No filme “Ender’s Game”: lições sobre formação de talentos, games e outras questões!

marco a. oliveira
27 min readMay 28, 2016

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Ender’s Game — O jogo do exterminador (EUA, 2013, do roteirista e diretor Gavin Hood, com Harrison Ford e Asa Butterfield nos principais papéis) não parece ser, a princípio, um grande filme; mas, de fato, oferece um excelente material para se refletir sobre talentos, games e outros temas muito atuais em Educação Corporativa.

O filme narra a trajetória do garoto Ender Wiggin no treinamento para tornar-se o comandante de todos os Terráqueos na quase certa guerra contra os Formics, 50 anos depois de estes alienígenas terem sido derrotados e expulsos de volta ao seu planeta pelas forças terráqueas lideradas pelo lendário herói Mazer Hackam.

(Spoilers — muitos — à frente!)

A narrativa se dá num indefinido tempo futuro. Ender Wiggin é um dos meninos superdotados aceitos para participar do programa de formação de futuros comandantes de frotas estelares, que os habitantes da Terra organizaram, a fim de desenvolver quadros capazes de enfrentar e vencer os Formics, numa nova guerra de sobrevivência que, tudo indica, será inevitável, vindo a acontecer mais cedo ou mais tarde.

Que é um talento?

Primeiramente, chama a atenção na história o fato de serem especialmente escolhidos para essa formação meninos e meninas superdotados, considerados gênios, a partir dos seis anos de idade.

A associação que o autor da história estabelece entre talento e gênio não pode ser ignorada; e, nesse caso, é inevitável que recuperemos outra associação essencial: entre a genialidade e um Quociente de Inteligência notavelmente elevado. No frigir dos ovos, portanto, esta história nos alerta para o fato de que as clássicas propostas sobre a inteligência, surgidas com Binet, Simon e Stern há mais de cem anos, no início do século 20, de modo algum estão mortas, apesar das tentativas de enterrá-las de vários autores mais recentes (tendo à frente Goleman, com a tese da inteligência emocional e Gardner, com a das inteligências múltiplas)!

Ou seja, no fundo mesmo, ainda não se encontrou uma maneira melhor de identificar um talento futuro, que não seja uma destas duas: ou um talento é revelado pela excelência de sua performance atual, ao ponto de se poder apostar também numa sua brilhante performance futura; ou os testes a que a pessoa é submetida revelam que ela tem uma capacidade muito acima da média de solucionar questões que a maioria das pessoas trataria de modo meramente convencional. Em ambos os casos, o indivíduo aprovado tenderá a ser visto como um bom candidato a “talento” — e é inevitável que receba rotulações como as de “gênio”, “superdotado”, “diferenciado” ou “portador de inteligência superior”.

A escolha da idade de seis anos como ponto de partida para a formação de um talento é igualmente significativa: é por essa idade que a criança com inteligência acima da média começa a dar claros sinais de que desenvolveu precocemente capacidades tais como: solucionar de modo original dilemas lógicos complexos; distinguir o certo do errado sem se deixar seduzir pelo seu próprio envolvimento emocional com a situação; formar para si um embasamento moral mínimo que seja; decidir em quais competências deverá investir mais seus esforços, uma vez que elas lhe serão as mais úteis no futuro; começar a perceber que a própria mãe tem “um seio bom e outro mau” (como dizia Melanie Klein); etc.

Tornar-se um talento exige a reconstrução da identidade?

Aficcionados que viram o filme e também leram a sequência dos dois romances de Orson Scott Card que lhe deram origem acharam que os livros enfatizaram mais do que o filme a extensão e os detalhes do processo formativo pelo qual passa Ender Wiggin.

Durante todo esse processo, os treinandos são alocados a grupos fixos, indo viver num ambiente educativo especialmente preparado, no qual cada participante estará em permanente interação com os demais candidatos do time e também com os outros times.

O aprendiz é, assim, posto o tempo todo em competição direta com múltiplos adversários, seja participando de jogos especialmente programados para isso, seja em situações reais do dia a dia, habilmente gamificadas pela inclusão, no contexto, de recursos tais como: pontuações, rankings e reações de feedback imediato por parte dos instrutores, que permanentemente os observam e avaliam.

Ali, advertem-no, o educando não deve esperar encontrar amigos, mas apenas competidores.

Esse regime de imersão, a que os aprendizes são submetidos, é uma das principais regras do jogo. Os garotos são totalmente afastados do convívio da família, com a qual, ao ingressarem no programa, deixam de ter contato. Deseja-se, dessa forma, à maneira do que acontece nas instituições totais descritas genialmente por Erving Goffman, levar a criança a desenvolver uma nova subjetividade, totalmente independente daquela estabelecida originalmente na relação com pais e irmãos.

Para esta nova identidade pessoal que passa a ser construída, várias competências são altamente valorizadas: a férrea disciplina; o permanente estado de alerta para a mudança e a capacidade de avaliar prontamente a extensão e a gravidade dessa mudança; o imediatismo e o vigor da resposta pessoal à nova situação; a habilidade para intuir numa fração de segundo o que está por trás dos fatos e antecipar-se aos movimentos do adversário; a frieza e a não-emocionalidade nas decisões tomadas — são algumas delas.

Aliás, uma situação análoga é descrita, por exemplo, no filme de Stanley Kubrick, de 1987, Nascido para matar (Full Metal Jacket), que narra a extrema dureza do treinamento dos marines do Exército americano para a guerra no Vietnã.

Mas, mesmo sem recorrer aos livros de Card, o espectador consegue identificar as etapas, cronologicamente orientadas, do processo de treinamento apresentado no filme:

Primeiro requisito: equilíbrio emocional

Na primeira etapa, cada educando é detidamente observado nas suas relações com os colegas, na medida em que, munidos de seus tablets, disputam, entre si, jogos cujos conteúdos giram sempre em torno da problemática dos Formics.

Nesse estágio cada um deles é continuamente monitorado por meio de um chip implantado na nuca, que aparentemente permitiria um mapeamento neurológico de determinadas funções intelectuais que estariam sendo exercidas, ou das reações emocionais dos treinandos. Mais que seu desempenho nos jogos em si, analisam-se as reações dos treinandos aos resultados que obtiveram, tanto as vitórias como as derrotas, assim como as suas reações às reações dos adversários.

Fica evidente que, neste estágio, têm grande importância a estabilidade emocional do aprendiz, assim como sua capacidade de vivenciar adequadamente seus sentimentos em variadas situações (sua inteligência emocional, por assim dizer).

Nesse ponto da história, ficamos sabendo que Ender pode reagir com violência se colocado sob intensa pressão — e essa questão passa a ser objeto de uma discussão importante entre os coordenadores do programa: o coronel Graff e sua assistente, a psicóloga major Anderson. Estes, sem serem vistos pelos alunos, os monitoram por um telão na sala de controle.

Anderson preocupa-se a com a resposta muito agressiva de Ender ao ser atacado pelo colega que acaba de derrotar num jogo. Aparentemente Ender prosseguiu sendo agressivo mesmo quando já havia dominado a situação; mas Graff, ao contrário da assistente, vê nesse comportamento uma virtude, e não uma deficiência do aprendiz, já que sua reação agressiva adicional irá evitar que o outro volte a ameaçá-lo de novo no futuro.

A vida familiar na origem da formação de um talento?

A preocupação de Anderson com esses aspecto baseia-se (é o que também ficamos sabendo) no fato de o irmão mais velho de Ender, Peter, já haver mostrado sinais de descontrole emocional e violência gratuita, sendo por isso desligado do mesmo programa de treinamento. Anderson teme que esse problema comportamental seja um traço típico da família.

O que aprendemos em seguida, porém, é que Ender conhece bem o destempero emocional do irmão e sabe que seu próprio modo de reagir às situações é bem outro. Tudo que ele não deseja é ser também identificado por esse rótulo de indivíduo descontrolado, que acabou colando em Peter para sempre.

Igualmente, nesse início da história, ficamos sabendo que Anderson faz uso de conceitos psicanalíticos para tirar conclusões sobre a saúde mental de seus pupilos: sobre Ender, especificamente, ela pondera que este tem dificuldade em aceitar o exercício de autoridade por parte de um superior.

Essa constatação é bem interessante, especialmente à luz do seguinte raciocínio:

É comum que indivíduos altamente criativos e independentes, que conseguem pensar “fora da caixa”, tenham aprendido a agir assim devido a uma história pessoal de distanciamento em relação ao pai, na infância.

Nesta história, Ender é um “terceiro” (isto é, o terceiro filho de seus pais, num tempo futuro em que a Terra já se encontra superpopulosa e é permitido a um casal ter no máximo dois filhos).

Essa circunstância torna plausível a hipótese de que o nascimento de Ender não foi planejado e talvez nem tenha sido desejado por seus pais! Segundo a Análise Transacional, isso, por si só, seria suficiente para justificar uma relação conflituosa entre filho e pai.

Capacidade de agir em equipe, sem ter amigos ali

Ender é promovido para o segundo estágio do processo formativo e vai para uma nova unidade, a Battle School, onde aprenderá técnicas de combate em pleno espaço, em ambiente de gravidade zero, que é onde se espera que aconteçam os confrontos diretos com os Formics, quando a guerra se der.

Logo de início, neste estágio, o coronel Graff propositalmente põe Ender numa “saia justa” com os colegas, ao afirmar publicamente que o garoto é o único, entre eles, todos que realmente pensa! Ender reclama que isso irá lhe trazer dificuldades, mas é justamente o que Graff deseja: criar para o jovem uma situação de animosidade e confronto com os demais, para ver como ela se sairá.

Conseguirá Ender ganhar o respeito e a admiração dos colegas, quando tudo que estes passam a querer, a partir de então, é crucificá-lo ao primeiro erro que cometa? Um excelente membro de equipe precisaria estar preparado para isso: destacar-se, atuar com eficácia e realmente fazer uma diferença, mesmo numa equipe de trabalho na qual se sinta só e precise conquistar pessoas que o veem negativamente! Pelo menos, para Graff isso parece ser uma qualidade de grande importância num líder!

Suplantar o obstáculo de ter um chefe tóxico

Nosso protagonista outra vez se destaca e é mais uma vez promovido: vai fazer parte da equipe Salamandra, cujo líder, Bonzo, é alguém da pior espécie — o chefe que não se desejaria ao pior inimigo! Bonzo é agressivo, intolerante, mesquinho e perverso, além de flagrantemente desonesto. De saída declara abertamente que fará tudo que estiver ao seu alcance para que Ender fracasse!

Como lidar com um chefe desse tipo? A estratégia de Ender é ter com Bonzo uma conversa reservada, em que lhe propõe um acordo: “Tudo bem que você não goste de mim e queira me ver longe; é o que eu quero também. Deixe-me treinar e aprender e eu o acatarei como chefe e lhe darei todo o crédito — e, na primeira chance, irei embora e você se livrará de mim. Mas, me impeça de crescer e eu irei infernizar sua vida! Irei acabar com você!”

Bonzo, que não esperava uma atitude dessas, “balança” ao ouvir algo tão atrevido! E, em princípio, aceita o pacto… mas na primeira missão da equipe o descumpre, impedindo Ender de atuar e aprender. Este, então, desobedece as ordens do chefe, faz aquilo que acha certo e credita seu êxito no trabalho a… Bonzo! Graff acha brilhante a saída encontrada por Ender e novamente o promove.

(É curioso que alguém com o perfil de Bonzo faça parte desse programa, pois ele é a própria antítese daquilo que se espera de um líder: Bonzo é um sujeito moralmente incompatível com as aspirações de um tal programa, mesmo que possa ser tecnicamente brilhante, o que, aliás, tampouco fica claro na história. A única explicação para sua presença ali é a possível necessidade de se ter gente desse naipe participando do treinamento, exatamente para que sirva de obstáculo a ser transposto por aqueles que estão realmente sendo preparados para ocupar as futuras posições de liderança.)

A mente do estrategista

Parece claro que Ender tem méritos por ter encontrado e explorado a seu favor um ponto fraco de Bonzo. Mas, Ender foi bem além disso, nesse episódio: sabendo era permanentemente observado por Graff, Ender tratou de, ao mesmo tempo e com a mesma ação, igualmente mostrar ao coronel que era capaz de neutralizar esse adversário e assim merecer a promoção.

Esta é, aliás, uma extraordinária qualidade que se observa nas pessoas efetivamente talentosas: a capacidade de atingir dois objetivos importantes com um único ato — “matar dois coelhos com uma cajadada só”, por assim dizer!

Mas há ainda algo mais nessa conduta excepcional de Ender: uma fração de segundo antes de seu adversário agir, ele já terá sido capaz de intuir qual será esse movimento e antecipar-se, neutralizando-o! Ender demonstra essa capacidade ao chamar Bonzo para uma conversa em particular, assim com a demonstra ao perceber o que Graff irá pensar e fazer quando estiver assistindo à sua atuação para com Bonzo.

Essa genial competência — antecipar-se à ação do outro e tornar inócuos seus efeitos, ou até mesmo tirar proveito dela — pode ser observada em diversos contextos, exercida por indivíduos de inegável talento para aquilo que escolheram fazer na vida: Sócrates a utilizava o tempo todo como a base de seu diálogo com interlocutores; Napoleão venceu batalhas memoráveis com movimentos de tropas antecipatórios que surpreenderam o inimigo; Kennedy evitou uma guerra nuclear no episódio dos mísseis soviéticos em Cuba, ao prever que Khruschev recuaria de sua declaração de guerra, caso os americanos fingissem não ter recebido o telegrama fatídico; Carlos Lacerda conseguia aplicá-la instintivamente em seus ferozes debates no Congresso (como, por exemplo, quando chamou seu inimigo político Amaral Neto de… Amoral Nato [sim, o humor inteligente também pressupõe essa mesma qualidade!]); e Pelé, inúmeras vezes, mostrou, em suas jogadas, que tinha em alta dose essa competência.

Esta competência é, aliás, tão central na construção desta história, que o filme se inicia justamente pela sua declaração, numa frase dita por Ender, em epígrafe na tela escura, quando da apresentação dos créditos:

When I understand my enemy well enough to defeat him, then, in that moment, I also love him.

Bem mais adiante, quando vem até ele o herói da guerra passada, Mazer Hackam (que Ender não sabia estar vivo), o menino quer saber daquele homem tão estranho se ele é seu novo mestre.

A resposta de Hackam é surpreendente e reveladora, digna de ser dita pelo velho estrategista Sun Tzu, de A arte da guerra: “Seu único mestre é, de fato, o seu inimigo.”

Líder de uma equipe difícil

Ender é mais uma vez promovido; Graff lhe dá, agora, uma equipe para liderar, a Dragon Army, propositalmente formada por misfits (isto é, desajustados, ou participantes que não deram certo e foram alijados de outras equipes). A ideia de Graff é que Ender enfrente mais esse grande desafio, bem maior do que ele teria de encarar num processo formativo que fosse mais “normal”.

Bernard, um dos colegas com quem Ender teve problemas anteriormente, foi designado para essa equipe e não entende o porquê disso, dadas as desavenças entre ambos. Mas Ender, que não está interessado em formar uma equipe só de amigos, tampouco quer inimigos nela; e conquista a confiança de Bernard, ao convencê-lo de que, na verdade, o que ambos querem ali é a mesma coisa: a alta performance da equipe. Para tanto, o novo líder pede duas coisas a todos: (1) que se respeitem entre si; e (2) que lhe tragam ideias melhores do que as suas próprias.

Também nesta fase, Ender inova nos método, lidera com êxito sua equipe e obtém vitória arrasadora sobre os adversário, o que leva Graff à conclusão de que Ender é o talento que ele há muito procurava para ser o comandante de todas as forças terráqueas para a guerra final contra os Formics.

O peso da responsabilidade leva o líder à crise?

Ocorre, porém, um sério problema: atacado fisicamente por Bonzo, que estava inconformado com a derrota sofrida, Ender reage; e, ao fazê-lo, provoca uma queda feia de Bonzo, que se fere gravemente ficando entre a vida e a morte.

Ender sente-se culpado e quer desistir de tudo, para pânico de Graff, que vê no garoto a única chance de salvação para a Terra. Este episódio é emblemático, quer o olhemos do ponto de vista de Graff, quer do ponto de vista de Ender:

Graff tem uma missão a cumprir e encontrou o sujeito capaz de lhe dar forma e levá-la a cabo com êxito. Ele não pode conformar-se, portanto, com a ideia de que todo o imenso trabalho feito até então possa ir por água abaixo, somente porque o eleito para essa posição de crucial importância foi repentinamente acometido de uma crise ética!

Mas, o fato é que Ender, no fundo, é ainda um adolescente! A carga de responsabilidade que ele vem recebendo é imensa, muito maior do que aquela que qualquer outra pessoa na sua idade jamais enfrentou.

Por melhor que possa ter sido a preparação psicológica oferecida a um jovem como esse no programa, sempre há a chance de ele ainda não estar inteiramente pronto para a missão que lhe está sendo confiada.

A avaliação de potencial não passa de uma mera aposta

O lendário herói da vitória de cinquenta anos atrás, Mazer Hackam (que todos pensavam já ter morrido, mas que de fato se mantivera estrategicamente oculto por todos esses anos, de fato funcionando como uma espécie de conselheiro de Graff), em certo momento, se dirige ao coronel dando sua opinião de que Ender ainda não está pronto para a missão. “Jamais alguém estará totalmente pronto para uma missão como essa”, responde Graff filosoficamente. “Ele está apenas ‘suficientemente pronto’ (ready enough)”, completa.

Realmente nunca se saberá de antemão se um talento está cabalmente pronto para a missão que lhe será destinada. A capacidade que alguém possa ter de apresentar uma alta performance numa incumbência que está por ser assumida por essa pessoa (que ainda não o foi) é, por definição, uma incógnita, que somente será desvendada quando o trabalho tiver sido inteiramente completado e seus resultados possam ser, finalmente, medidos com objetividade.

A criança e o mundo do trabalho

Um ponto importante a debater, que este filme de Gavin Hood levanta, refere-se à questão da idade mínima em que uma pessoa poderia/deveria comaçar a interessar-se, ou mesmo a dedicar-se, seriamente ao exercício de uma atividade profissional ou a engajar-se numa dada carreira.

No Brasil, o trabalho infantil é explicitamente proibido. Somente aos 14 anos de idade um adolescente pode oficialmente começar a exercer com regularidade uma atividade remunerada (embora a lei seja, em muitas situações e de inúmeras formas distintas, frequentemente burlada). Em tese, a OIT fixa em16 anos a idade mínima recomendada, sendo o trabalho aos 14 anos tolerado no caso de países-membros muito pobres (o que em absoluto é o caso do Brasil, por sinal). Quanto ao trabalho abaixo dos 12 anos, esse é sumariamente reprovado em qualquer hipótese.

Porém, um fator complicador surgiu e tem se acentuado nos anos recentes nesse quadro de referência: está se tornando cada vez mais difícil separar, em nossas vidas, as atividades de trabalho, estudo e lazer. Ações que anteriormente recaíam com exclusividade numa destas categorias agora aplicam-se a mais de uma, quando não a todas as três.

Game: o edu-work-playish gadget por excelência

O recurso que mais decididamente representa essa convergência dos 3 T (tool, ferramenta; toy, brinquedo; e teaching assistant, auxílio para o ensino) é o game.

E que é um game? É qualquer dispositivo que opere dinamicamente, em contexto real ou simulado, segundo regras conhecidas ou não, com a finalidade de desafiar as pessoas a interagir, atingir metas ou simplesmente terminar em primeiro.

Um game tem a propriedade de transitar sem restrições entre aqueles três universos do Homem — do produzir, do aprender e do brincar; um game é, enfim, um edu-work-playish gadget (um dispositivo a serviço de education, de work e de play, tudo ao mesmo tempo)!

Em Ender’s Game, as crianças entram no programa de formação ao seis anos — uma idade perfeitamente adequada, já que elas encontram-se, então, plenamente aptas a participar de games complexos, e isso sem a menor preocupação com algum tipo de classificação do dispositivo que estiverem operando — se é uma ferramenta de trabalho, um recuso pedagógico ou um artefato lúdico.

A diluição da infância e da adolescência na vida adulta

Provavelmente, na medida em que nosso mundo real vier a (nesse aspecto em particular) mais e mais aproximar-se do que é retratado em Ender’s Game, o que presenciaremos na vida de nossos filhos e netos será talvez uma imposição às pessoas, por parte da sociedade, de um verdadeiro “derretimento” (ou diluição entre si) das idades mentais típicas das pessoas, hoje ainda distintas, da infância e da adolescência e da vida adulta.

Obviamente, as correspondentes disposições físicas próprias dessas idades, sendo geneticamente orientadas, não deverão se alterar na mesma proporção, mesmo que alguns especialistas possam vir a propor tratamentos baseados em engenharia genética ou intervenções psicofarmacológicas visando a acelerar o desenvolvimento fisiológico das crianças!

Mas, com certeza, esse descompasso entre desenvolvimento físico e mental das crianças e dos adolescentes, vindo a confirmar-se, irá sem dúvida gerar novos e sérios desafios à manutenção da saúde mental e do equilíbrio emocional das pessoas em geral, talvez levando a uma forte ênfase nas pesquisas, em centros especializados, em áreas tais como Neurociência, Psicologia, Psiquiatria e Educação.

Talentos muito jovens

Ender’s Game prenuncia, em última análise, que os talentos, nas organizações ou à testa dos negócios, poderão ser, nos anos futuros, pessoas cada vez mais jovens. Cinquenta anos atrás, era excepcional que alguém passasse a ocupar o cargo de principal executivo de uma grande organização antes dos 50 anos de idade, a menos que se tratasse do filho do dono. Hoje, ao contrário, é comum isso ocorra antes dos 40 e, não raro, na faixa de apenas 30 e poucos anos; e já se prenuncia a tendência de que, pelo menos em alguns ramos de negócio, a nova barreira a ser deixada para trás é a dos 20 anos de idade. Com quantos anos, afinal de contas, Ender Wiggin torna-se o comandante-em chefe de toda a operação de guerra dos terráqueos contra os Formics, em Ender’s Game?

Todavia, nem todos os personagens de Ender’s Game são jovenzinhos; o coronel Graff, Mazer Hackam e o Strategos (o chefe supremo) estão nos seus 70 anos, ao passo que a major Anderson e o sargento Dap (um ajudante de ordens de Graff) beiram os 50.

Vida profissional alargada e pluriencarreiramento profissional?

O que isso sugere? Que, apesar da clara tendência de incorporação de profissionais cada vez mais jovens ao mercado de trabalho, por todo o futuro previsível ainda deverá existir vida profissional após a meia-idade!

E quanta! Senão, vejamos: 50 anos atrás vivia-se em média 60 anos, trabalhando-se dos 14 aos 55 anos, portanto por 4 décadas. Vive-se bem mais hoje em dia, comumente até os 85 anos e em razoáveis condições de saúde. Além disso, como já mencionado acima, crianças em tenra idade já dominam variadas competências e tecnologias que são contributivas para o exercício de muitos trabalhos.

Conclui-se, logicamente, que haverá uma notável ampliação da faixa etária durante a qual as pessoas em geral estarão aptas para o trabalho (para algum tipo de trabalho). Pelo andar da carruagem, essa faixa deverá ir se alargando, até atingir, talvez, algo em torno de 6,5 ou 7 décadas — e isso em apenas algumas dezenas de anos mais!

Em decorrência, o mais provável é que as pessoas passem a experimentar, então, não apenas uma, mas diversas carreiras profissionais simultâneas, superpostas, assim como redirecionem de quando em quando os rumos dessas carreiras, continuamente reinventando-se. Viveremos concretamente um pouco daquilo que, nos anos 1990, a publicitária Faith Popcorn, em seu famoso livro O relatório Popcorn, chamou de “tendência a ter 99 vidas”.

Como e quanto essa nova forma de se viver profissionalmente afetará os empregos, os modos de vinculação entre trabalhadores e empresas, as formas de remunerar o trabalho, o papel dos sindicatos, as políticas de Recursos Humanos, é algo sobre o que só poderíamos fazer especulações, que, todavia, não cabem aqui.

Ram Charan como inspiração!

Retornando ao processo de formação descrito no filme, no último estágio Ender tem a responsabilidade de liderar um grupo altamente qualificado, que inclui alguns dos seus anteriores colegas no programa. Todos eles têm, agora, suas próprias equipes especializadas, que irão liderar sob a orientação geral do comandante-em-chefe, Ender Wiggin. Este tornou-se, agora, um líder de líderes!

Dada a evidente semelhança entre as duas propostas, é difícil não lembrar, nesse momento, o Pipeline de Liderança, ideia do consultor indiano Ram Charan para o desenvolvimento de gestores (ou de líderes — a distinção, embora a rigor devesse ser feita, não é claramente contemplada). Com colaboradores, Charan a expôs em seu livro Pipeline de Liderança — Desenvolvimento de líderes como diferencial competitivo (Rio de Janeiro, Ed. Campus, 2ª edição, 2013).

Ali ele apresenta esse processo em seis estágios (que chama de transições) progressivamente mais complexos: preparação para a autogestão, para a gestão de outras pessoas, para a gestão de gestores de funções, de gestores de negócios, de gestores de grupos e, finalmente, de gestores de corporações. Na sequência dada, função, negócio, grupo e corporação representam organizações progressivamente de maior porte, mais abrangentes e mais complexas. Também o processo pelo qual passa Ender Wiggin pode ser tomado como um autêntico pipeline de liderança.

A didática essencial do game

Em Ender’s Game, embora ocasionalmente ocorram também preleções, o game está presente o tempo todo no programa de formação de talentos. Ele define a metodologia empregada, na qual realmente se confia e em torno da qual todas as atividades pedagógicas giram.

Nos primeiros estágios do programa, os games tendem a ser mais genéricos, versando sobre situações simuladas. Na medida em que avançam no treinamento, os aprendizes vão sendo submetidos a games mais complexos, rápidos, intensos e decisivos, que os aproximam mais e mais da realidade dos Formics. Além disso, com a evolução do programa, situações de relacionamento novas e mais desafiadoras entre os próprios treinandos vão sendo intencionalmente provocadas, para testar os aprendizes. Também essas situações podem perfeitamente ser consideradas games.

A aspiração máxima da pedagogia: indistinção entre o real e o simulado

Em outras palavras, os games foram alçados à categoria de principal método de ensino do programa. E, como eles são mediados por recursos tecnológicos muito avançados (os participantes estão sempre olhando para os resultados de suas ações nas telas de seus aparelhos portáteis, ou em telões nas salas de comando, ou operando joysticks em consoles, ou ainda usando computadores vestíveis), chega-se a um ponto tal que os jovens aprendizes já não distinguem entre uma simulação e uma situação de efetiva interação com a realidade — assim como já não sabem se os ambientes e personagens adversários que aparecem nas telas (e que é preciso combater) são factuais ou apenas virtuais.

Entretanto, isso é intencional, isto é, essa é a proposta do programa: de tal forma condicionar o treinando a agir num dado contexto, que ele já não se importe em saber se as naves dos Formics que atacam as forças terráqueas no game (e que precisam ser combatidas) estão mesmo vindo do planeta dos Formics, ou se foram criadas em programas de computação gráfica para conferir maior dramaticidade ao exercício!

E é assim que, no ponto culminante da história, Ender Wiggin e seus líderes de equipes veem-se combatendo de facto os Formics (cujo planeta acabam por exterminar!), enquanto imaginam que aquela gigantesca “guerra nas estrelas” de que participam não passa de uma simulação, com o propósito de testar o nível de proficiência que lograram atingir.

Princípios de prazer e de realidade na educação do jovem

Ender Wiggin chega ao programa movido pela fixação de que precisa vencer sempre, todas as vezes que disputar qualquer jogo. Sendo ainda tão jovem, isso é compreensível: ele entra na situação movido pelo princípio de prazer, criança que é. A exposição da criança às situações concretas do cotidiano — ao princípio de realidade, portanto — deveriam servir para levá-la a amadurecer, isto é, a entender e aceitar que nem sempre se ganha e que é preciso aprender a tolerar algumas frustrações na vida.

Porém, não é bem o que se dá nesse programa, que prepara guerreiros para vencer um inimigo mortal: os Formics. O programa do coronel Graff foi idealizado para incutir (ou confirmar) na mente dos meninos a mentalidade de que é preciso sempre vencer, pois seus líderes estão convencidos de que exterminar os Formics representa a única chance de sobrevivência para os terráqueos! No seu entender, os Formics irão exterminar a vida humana na Terra, se puderem fazer isso — e a guerra que foi travada cinquenta anos atrás é um óbvio atestado disso. Portanto, não há opção: a única solução é exterminá-los antes!

Um verdadeiro talento desenvolve-se mesmo sem a orientação de outrem

Pela filosofia do programa, portanto, a ordem é uma só: vencer ou vencer! É desse modo que, paradoxalmente, em vez de ser um fator de desenvolvimento emocional efetivo do educando, o programa do coronel Graff intencionalmente gera o oposto: mantém o jovem num estado de imaturidade, em que o desejo de vencer a todo custo suplanta qualquer outro. E, se isso parece adequado a princípio (dado o objetivo final que precisa ser alcançado), no fundo pode gerar exatamente efeito inverso (isto é, pôr em risco o atingimento desse mesmo objetivo), porque de fato impede, em vez de contribuir para, o crescimento do educando num aspecto que é tão fundamental de sua formação!

O que se conclui a partir dessa constatação é que um novo e maravilhoso traço demonstrativo da especial personalidade e da genialidade de um verdadeiro talento vem a ser ressaltado por essa circunstância: em boa medida, Ender Wiggin desenvolve suas melhores competências não por causa do programa de que participa, mas apesar das limitações que lhe são impostas por esse mesmo programa!

Com efeito, logo percebemos claramente que, ainda no início do programa, Ender já terá ultrapassado esse estágio de ingenuidade, passando a encarar os jogos de que participa de forma muito mais madura: ele joga para ganhar, é certo; mas, para conseguir isso, ele estuda detidamente seu adversário, querendo entender como age e por que age desse modo. Ele quer literalmente absorver o modo de ser do outro, ao ponto de poder antecipar-se a ele.

A questão não é vencer, mas como se vence!

Ender’s Game é um filme moralista: os autores da história original e/ ou do roteiro não concordam com a filosofia do coronel Graff! Assim, à medida que avança em seu treinamento, Ender é cada vez mais frequentemente assaltado pela ideia de que talvez haja uma outra saída para a questão Terráqueos vs. Formics; que não é possível que a situação seja tão-somente um jogo de soma zero, em que um dos lados somente sobreviverá se exterminar o outro!

Obcecado pela ideia de pôr em prática sua crença pessoal (exposta logo no início do filme) de que compreender o inimigo é o que o tornará capaz de derrotá-lo, durante todo o treinamento Ender sente-se profundamente perturbado por não estar conseguindo decifrar o mindset dos Formics: como eles pensam e por que pensam assim. Para Ender, no momento em que conseguir adequadamente decodificar a forma de raciocinar do seu inimigo, ele passará a ser igualmente capaz de achar uma saída criativa para o confronto com os Formics — que não se limite àquele tóxico jogo de soma zero do tipo “ou eles ou nós”.

E há, além disso, um segundo paradoxo envolvido na situação, que torna o dilema de Ender ainda mais angustiante. É a constatação de que (novamente de acordo com sua regra de conduta), ao compreender o inimigo, ao menos nesse momento ele também irá amar esse inimigo, o que o remete a um beco sem saída em relação aos Formics: Ender precisa compreendê-los para poder exterminá-los; mas, se irá amá-los ao compreendê-los, como lhe será possível tomar a decisão de exterminá-los!?

Graff, que, por sua vez, é também um inegável talento, percebe esse dilema que já tomou conta da mente de Ender. E sabe, por conseguinte, que o menino, a essa altura já indicado para ser o comandante-em-chefe dos Terráqueos na guerra sem tréguas contra os Formics, não estará disposto a destruí-los pura e simplesmente, caso venha a compreendê-los o suficiente para saber como irá derrotá-los.

Por essa razão, Graff maneja as coisas junto ao Strategos de modo que Ender empreenda a batalha final contra os Formics sem saber que está travando uma guerra de verdade, mas pensando estar ainda operando numa simulação, contra um inimigo fictício. A manobra dá certo e, somente quando já encerrado o combate final, ao ver a devastação que produziu no planeta dos Formics, é que Ender cai em si e, para seu desespero, toma consciência do que fez!

A sociedade das formigas

Ender consegue derrotar os Formics porque finalmente os entende: ao se encontrar e debater a situação com Mazer Hackam, ele se mostra intrigado com o que vê nas cenas gravadas da batalha final em que Hackam conseguiu derrotar os Formics, 50 anos atrás. Eles reveem juntos as cenas e, nelas, a batalha parecia, na realidade, perdida para os Terráqueos, quando Hackam, pessoalmente, manobrou sua nave de guerra na direção do centro da nave-mãe dos Formics e disparou, destruindo-a. Em vista disso, imediatamente todas as naves adicionais dos Formics deixaram de lutar.

Ender entende, então, que os Formics são uma sociedade que funciona como a sociedade das formigas (obviamente o nome escolhido para essa raça alienígena foi proposital), na qual um personagem central — a rainha — pensa por toda a colônia, com esta funcionando apenas como uma imensa quantidade de braços — nada mais que mão de obra braçal — do cérebro, que é a rainha: Hackam derrotou os Formics porque destruiu sua rainha, que pensava por todo o planeta dos Formics. E essa estratégia foi fundamental para o êxito também de Ender, mais adiante.

Essa ideia de que é o formigueiro, e não cada formiga em particular, que deve ser entendido como um organismo nesta espécie animal é, na verdade, uma simplificação, conforme explicam os mirmecologistas (estudiosos das formigas). Mas ela pode, ainda assim, nos servir aqui, pois de modo geral é isso mesmo que acontece: a formiga-rainha põe os ovos, dos quais sai uma infinidade de formigas prontas para trabalhar (ir a busca de alimentos, transportá-los e armazená-los; reproduzir-se; defender o formigueiro; etc. Quando falta a rainha, falta o cérebro condutor; e, então, todo o sistema se desorganiza. Porém, sob a condução dela, a cooperação que se observa no formigueiro é extraordinária e o produto desse trabalho coletivo é de extrema eficiência. O biólogo Edward O. Wilson brinca, dizendo que, portanto, pode-se dizer que sim, o socialismo funciona, pelo menos em certas circunstâncias. Apenas, Karl Marx teria escolhido a espécie errada para estudar; deveria ter se concentrado nas formigas!

A ideia sugerida neste filme, de que os Formics acabariam por destruir os seres humanos, pode ser também uma informação metafórica do que acontece na vida real, em nosso planeta, com as formigas: elas são extremamente eficientes em se reproduzir e têm feito um trabalho incrível para algum dia dominarem a Terra.

As formigas existem há 100 milhões de anos, desde a época dos dinossauros; e, tendo um tamanho que equivale a cerca de um milionésimo do corpo humano, reproduzem-se umas 500 vezes, nos vinte anos que o ser humano leva para formar cada nova geração. Por isso, já pesam hoje, juntas, tanto quanto todos os seres humanos vivos!

Será mesmo o fim de todas as guerras!?

Consciente ou inconscientemente, os criadores da história remetem o espectador a um terrível episódio da Segunda Guerra Mundial, o mais assustador de todos, que é o lançamento das bombas atômicas pelos EUA sobre as cidades japonesas de Hiroshima e Nagasaki. Exatamente agora, no momento em que este texto é produzido, pela primeira vez um presidente americano (Barack Obama) visita uma dessas cidades no Japão, não para pedir desculpas, mas apenas para prestar uma homenagem aos mortos da guerra.

As informações oficiais dizem que o presidente norte-americano Harry Truman decidiu lançar as bombas sobre as cidades japonesas, porque essa iniciativa encerraria o conflito e assim salvaria milhares de vidas de norte-americanos. Porém, como a derrota militar do Japão já era, a essa altura, absolutamente clara para ambos os lados, alguma iniciativa diplomática (como a que houve logo em seguida) poderia ter igualmente encerrado a guerra sem a detonação das bombas, poupando-se as vidas de 200 mil cidadãos japoneses mortos nas explosões ou posteriormente, por efeito delas!

Alguns anos mais tarde, concluiu-se que, na verdade, uma segunda intenção dos líderes militares norte-americanos (talvez até prioritária) consistia em, pela explosão das bombas, enviar uma mensagem sobre o poder bélico do país (agora que detinha a tecnologia de fabricação dessa nova arma de destruição em massa) à… União Soviética, visando a dissuadi-la de quaisquer iniciativas hostis contra os EUA!

Isso pareceu necessário porque as relações entre as duas nações haviam, então, se deteriorado gravemente. O efeito real da medida, porém parece ter sido o oposto do pretendido: em vez de aquietar os soviéticos, o disparo daqueles artefatos acabaram sendo, na realidade, somente o primeiro de inúmeros momentos de louca tensão entre as duas potências, na Guerra Fria!

O que isso tem a ver com a guerra empreendida pelos Terráqueos para destruir o planeta dos Formics? Tudo! O raciocínio lógico que preside as decisões tomadas numa e noutra guerra são rigorosamente a mesma!

A história é moralista porque, ao final desta, Ender Wiggin descobre que a rainha dos Formics, moribunda, de fato não queria a guerra; e apenas tentava, a seu modo, comunicar-se com os Terráqueos por meio de Ender, penetrando nos sonhos deste a fim de atraí-lo para alguma forma de conciliação. Saber disso leva Ender a entender que, de fato, a destruição do planeta dos Formics não era necessária, e que outra solução seria possível.

Profundamente tomado pelo remorso a respeito do que fez, Ender se põe a campo, numa peregrinação pelo Universo, em busca de um novo lar para os Formics que sobreviveram ao genocídio. Mas explorar aqui também estes pontos somente nos iria desviar do que nos interessa discutir.

Uma só Humanidade!

Ainda outras questões interessantes aparecem em Ender’s Game, mas são apenas secundárias. Uma delas merece, mesmo assim, ser citada:

É o fato de que, no tempo futuro em que a história se passa, toda a Terra já está unida numa única entidade política, ou pelo menos é essa a clara impressão que se tem: o tem central da história não é sobre a guerra entre este ou aquele agrupamento humano, esta ou aquela nação, mas entre humanos e não-humanos alienígenas.

Alguém disse certa vez, com muita felicidade, que o ser humano não se entende, ainda hoje, como uma categoria única, talvez por causa da absurda hegemonia que a inteligência nos confere sobre os demais animais, que vemos como inferiores demais para aceitar a comparação entre nós e eles.

Por isso, provavelmente, nossos principais atos, para o Bem ou para o Mal, nunca são tomados com honestidade como tendo sido exercidos pela Humanidade como um todo; eles sempre foram atos restritos a grupos nacionais específicos, ou a parcelas delimitadas da Humanidade. Quem foi à superfície da Lua não foram os homens, de fato, mas os “americanos”; assim como a filosofia se iniciou com os “gregos”, o Holocausto foi obra dos “alemães” sob o comando da mente doentia de Hitler; e a primeira experiência socialista se deu entre os “soviéticos”. Nada disso foi um ato de todos os Humanos!

Ender’s Game não discute essa questão de sermos uma única Humanidade. Entretanto, podemos observar que os personagens do filme têm variadas aparências o nomes, sugerindo diferentes nacionalidades e origens étnicas, por conseguinte permitindo pressupor que possam ter vindo de diferentes áreas do planeta e que este está agora unido numa única grande nação: fisionomias de brancos, indianos, orientais de olhos puxados e negros fazem igualmente parte dos grupos de treinandos do programa.

A figura física de Mazer Hackam merece uma menção. Quando o encontra, Ender Wiggin estranha o rosto do herói, coberto por linhas geométricas sulcadas (não apenas marcadas com tinta, como são as tatuagens, mas realmente escarificadas na pele). Hackam explica que é um nativo dos maori, da Nova Zelândia, e que esse tipo de ornamentação da pele, chamada Ta Moko, é típica dos povos da Polinésia. Como Ender não entende o porquê de Hackam continuar usando aquilo (como se fosse possível retirar o Ta Moko sem simplesmente trocar de pele!), o herói lhe diz que essa é a forma de ele sempre vir a se lembrar de sua origem étnica.

Essa breve passagem ajuda a lembrar uma questão que vem sendo recorrentemente discutida em muitos círculos, em política, administração e antropologia, entre outras disciplinas: estaria o mundo se tornando culturalmente um lugar único? Ou, desafiados pela globalização, cada povo tenderá, daqui por diante, cada vez mais, a aferrar-se aos seus hábitos e costumes, recusando-se a substituí-los por uma cultura universal? Aparentemente, o filme deixa antever que esse embate entre uma cultura planetária e a multiplicidade de culturas específicas espalhadas coexistindo entre si ainda não terá se resolvido até a chegada desse tempo indefinido em que a história acontece.

Originally published at marco-oliveira.com.br on May 28, 2016.

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marco a. oliveira

Writer, anthropologist, management consultant, university professor & researcher, editor.