Life is Strange e os heróis do cotidiano

Marco Rigobelli
Ponto Ômega
Published in
13 min readOct 26, 2015

Em cinco episódios e quinze horas um pequeno estúdio francês chamado Dontnod pela primeira vez me desolou com o final de um jogo, me fez sentir saudade antecipada da jornada, desejar boa sorte a esse amigo que agora se despede enquanto fico digerindo todas as coisas pelas quais passei em cada episódio, explorando e me envolvendo com as histórias daquelas pessoas numa cidadezinha litorânea fictícia dos EUA. Life is Strange tornou-se um daqueles jogos que não me diziam muita coisa no primeiro contato, mas comprei porque simpatizava com a proposta e que, talvez devido a isso, me pegou de surpresa. Não foi a primeira vez que um jogo focado em decisões me fez pensar antes de pesar uma escolha importante, ou medir a importância de pessoas e consequências, mas foi o primeiro que fez elas serem significativas para mim, fez-me refletir sobre minha própria condição como alguém que precisa tomar decisões todo o tempo.

Antes de mais nada, preciso falar sobre o enorme elefante na sala: amo videogames, fizeram parte de minha vida e da minha construção pessoal. Porém mesmo meus jogos favoritos nunca foram capazes de me afetar emocionalmente da mesma maneira que meus livros, filmes, músicas ou histórias em quadrinhos favoritas conseguiram. Jogo desde que me entendo por gente e passei três anos escrevendo sobre eles diariamente, mas terminar um jogo nunca deixou-me desolado, como se tivesse perdido alguém muito importante, da mesma forma que bons livros já deixaram. Essa é uma sensação esquisita, porque de alguma forma você não está querendo mais daquilo, só sabe que aquela jornada foi importante, que ela possivelmente te mudou de alguma forma.

Para não ser injusto, alguns jogos chegaram muito perto disso. Mass Effect 2 principalmente, Red Dead Redemption e Grand Theft Auto V também estiveram quase lá. Indigo Prophecy teve todo o potencial do mundo até chegar na metade e jogar isso pro alto e creio que Shadow of the Colossus teve intenções ótimas, mas também não me trouxe essa sensação no final. Brothers: A Tale of Two Sons e Gone Home foram emocionantes para mim em níveis que nenhum outro jogo conseguiu ser por suas características únicas, mas não chegaram lá. A Telltale fez um trabalho ótimo em The Walking Dead, o jogo tinha tudo para me deixar com o estômago embrulhado quando terminasse e, sim, me emocionou. Sem contudo causar essa sensação.

Isso porque videogames ainda lidam mal com contar histórias sobre o cotidiano. É uma mídia jovem que começou escrava de suas próprias limitações. Há muito tempo toda narrativa interativa precisa de alguma forma validar a mecânica, e a interação que destaca o modo de contar histórias nos videogames de todos os outros depende de cumprir objetivos e superar desafios. Mario era basicamente um jogo sobre vencer obstáculos para alcançar um objetivo, toda a mitologia que existia em torno disso não era muito diferente do que fazer sombras na parede com as mãos e justificar porque elas estão chacoalhando paradas no mesmo lugar.

O cotidiano é tudo aquilo que acontece quando você não está atirando em ninguém; são os sentimentos comuns, os impulsos e desejos diários, tudo aquilo que faz um dia mais difícil ou fácil de se terminar. As pessoas, a sociedade e o mundo são todos colchas de retalhos feitas por esses pequenos pedaços do dia-a-dia que formam algo maior. Por isso, falar sobre o cotidiano não necessariamente significa fincar os pés no mundo real ou em suas regras. Na verdade não há limitações nisso, Life is Strange trabalha com a simplicidade das escolhas e dos dramas adolescentes muito bem usando a viagem no tempo como uma ferramenta — da mesma forma que De Volta Para o Futuro fez em sua época.

Nos videogames, histórias mais intimistas costumam dar lugar para narrativas épicas que envolvem decidir o destino do universo, cumprir objetivos, acumular novos poderes e receber recompensas. Só recentemente os criadores de jogos entenderam que você nem sempre precisa ser recompensado para continuar interessado na história com a qual interage, que muitas vezes isso pode até atrapalhar seu envolvimento com ela. Nossa fome por prêmios muitas vezes é tão grande que finais corajosos são raros porque os jogadores não querem se frustrar. E a ficção não se trata de te fazer fugir das frustrações, mas de te ajudar a enfrentá-las através de novos pontos de vista.

Com o passar do tempo as coisas melhoraram, mas não mudaram muito. Estamos cheios de épicos sobre guerras e vencer desafios porque não importa o tipo de história que você queira contar, ela precisa obedecer a essa mesma rotina de alcançar objetivos, resolver enigmas e ganhar recompensas. A mecânica é fundamental nos videogames, ela é o conjunto de regras que ajudam a dar um norte para a jornada do jogador, o meio-campo entre quem interage e o universo sendo interagido, a ela cabe obedecer ou desobedecer física e realidade com a intenção de oferecer uma experiência coerente e por isso mesmo a mecânica precisa ser subvertida.

Papers, Please, os próprios Brothers: A Tale of Two Sons e Gone Home são os primeiros exemplos que me vêm à cabeça quando penso em mecânica trabalhando para a narrativa e não no contrário. Em todos ela é muito básica, seja resolvendo enigmas de lógica, memória e atenção, seja simplesmente explorando e se movimentando em um espaço, ou ainda contrariando a lógica de navegação e controle. Estes jogos mostram como é importante quando a interatividade proporcionada pela mídia vira uma ferramenta para contar histórias melhores.

Em Life is Strange a protagonista Max Caulfield é apresentada depois de um sonho, do qual acorda durante uma aula. De certa maneira, o início lembra o primeiro parágrafo da Metamorfose de Kafka: Max acordou de sonhos intranquilos sem perceber que estava transformada, dessa vez não em um inseto monstruoso, e que aquilo significa uma mudança fundamental em sua vida.

As primeiras ações do jogo focam-se em apresentar jogadores e protagonista, introduzindo uma das suas decisões de design mais acertadas: orbitar a narrativa toda em torno do ponto de vista da própria Max. Não vemos a câmera afastando-se da percepção dela ou coisas acontecendo sem que ela as veja. As surpresas da personagem também são as nossas, assim como suas descobertas e decisões.

O jogo se passa na cidadezinha fictícia de Arcadia Bay, que fica no estado norte-americano do Oregon. Max nasceu nela, mas mudou-se para Seattle ainda quando criança. A história começa três meses depois dela ter voltado para estudar na Blackwell Academy por causa das famosas aulas de fotografia ministradas lá pelo professor Jefferson.

E o jogo não tenta ir muito além daí, porque nos mostra que esse pequeno cosmos escolar consegue ser muito maior do que podemos esperar. Somos mergulhados nos dramas adolescentes de uma maneira bem interessante. No ecossistema de Max temos todos os arquétipos de personagens que nos acostumamos a ver em histórias adolescentes no cinema e na TV. A garota popular e cruel, o CDF, os ricos arrogantes e por aí vai. Isso torna familiares pessoas que são complexas em sua simplicidade aparente . Boa parte do interesse que temos em cada episódio do jogo está no processo de despir esses personagens e encontrar o que de fato existe dentro de suas cabeças.

É para validar o elenco, a história e o quanto as decisões são importantes para a narrativa que serve a mecânica simples do jogo. Ela também tem a intenção de ser democrática, não há quick time events como nos adventures da Telltale porque em Life is Strange eles seriam mais um obstáculo no caminho da imersão do que um recurso para ela. E mesmo sem eles nunca fica a impressão de que estamos fora da ação. Os momentos em que ficamos impotentes são justamente aqueles importantes para mostrar à Max quão poderosas podem ser as consequências daquilo que ela — no caso, cada um de nós — faz.

Além dos direcionais para caminhar e mover a câmera, só três botões são usados: um para correr, outro para interação e um último que ativa os poderes da Max. Essa proposta é bem útil para a narrativa; ela é tão simples quanto em qualquer adventure moderno, uma evolução do que já nos foi apresentado pela Telltale Games. No jogo da Dontnod, a sensação de liberdade — principalmente espacial — é visivelmente maior.

Essa liberdade também tem uma utilidade bem específica: ensinar quais os limites e a lógica dos poderes através da experimentação. Isso ajuda muito na solução dos problemas que aparecem a medida que a história avança e também a pensar em novas formas de aplicar essa volta no tempo. Logo após descobrirmos os poderes, somos colocados em uma situação de decisão em que eles podem ser aplicados dependendo das respostas imediatas que tivermos. Porque, é preciso lembrar, Max só consegue voltar alguns segundos — minutos, no máximo –, então só é possível voltar atrás em escolhas feitas no momento. Em coisas assim essas limitações são importantes e ajudam a não quebrar a experiência.

Isso fica evidente quando Max descobre seus poderes e logo depois disso eles estão completamente em suas mãos (dela e dos jogadores) para serem usados como bem entender. A princípio ela só é capaz de fazer saltos curtos para o passado porque o processo parece ser muito dolorido. Você como jogador pode usar o comando de voltar no tempo quando quiser, mas nada de importante vai acontecer, voltar no tempo não vai obrigá-lo a mudar se você não se meter em nada. É uma forma interessante de se usar a mecânica em favor da história e até de ensinar tanto ao jogador quanto à própria Max que mesmo grandes poderes podem não ter significado nenhum quando usados sem coerência.

A partir daí os diálogos viraram um parque de diversões pra mim. Explorei todas as opções que pude e, se algum resultado não me agradava, simplesmente voltava no tempo e tentava de novo. A liberdade te incentiva a isso; Max é uma moça de 18 anos, a experimentação é natural, qualquer um de nós na situação dela tentaria fazer todo o possível para convencer pessoas a gostarem da gente, então poder voltar no tempo e refazer diálogos é uma consequência natural para alguém com esse tipo de poder nessa idade. Max, além disso, é descrita como xereta tanto por si mesma quanto pelos outros personagens, o que valida as árvores de diálogos e a insistência que o jogo nos permite em alguns assuntos. Tão dependente dos diálogos, o jogo tem nessa liberdade um de seus primeiros problemas. Um problema parecido ao de Uncharted.

Uncharted, principalmente o segundo, foi um trabalho importante para a narrativa em jogos. Uma ode a Indiana Jones e aos filmes de aventura dos anos 1980 explorando uma narrativa cinematográfica transitando entre os CGIs e a ação interativa. A tal transição se resolve com os personagens interagindo em diálogos ou com o cenário, normalmente dando início à ação que rapidamente volta ao controle de quem está jogando ou acontecendo simultaneamente a ela. O problema fica na discrepância entre os dois momentos.

Nathan Drake, o protagonista, é um genocida quando cai nas mãos dos jogadores. Toda aquela ideia de acumular pontos e superar obstáculos precisa ser reproduzida no jogo, nem que ela acabe se tornando um problema para ele. Durante as cutscenes Nathan parece ser o tipo de cara que todos queríamos chamar pro boteco, ele poderia eventualmente matar pessoas em autodefesa, mas de forma nenhuma transmite a sensação de se divertir matando que temos quando assumimos o controle dele. Durante toda a ação, temos piadas e comentários espirituosos sendo cuspidos a torto e direito enquanto ele mata centenas, possivelmente milhares, de pessoas porque de alguma forma elas estão entre Nathan e seu objetivo.

Em jogos de guerra, ainda há as desculpas típicas sobre tudo ser válido no campo de batalha. No caso de Uncharted, muitas vezes assistimos massacres acontecendo no meio de cidades populosas e nenhuma autoridade tenta interferir. Há, dessa forma, uma dissonância entre a história do jogo e o que está sendo jogado — respectivamente chamadas de narrativa embutida e narrativa emergente –, como se toda aquela matança estivesse acontecendo em uma realidade paralela dentro da cabeça de Nathan e diante dos olhos do jogador.

Life is Strange tem algo parecido acontecendo durante seus diálogos. Para manter a necessidade de recompensa de quem está jogando, por algum motivo as pessoas aceitam responder todas as perguntas de Max, e poucas se incomodam ou cortam o assunto. Tudo para saciar a curiosidade dos jogadores e não frustrá-los, porque provavelmente muita gente ia acabar se irritando se precisasse voltar no tempo todas as vezes em que a conversa fosse encerrada pelo NPC.

Mesmo assim, isso só veio me incomodar no quarto episódio, enquanto tentava convencer alguém a me entregar um item, percebi que aquele personagem já teria colocado um fim na conversa umas três perguntas antes da última, o que me fez lembrar de outros personagens que deveriam ter feito a mesma coisa antes. Tudo poderia ser resolvido com uma mudança que obrigaria os jogadores a voltar no tempo para experimentar outras opções de diálogo.

Contar a história através do ponto de vista da protagonista tem um peso narrativo significante. Além da forma como lidamos com os mistérios e nossa relação com os coadjuvantes se influenciada pela forma como a Max os vê, toda a direção de arte também é afetada. Life is Strange não busca um visual fotorrealista, na verdade ele tem um quê de história em quadrinhos. Não há nenhum filtro cel-shading pesado que transforma as pessoas em caricaturas, na verdade há pouca abstração nas imagens e vemos representações bastante proporcionais dos seres humanos. As formas geométricas estão sempre rabiscadas, como se fossem rascunhos, lembrando muito dos desenhos que Maxine fazia quando criança e que ainda podemos ver em seu diário, outra ferramenta narrativa e de interação fundamental para o jogo.

O mundo sob o olhar de Max parece estar sendo desenhado em tempo real pelo quadrinista Cameron Stewart, o que ajuda a contar a história, sempre com um pé na realidade e outro na fantasia. E isso é importante, porque a arte faz parte da personalidade de Max e da forma como ela interage com o próprio poder de voltar no tempo. De alguma maneira toda a vida dela gira em torno da arte e da fotografia, é a maneira como tem para se expressar e toda a construção de referências que tem, logo é o filtro através do qual Max vê o mundo. Por isso a música também tem um papel tão importante em Life is Strange. Bandas independentes, canções desconhecidas, trilhas incidentais e de fundo, tudo ajuda a montar cenários, personagens e cenas.

Devido a esse ponto de vista, Life is Strange é um jogo sobre mulheres. Ele faz a inversão de tropos comuns na ficção e coloca os problemas femininos em primeiro plano com seriedade e respeito. No papel de Max, precisamos lidar com problemas como slut-shaming, gravidez indesejada, abuso, desapego e os papéis sociais que as mulheres desde muito cedo precisam interpretar para se encaixarem no que é esperado delas pelo meio em que vivem. A rivalidade e a relação de poder com professores também é um tema recorrente junto aos dramas familiares e a necessidade de encontrar um quebra-cabeças no qual sua peça se encaixe.

Max se vê cercada desses problemas e não precisou do Tio Ben pra saber que seus grandes poderes trariam grandes responsabilidades. O formato episódico até ajuda no ritmo do jogo, ao dar atenção para os problemas que não estão totalmente relacionados à história principal. Vamos ajudando e entendendo pessoas, desembrulhando histórias e descobrindo motivações — aos poucos descobrindo que as coisas que pareciam não ter qualquer relação na verdade estavam conectadas o tempo todo. Nesse momento o jogo faz mais relações com nossas vidas, o tempo todo tomamos decisões simples e significantes que nos fazem querer voltar pra mudar tudo sem saber quais seriam as consequências disso. Na pele de Max, somos sempre confrontados por isso, e essas mudanças aparentemente inofensivas são capazes de mudar todo o mundo em que ela vive.

As escolhas que precisamos fazer a cada segundo de cada dia são o tema central de Life is Strange. A grande maioria delas passam despercebidas na nossa rotina, porque não assistimos as consequências delas se desenrolando, quando escolhemos jogar a lata em um lixo ao invés de outro, não sabemos o que esse evento em específico pode ter causado porque para nós ele não teve importância, veio de uma decisão automática.

No jogo a coisa muda, porque mesmo que não vejamos as consequências imediatas na maioria dos casos, ter o poder de voltar no tempo e tentar outra coisa muda nossa percepção do que é importante e do que não é. Cada conversa é significante, cada atitude pode mudar tudo em alguns dias, cada ação provoca uma reação de vida ou morte. Max encara a própria situação muito bem pra alguém de sua idade, a pressão e responsabilidade sobre uma jovem aos 18 anos capaz de voltar no tempo e manipular sua relação com os outros teria desequilibrado a maioria das pessoas. Nas mãos do jogador, ela ganha o espírito de uma super-heroína, dando o melhor de si para mudar a vida de pessoas que sofrem com abuso e violência ao seu redor.

De muitas maneiras, Life is Strange foi a grande surpresa do ano pra mim, e não falo só nos videogames. O jogo de um estúdio pequeno distribuído sem muito alarde revelou-se uma história cativante sobre responsabilidade, escolha e enfrentar o mundo e o tempo, duas entidades que existem independentemente de nossos desejos e necessidades, mas das quais dependemos para tudo. Acompanhei Max em uma jornada que ensinou muito sobre ela e revelou muito sobre mim. Os jogos podem ser relevantes contando histórias que se relacionam com todas as pessoas mesmo quando conversa só com o microcosmo de um colégio em uma cidadezinha cheio de adolescentes que estão a um passo de serem engolidos pelo mundo. Todos nos relacionamos com ela em algum grau, e algo assim era necessário para lembrar aos videogames que eles ainda têm um longo caminho para seguir e de que maneiras o poder de interagir com a ficção pode afetar todos nós, os heróis do cotidiano.

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