A tecnologia está a afastar-nos uns dos outros?

Marco Neves
5 min readOct 30, 2014

“Andamos tão embrenhados nos telemóveis, computadores, emails, iPhones e outros que tais que nos estamos a esquecer do principal: o contacto cara a cara. Estamos a afastar-nos uns dos outros e a trocar o calor humano pelo frio dos píxeis dos ecrãs.”

Este é o discurso habitual sobre as tecnologias de comunicação. Mesmo quem anda sempre de telemóvel na mão não perde uma oportunidade para lamentar o isolamento a que as tecnologias nos andam, pelos vistos, a condenar. Quando queremos dar um exemplo, apontamos logo para os grupos de jovens calados a olhar para o ecrã do telemóvel. Para quem tem uma inclinação mais romântica, o cúmulo desta obsessão tecnológica será um casal à mesa dum restaurante, cada um a olhar para o ecrã de telemóvel.

Este discurso anti-tecnológico é muito sedutor. Todos preferimos estar cara a cara com as pessoas de quem gostamos do que estar a vê-las num ecrã. Quando vemos alguém a falar com outra pessoa por SMS, Skype ou Facetime, ficamos chocados por acharmos que essas pessoas preferem falar assim a estar lado a lado. Mas há um erro lógico por trás deste discurso — ninguém prefere falar assim. Uma grande parte das vezes, o contacto por telemóvel ou computador não substitui o contacto cara a cara. Substitui, isso sim, a ausência de contacto. Quem comunica com um amigo por telemóvel preferiria estar perto desse amigo—mas como não pode, usa o que tem ao seu alcance.

Vou contar-vos uma história que não se encaixa na narrativa anti-tecnológica, mas está longe de ser um caso raro. É uma história parecida com o que acontece nos lares de muitas famílias portuguesas, nesta época em que tantos estão a emigrar.

Ontem, o meu filho fez anos e tivemos um pequeno jantar de família. Um dos meus irmãos está a viver em Inglaterra, com a mulher e a minha sobrinha de cinco meses. Quando chegámos ao momento de cortar o bolo, ligámos um tablet e o meu irmão e a minha cunhada cantaram os Parabéns em conjunto com toda a família.

Sim, o meu irmão e a mulher estavam reduzidos a um pequeno ecrã—gostávamos de os ter ali, em carne e osso, ao pé de nós. Mas será que, não havendo tablets ou internet, eles apareceriam ali como por magia? Claro que não: simplesmente não teriam participado naquele momento de família.

Neste caso, o contacto por telemóvel ou por internet diminuiu um pouco a distância—ninguém pode dizer que ficámos mais distantes por causa dos tablets e telefones. Não: ficámos mais distantes porque eles vivem noutro país. A tecnologia ajudou-nos a compensar um pouco essa distância.

Acusar a tecnologia de nos estar a afastar uns dos outros é tão absurdo como acusar os livros de nos estarem a afastar da presença dos autores. Os livros também são tecnologia e também nos ajudam a comunicar quando não há outra forma.

Voltemos aos tais jovens de telemóvel na mão. Nunca houve uma geração tão em rede. Sabem mexer em computadores e parecem nascer já com os dedos preparados para os ecrãs dos telemóveis. Ora, se a tecnologia afastasse realmente as pessoas, esta geração devia estar a sofrer uma praga de falta de namoros, de falta de saídas à noite, de falta de convívio—enfim, de falta de sexo... Oiço pouca gente queixar-se de que os jovens saem pouco à noite ou andam a namorar pouco ou andam a deixar de lado os prazeres mais mundanos para passarem horas na internet. Os jovens, vá-se lá saber como, arranjam tempo para tudo: para a internet e para o sexo. Malandros.

Será assim tão fácil pensar num caso em que alguém tenha deixado de falar ao vivo com outra pessoa com quem queria falar ao vivo porque a tecnologia o impediu? Nem o Siri dos iPhones nos manda ficar em casa! (Antes pelo contrário.) Sim, a tecnologia evita uma série de reuniões profissionais e outros encontros ao vivo—mas esses encontros forçados deixam poucas saudades. Ficamos com mais tempo para estar com quem importa. Ou não será assim?

“Então, mas será normal haver pessoas que estão a olhar para o telemóvel enquanto jantam com outras pessoas?”

Pois, não será normal, mas o problema não é a tecnologia: é antes a falta de educação. É possível estar num jantar e olhar para o garfo, sem interagir. É possível estar a jantar e a ler o jornal. A tecnologia é apenas mais uma ferramenta ao dispor dos mal-educados. Não é a origem dessa má-educação.

“Então e o casal que está frente a frente a olhar para os telemóveis?”

Bem, pode ser um casal com muitos anos, que não se importa de estar a ler em conjunto. Não será uma prova de intimidade o facto de termos essa capacidade de estar juntos em silêncio e sem embaraço, como se a presença mútua fosse a coisa mais natural do mundo, sem obrigar a uma constante troca de palavras?

Se for um casal mais recente, enfim… Sempre houve pessoas pouco dadas ao contacto físico—e com um telemóvel a rapariga sempre pode enviar uma mensagem às amigas a dizer que lhe calhou em rifa um chato que não larga o telemóvel…

Em conclusão, para termos uma visão mais completa do impacto da tecnologia nas relações humanas, não podemos olhar apenas para os casos que confirmam a nossa narrativa habitual. Temos de ouvir outras histórias, pensar um pouco melhor e deixar de assumir, por defeito, que a tecnologia nos afasta. Por outro lado, sei que há quem ataque a tecnologia para contrabalançar um discurso pró-tecnologia que também se vê por aí e que muitos acham pecar pelo excesso de confiança nas maravilhas das novas tecnologias. Compreendo isso, mas sejamos razoáveis e menos injustos para um tipo de tecnologia que serve para nos aproximar daqueles que estão longe e de quem gostamos. Não é pouco, não é nada pouco.

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Marco Neves

Writer of non-fiction books on language and translation. Assistant Professor at NOVA University of Lisbon. Researcher at CETAPS.