmente não conseguia encontrar na escola qualquer coisa que me motivasse para além da necessidade de passar de ano. Sim, lembro-me de colegas que tinham projetos envolvendo concursos difíceis, vestibulares disputados e que demonstravam um foco muito grande (e consequentemente as melhores notas). Mas esse não era o meu caso e , sem dúvida, não era da maioria de nós, alunos.

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Acredito que a defesa intransigente do modelo de sala de aula representado pela experiência comandada pela “Voz” arrisca-se por três falácias:

a) A falácia da projeção: projetamos nos nossos alunos aquilo que nós, educadores e pedagogos, apaixonados pela educação, mestres e doutores, entendemos como os valores essenciais da escola, sem percebermos que — muitas vezes — insistimos num exercício ingrato de querer que a realidade se adeque à teoria. Nossos alunos chegam à sala de aula repletos de incongruências e limitações frutos de sua imaturidade. E, ainda assim, insistimos em inculcar neles valores e hábitos que nunca foram descobertos por nós quando tínhamos a idade que eles têm. A síntese da falácia da projeção é que provavelmente a aula da “Voz” não foi resultado de um plebiscito consciente entre os alunos — mas do que a liderança pedagógica de uma escola entende como melhor. Tenho um outro exercício que muitas vezes utilizo para explicar a falácia da projeção: não há nenhum workshop do qual tenha participado (e alguns foram realmente muito bons) em que toda a audiência se manteve focada e trabalhando. Ironicamente, quando a plateia era formada por professores, eu ficava refletindo que muitas daquelas pessoas que no dia seguinte estariam exigindo foco dos seus alunos, naquele momento estavam desenhando ou mexendo no whatsapp enquanto o conferecista/palestrante falava. Ou seja: projeção. Por vezes, nem mesmo nós conseguimos ser aquilo que exigimos do aluno. Projetamos sobre ele um vir a ser mais utópico do que real.

b) A falácia da narrativa: aqui pego emprestado algumas das ideias do filósofo dos cisnes negros, Nassim Taleb. A falácia da narrativa ocorre quando histórias de sucesso de pessoas que experimentaram esse tipo de educação impõem um “mapa errado das probabilidades”. Tendemos a transformar o raro e o aleatório numa narrativa compreensível assim que ele acontece. Assim, o caso de sucesso de uma grande empresária ou então de um ministro do STF cujas experiências escolares seguiram o padrão exemplificado pela “Voz” transforma esses casos específicos e raros numa narrativa racional de causa e consequência que universaliza a eficácia do método, simplesmente anulando tanto os outros milhares de casos de “não sucesso” frutos da mesma experiência, quanto a influência de outras variáveis como o padrão financeiro familiar.

c) A falácia da arrogância: toda nova geração de educadores precisa estabelecer um antagonista contra o qual direciona suas armas. Aponta suas falhas, expõe seus resultados negativos e a partir daí sugere uma nova experiência. Tal postura é cíclica e acontece desde que se começou a pensar sobre o ato de educar um indivíduo. O Emílio de Rousseau já falava sobre protagonismo e liberdade no século XVIII mas não atendeu às necessidades da educação no século XIX. Paulo Freire já falava sobre a pedagogia do oprimido em finais dos anos 1960 mas é pouquíssimo lembrado pelos grandes currículos internacionais que versam sobre a autonomia e protagonismo do aluno, em moda nesse alvorecer de século XXI. Em suma, educadores também tem seus ídolos, suas bulas, suas crenças arraigadas e passam a ver o mundo sob tais prismas, encarado-os como os melhores, os mais corretos e os que vão solucionar os problemas que os modelos anteriores não conseguiram. A falácia da arrogância muitas vezes cega os defensores de modelos específicos às limitações e incongruências das suas próprias crenças. Dessa forma limitados, entendem os problemas advindos de seus sistemas como falhas de execução, nunca do modelo.

Voltemos então à aula da “Voz”. Os possíveis defensores intransigentes (ressalto mais uma vez o intransigente na medida em que aspectos da experiência comandada pela “Voz” são realmente incríveis) desse modelo projetam sobre os alunos os valores que eles próprios entendem como fundamentais (ainda que só o tenham percebido depois do mestrado e de anos, décadas de contato com a sala de aula e com o mundo). Possuem o aval de suas próprias experiências ou de experiências de homens e mulheres de sucesso, provas vivas de que aquela metodologia realmente funciona (sem qualquer preocupação em comparar os casos de fracasso ou então de avaliar outros fatores que tenham interferido nos casos de sucesso). E por fim, estão cegos diante da certeza de que são instrumentos de uma mudança radical e revolucionária na educação, o que os impede de ler o mundo fora dessa pauta e de perceber que repetem metodologias adaptadas de autores de mais de 300 anos — e que um dia também serão considerados ultrapassados.

Então, oque fazer?

4- Os limites

O modelo representado pela “Voz” é repleto de limitações como qualquer outro. Qualquer modelo pode ser apanhado numa arapuca montada por uma das falácias ou até mesmo por uma combinação das três. A questão aqui não é menosprezar um modelo em benefício de outro, mas simplesmente tomar consciência dos limites (até agora) insuperáveis de uma atividade tão complexa como a educação. Arrogando ser um modelo pautado em valores importantíssimos (e realmente o são) como o protagonismo, a autonomia e a diferenciação, o modelo que nos serve de referência (chame-o do que quiser) cai em contradições que impedem a auto crítica e o aprimoramento.Perdem-se no tempo, substituídos por outros modelos, da mesma forma revolucionários e breves. Assim, tenhamos em consideração o que aqui chamo de limites da educação (ou seja, aspectos que circunscrevem inevitavelmente o ato de educarão ambiente escolar), e que precisam estar no horizonte de qualquer projeto político pedagógico:

a) o limite da personalização: a sala de aula é o ambiente de contato entre indivíduos (os alunos) e uma persona especial, o professor. O professor é especial porque encerra em si mesmo valores e missões inerentes à educação (evolução, mentalidade de crescimento, garra, conquistas, conhecimento… escolha o que você quiser[1]). Não há sala de aula sem professor, ainda que possa haver um professor sem sala de aula. Precisamos de um rosto, de uma personalidade que represente palpavelmente o que aquela experiência pedagógica vai representar. Se alguém me diz “pense numa aula de matemática” não consigo representar a ideia sem um professor na frente. Mais ainda: vou, de fato, pensar em aulas de professores que passaram pela minha vida, não importa se bons ou ruins. Uma coisa aqui é incontornável: o ambiente da sala de aula é representado por um ou mais professores. Os mais céticos poderiam afirmar que a “Voz” é uma personalidade. Mas, se levarmos em consideração a questão munidos de boa vontade, a “Voz”não vai ao banheiro, não almoça, não ri , não se enfurece, não espirra. O tipo de personalismo que estamos focando não seria atendido por um programa de computador, incapaz de proporcionar uma relação empática (salvo o programa de computador do filme Her).

b) O limite da inspiração: não existe educação sem inspiração. Inspirar significa motivar alguém a fazer algo como você faz, ou a pensar como você pensa, a agir como você age. Ninguém se inspira por objetos inanimados, ainda que eles possam provocar alegria e paz. Inspiração acontece quando temos diante de nós pessoas que realmente fazem a diferença de maneira consciente, pela forma como passaram a traduzir o mundo e contribuir para que ele seja melhor. É interessante pensar sobre isso: se uma pessoa acidentalmente bate com o carro em um hidrante no exato momento em que um incêndio começa a se alastrar numa loja em frente, sem dúvida pode ser responsável por salvar vidas. Mas foi um acidente. Casual. Insconsciente. Não inspira. Inspiração vem, repito, daqueles que sabem o que estão fazendo e porque estão fazendo. Por isso, dentro de uma sala de aula, o que vai motivar alunos a refletirem para além de seus mundos naturalmente limitados pela idade, não é o estímulo artificial para que desenvolvam uma maturidade fora de hora, mas o que o professor representa e inspira.

Lugar comum quando o assunto é inspiração em sala de aula, Robin Williams em “Sociedade dos Poetas Mortos”

c) O limite da especialização: Não tem jeito. A escola é um lugar de construção e compartilhamento de saberes. E saberes são, queiramos ou não, frutos de convenções e metodologias específicas, certificados que dão autoridade, uso de vocabulários adequados. A escola precisa de saberes específicos. Aqui temos uma questão: no modelo de aula exemplificado pela “Voz”, podemos imaginar que o programa de computador que a controla consegue ser um especialista em todos os ramos do conhecimento humano, desde física quântica até culinária. E dominar com maestria todas as formas de explicação existentes sobre cada um desses conteúdos, projetando numa tela vídeos interessantes, didáticos e explicativos. Isso é verdade. O limite da especialização é, dentre todos, aquele que a tecnologia consegue mais facilmente superar. Mas vejamos por outro lado: não me parece muito difícil de provar que não adianta especialização (ou seja conhecer muito sobre um determinado assunto) quando o assunto é educação: se essa especialização não vem acompanhada de personalização ( a identificação de uma pessoa que sabe muito sobre aquilo, cuja personalidade se mescla ao próprio objeto de conteúdo) e inspiração ( quando o conhecimento faz os ouvintes enxergarem o mundo de uma maneira diferente e , principalmente, passam a querer aumentar essas experiências a partir de seus próprios anseios) a educação não ocorre. Em outras palavras, o Google -por mais que funcione como uma ferramenta excelente — nunca conseguirá ser regente de uma turma de 30 alunos.

d) O limite da satisfação: outro ponto que me parece incontornável e que , ironicamente, é pouco levado em consideração (até pela falácia da arrogância) é que os alunos precisam estar satisfeitos. Precisam ser fascinados. Precisam sair da sala de aula cientes de que aquela experiência na escola teve sentido. De que eles aprenderam. De que vão embora diferentes de quando entraram. Isso não significa uma aula feliz, ou engraçada, ou divertida. Mas uma aula que transforma. E quando digo transformar estou sendo propositalmente vago. Porque uma aula comandada por alguém que entenda muito de seu determinado assunto, vai sofrer adaptações para atingir todos os alunos. Uma aula comandada por alguém que saiba da importância de inspirar vai impactar todos os alunos sem exceção, abrindo brechas para que todos percebam naquele conteúdo algo que motive e que instigue experiências pessoais. E um professor que saiba da importância que a sua pessoa tem para o processo ( ela é a biologia, ele é a física para aqueles alunos) não abrirá mão de trazer a responsabilidade e os holofotes para si mesmo, sem nunca impedir a participação espontânea e autonomia do aluno quando possível. Fiquei muito impressionado com a leitura de Ken Bain, What the best College teachers do, principalmente quando ele fala que para definir grandes experiências escolares ele partiu de algo absurdamente óbvio: o testemunho dos alunos. Mais do que métricas, dados, portfólios. E segundo Bain foi impressionante a consistência de declarações do tipo “ele me fazia entender as coisas mais do que qualquer outro na escola” ou “a aula dele realmente mudou a minha vida”. E isso tanto em universidades conceituadas (sim a atenção do autor é sobre o ensino universitário, mas, pelo menos a meu ver, isso é indiferente para o nosso ponto) quanto em estabelecimentos de estrutura precária (o que me fez pensar se a “Voz”conseguiria dar aula tanto numa escola internacional quanto numa escola pública que sofresse com a precariedade…).

E aqui chegamos a um ponto importante dessa reflexão. O ambiente da sala de aula é personalista (reflita sobre suas próprias experiências). A educação só atinge seus objetivos se inspirar (eu preciso querer estudar. Eu preciso me espelhar em alguém com quem eu possa trocar) e se promover habilidades relacionadas a determinadas competências (eu preciso entender matemática, mesmo não tendo uma inteligência lógica. Alguém precisa estar atento a isso e me ajudar). E, no final, se alguém aparecer do meu lado e perguntar: “você está satisfeito com essa aula?” A resposta precisa (a despeito de tanta variedade, tantas histórias pessoais dispersas entre aqueles pequenos indivíduos) ser “sim, a aula foi demais!”

4- Conclusão

Logo, qual o melhor sistema? Grandes líderes foram produzidos por tanto por sistemas tradicionais quanto por modelos inovadores. Protagonismo era inovação na década de 1920 na Europa e na década de 70 no Brasil. Montessori foi apoiada por Mussolini na Itália fascista. Existem alunos frustrados em escolas de tecnologia abundante e alunos dedicados e felizes em salinhas mal arejadas de pré vestibular ( e que possivelmente serão grandes líderes eles próprios depois de se formarem).

Se estivermos conscientes da falácia da projeção estaremos atentos para evitar impor valores que construímos ao longo de nossas (tumultuadas) experiências num sistema asséptico e pronto para os alunos. Conhecer a falácia da narrativa nos prepara para evitar generalizações a partir de casos muito pontuais e aleatórios, que nem compõem uma amostragem digna de relevância, para justificar nossos anseios como educadores.E afastar a falácia da arrogância serve para que desenvolvamos simplesmente o ato de ouvir e aceitar o contraditório sem desmerecê-lo, cientes de que em breve poderemos ser da mesma forma (não vejo como evitar isso) o tradicional a ser superado.

Se as falácias nos acordam (pelo menos quando tomamos consciências delas) os limites nos apontam possibilidades práticas, pautadas pela necessidade de generalizar o máximo possível, abarcar quantos sistemas forem inventados[2] e legitimá-los desde que os limites (também notados pela experiência) sejam respeitados: uma aula precisa estar personalizada em alguma entidade com a qual eu possa me relacionar, que me inspire, que conheça demais sobre os objetos de conhecimento que a minha comunidade entende como importante (se um dia for definido que química não é mais objeto de conhecimento na escola, sem problema. Até lá, eu quero que o professor de química do meu filho inspire). E — talvez o mais importante — eu quero sair transformado. Que aquela aula tenha sentido. Que eu possa dizer que aprendo demais ali, que aqueles ensinamentos transformaram a minha vida.

Como resposta mais direta e que permita ações práticas, um alívio que permite sair da fria teoria. Não importa o sistema: a receita para o sucesso está centrada na figura do professor. Ele é o agente mais importante, ele é o condutor, a ferramenta, o canal, o amparo, a voz tranquilizadora, o elemento de diferenciação, o estímulo e a referência. Acho graça quando alguns pedagogos comentam que os aspectos relacionais são os mais importantes dentro da sala de aula. O aspecto relacional é um coringa, vale para qualquer tipo de relação, acordo, contrato entre indivíduos. Você pode ter um engenheiro muito bom a seu serviço, mas o que vai fazer com que ele seja inesquecível é o compromisso, a ética, o cuidado que ele tinha para te ouvir e construir a sua casa da forma como você pensou. Um médico pode salvar a sua vida, mas ele é realmente inesquecível se a habilidade técnica é somada ao cuidado com o paciente, a ouvir seus dramas e entender suas ansiedades. É claro que professores inesquecíveis também o são pelo que se refere à relação que tem com seus alunos, mas o canal desse relacionamento ( assim como o do médico é curar e o do engenheiro construir) é ensinar. Saber ensinar. Saber empolgar. Inspirar. Motivar a aprender mais.

Não tem jeito. O método é discutível. O que não é que ele só vai funcionar se tem para executá-lo professores bons , bons demais. A “Voz” que me desculpe. Mas o professor é fundamental.

[1] Aqui uma reflexão importante: se professores não enfeixam em sua imagem valores de um “vir a ser evolutivo”, a experiência vai por água abaixo.

[2] Aqui não vou entrar no contra-factual de sistemas de ensino que possam estimular o racismo ou a misoginia. Parto do princípio que existam valores conjunturais que se relacionam à utilidade para uma comunidade e que a escola deve tê-los por referência.

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