PIXOTE, A LEI DO MAIS FRACO”: UMA OBRA-PRIMA DA TRAGICOMÉDIA

Marcio Miller
5 min readSep 1, 2023

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Este meu singelo texto é um resenha, cujo objetivo é analisar a comédia e a tragicomédia presentes no enredo do clássico filme brasileiro Pixote, A Lei do Mais Fraco, lançado em 1980 e dirigido pelo lendário cineasta Hector Babenco (1946–2016).

Obs.: O texto está repleto de spoilers. Caso ainda não tenha assistido ao filme, recomendo que o faça antes de ler meu texto.

O filme narra os dramas e as desventuras de Pixote (Fernando Ramos da Silva), um garotinho miserável e delinquente. De maneira magistral, Babenco e os seus roteiristas parceiros (Jorge Durán e José Louzeiro) utilizaram a tragicomédia numa obra cinematográfica que aborda as mais sórdidas faces da condição humana. A meu ver, a combinação de elementos de tragédia e de humor no longa-metragem não é mera “escolha estética”. Ou seja, o intento é mais do que só fazer rir. É uma proposta de reflexão. Afinal, a vida é tragicômica. De certa maneira, elementos tragicômicos contribuíram para que Pixote se convertesse numa magnum opus do cinema mundial. Por alguma razão, essa faceta humorística é pouco discutida pela crítica e pelo público amante da sétima arte brasileira.

O roteiro foi elaborado a “seis mãos”. Hector Babenco o escreveu em parceria com Jorge Durán e José Louzeiro. Este último é o responsável pelo livro Infância dos Mortos, obra que inspirou o enredo do filme. O trio escolheu como cenários principais as duas maiores metrópoles do Brasil (São Paulo e Rio de Janeiro) para contar uma narrativa com evidentes traços documentais e neorrealistas. O elenco juvenil foi composto por atores desconhecidos. No meio do “povão”, Babenco achou o protagonista: o saudoso ator Fernando Ramos da Silva (1967–1987). Nas palavras de Babenco, no documentário Pixote, in memoriam (2007), o pequeno Fernando tinha um olhar carregado de uma “tristeza congênita”.

Pixote, A Lei do Mais Fraco é “politicamente incorreto”. Um longa-metragem inconcebível no cinema dos dias atuais. Exibe inúmeras cenas de nudez com atores menores de idade, inclusive do protagonista (Pixote). Os diálogos recitados pelo núcleo juvenil são recheados de escabrosos palavrões. Na antológica penúltima cena do longa, a prostitua Sueli (Marília Pêra) “amamenta” Pixote. A cena escandaliza. Aqui, é clara a intenção de discutir o tema maternidade.

Na cama, uma prostituta amamentando Pixote (menino de 12 anos de idade)

Sem sombra de dúvidas, trata-se de uma uma obra à frente de seu tempo. Despido de quaisquer pudores, além de abordar as mazelas da violência urbana, Babenco explora temas ainda mais espinhosos. Estupro, pedofilia, exploração sexual de menores e sexualidade precoce.

Por meio da personagem Lilica (Jorge Julião), a transexualidade é apresentada. Lilica é uma personagem humanizada, multidimensional, cheia de defeitos e de qualidades. Ela é delinquente. No entanto, apaixona-se tão profundamente quanto uma mocinha de comédia romântica. Ainda que sem reciprocidade, ela se dedica integralmente aos dois namorados: Garotão (Cláudio Bernardo) e Dito (Gilberto Moura). Ademais, em demonstrações de carinho por Pixote, de certa maneira, Lilica se converte em figura fraterna / materna para o menino. Desse modo, o filme deixa de lado a abordagem caricatural a qual personagens LBGT eram submetidos à época.

AS CENAS DE “RACHAR O BICO”

Após o brutal assassinato de Garotão, Lilica inicia uma rebelião no reformatório de delinquentes. Ela tenta suicídio. Logo após, uma fuga coletiva. Durante a cena, uma surpreendente revelação a respeito do personagem Roberto Pé de Lata (Israel Feres David), o delinquente sósia/cover do cantor Roberto Carlos. Quando o personagem escala o parapeito da janela, descobrimos que ele tem uma perna mecânica. É uma evidente alusão à característica física do Rei da música brasileira. Este tem uma das pernas amputada.

Livres, Chico e Pixote se divertem tomando banho num chafariz. Entrementes, Lilica e Dito estão esparramados no gramado. Pombinhos apaixonados. Ela pede que ele diga que a ama.

Dito (Gilberto Moura): Ah! Não fode, né?

Ela beija o peitoral de Dito.

Lilica (Jorge Julião): Fodo, sim.

Ambos riem. Na cena subsequente, o grupo de delinquentes dormindo ao relento. Uma madrugada fria. Apenas dois personagens estão acordados: Lilica e Dito. Os dois num ato sexual. Não é claro se há uma pretensão cômica aqui. No entanto, há uma espontânea expressão de humor na materialização da piada que Lilica fizera na cena anterior.

Pixote e sua turma (Dito, Lilica e Chico) no carro de Cristal (Toni Tornado). Este é um malandro narcotraficante e aliciador de menores. Ele oferece um cigarro de maconha às crianças. A reação de Pixote aos efeitos da maconha é hilária.

A mando de Cristal, Pixote e sua trupe vão ao Rio de Janeiro para vender cocaína. Esparramados numa rocha à beira-mar, Pixote na companhia de Chico e Lilica. Fazem planos com o dinheiro que pretendem receber da venda da cocaína.

Chico (Edilson Lino): Agora eu, quando eu pegar meu tutu na mão, Lilica… Vou comprar um três-oitão. Preto. Novinho… Sabe que vou fazer? Isso. “É assalto, filho da puta! Levanta! Eu disse levanta, viado escroto!” Pá! Pá! Pá!

Brincalhona, Lilica simula que foi atingida pelos “tiros”. Pixote se recorda do Roberto Pé de Lata, o qual decidira permanecer no reformatório.

Pixote (Fernando Ramos da Silva): E o Roberto, hein?! Devia estar aqui com a gente.

Chico (Edilson Lino): É. O Roberto. Se ele tivesse aqui, seria um barato, né? Só que ele não poderia entrar na água. Senão a perna dele ia enferrujar. Ia andar assim, ó…

No terceiro ato, entra em cena Sueli (Marília Pêra). A prostituta decadente e deprimida sofre o diabo por causa de um recente aborto caseiro. Ela, então, assume a chefia da “gangue de trombadinhas”. Seus soldados: Pixote, Lilica e Dito. Na espelunca de Sueli, a emboscada ao primeiro cliente azarado.

Dito (Roberto Moura): Olha aqui onde você vai gozar, ó! (apontando para a arma de fogo).

Pixote (Fernando Ramos da Silva): Velho cagão!

Ato contínuo, Pixote mostra a língua. Num gesto infantil, ele faz um barulho com a língua. Num restaurante, a quadrilha celebra o êxito do assalto.

Sueli (Marília Pêra): São bichinha, né? (referindo-se a Lilica e Dito).

Pixote (Fernando Ramos da Silva): A Lilica gosta de uma tora. Mas o Dito não. O Dito eu conheço faz tempo. Isso eu te garanto.

Numa rua deserta e escura, Sueli seduz mais um cliente. Um jovem playboy. Ambos dentro do carro. À espreita, Pixote, Lilica e Dito. Os três armados. Sueli sentada no colo do cliente. Esfregava o traseiro no pênis dele.

Sueli (Marília Pêra): Me dá um carro desse pra mim? Você dá?

Cliente playboy: Dou, dou, dou…

Sueli (Marília Pêra): Você dá é nada. Mas eu quero ele pra mim. Eu vou ter esse carro pra mim Eu vou ter esse caro pra mim. Eu quero um carro desse pra mim.

Sueli sai do automóvel. Os delinquentes atacam. Colocam o apavorado playboy dentro do porta-malas. Sueli e Dito transam na presença de Pixote e Lilica. Esta vai embora sem dizer adeus. Na última emboscada, Sueli atrai para seu “abatedouro” um turista estrangeiro. A barreira linguística permite que Sueli insulte o cliente. Ela faz um strip-tease. Nessa hilária cena, Marília Pêra demonstra a sua formidável capacidade de transitar entre o drama e a comédia.

Sueli (Marília Pêra): Aproveita aí, ô gringo escroto, que daqui a pouco, você vai se estrepar, viu?!

Sueli (Marília Pêra): Seu gringo de merda! Não me empurra não, hein?!

Em suma, essas foram apenas algumas das cenas (em ordem cronológica) que julguei importantes mencionar. Tenho certeza que você encontrará muito outros momentos humorísticos ao assistir (pela primeira vez )ou ao rever esse primor de filme.

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Marcio Miller
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Universitário (Filmmaking e Criminologia). Perdidamente apaixonado por: cinema, literatura, música e pelo Al Pacino dos anos 70