Democracia, demografia e tecnologia

Marcos Sorrilha Pinheiro
6 min readJan 17, 2019

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A A democracia possui um longo histórico de desenvolvimento dentro do pensamento político ocidental. Vista com maus olhos pelos filósofos clássicos, ela ganhou papel de protagonismo na passagem da idade moderna para o mundo contemporâneo. Em um momento em que se questionava a tirania dos reis ou o excesso de regalias dos nobres, a democracia foi vista como um regime capaz de permitir que pessoas de diferentes estratos da sociedade tivessem influência sobre os destinos do governo. Na dinâmica do poder, a soberania se deslocava do topo para a base da pirâmide, do rei para o povo.

No entanto, esta não foi uma operação simples de se equacionar, uma vez que ela trazia um dilema em si, qual seja: se a soberania emana do povo, quem então seria o povo? O povo é um grupo formado pela plebe; por todas as pessoas de uma comunidade; apenas seus cidadãos; seus votantes; etc.? Nos primeiros anos de sua nascente república, os norte-americanos enfrentariam as armadilhas escondidas por detrás dessa questão. Constituídos inicialmente como uma confederação, desprovidos de um poder central, cada estado estabeleceu sua própria forma de governo, sendo a Pensilvânia aquele que teria o modelo mais ousado, possuindo um conselho no lugar de um chefe do executivo. A opção pela democracia direta também ganharia espaço em algumas localidades.

Com o início das crises econômicas em estados chave, como Massachusetts, bem como a deflagração dos primeiros levantes populares, não demorou para que alguns sujeitos vissem na democracia direta um problema. Entre eles, James Madison merece um destaque especial. Artífice principal da Constituição dos Estados Unidos de 1788, Madison acreditava que a democracia direta possibilitava o surgimento de líderes demagogos, interessados em insuflar as massas com falsas promessas, em prol de seu nome. Além disso, entendia que ela potencializava a manifestação de um vício moral dos homens, o de agirem sem escrúpulos quando em bandos, reproduzindo uma patologia da psicologia de grupo, capaz de oprimir estranhos em nome de sua turba. A isso ele chamou de “tirania das massas”. Não por acaso a Constituição colocaria a democracia representativa no centro da política norte-americana com um poder central figurado por um presidente, escolhido por voto indireto e respeitando as proporções populacionais de cada estado.

Ainda que um problema para as nascentes repúblicas modernas de todo o globo, a verdade é que esta foi uma questão fundamentalmente urbana, uma vez que o universo agrário permaneceria, por um bom tempo, ainda sob a égide de tradicionalismos e fisicamente muito distante das novas esferas de poder. Nas cidades, os homens de letras projetavam seus modelos ideais de sociedade na arte, na literatura e na política, elegendo seus pares, geralmente os membros de maior proeminência social, e ainda muito distantes da massa de pessoas que sequer podia ser chamada de povo.

Aqui é interessante notarmos a relação que se estabelece entre a história das ideias e a história social. Não que a primeira seja determinada pela segunda, mas que ela procura encontrar respostas aos novos dilemas desenhados pela sociedade, parece-me inegável. Digo isso, pois, é interessante percebermos como o movimento de pessoas do campo para a cidade provocou fenômenos na reconfiguração da política e, também, no próprio conceito de cidadania. Se olharmos a década de 1930 na América Latina, com o aumento das cidades, o surgimento dos convetillos, cortiços e barriadas, a dinâmica urbana se alterou tanto na geografia quanto na cultura. Personagens subalternos inundaram os centros das polis com novas tradições, costumes e hábitos de consumo, resultando na formação de um novo mercado com novas necessidades que geraram o surgimento de novos produtos. O mesmo se verificou na política e na própria configuração da identidade nacional. Aos poucos, lideranças foram surgindo desses grupos, organizando-se em volta dos sindicatos, das agremiações esportivas ou dos clubes de migrantes, exigindo acesso ao estado e uma maior participação no jogo político.

Este novo cenário culminou em um desarranjo no status quo, provocando uma espécie de turbulência nos paradigmas antes estabelecidos, dando a impressão de que a própria democracia estava em xeque. Não por menos, aqui na América Latina, o resultado foi o surgimento de vários governos autoritários, mas, sobretudo, reformistas e que conduziram (de cima para baixo) a inserção dessas novas camadas da população na seara dos direitos, políticos ou sociais. Em alguns casos a democracia não resistiu e caiu diante da força dos militares. Em outros, aquilo que se chamou equivocadamente de populismo foi a nossa democracia possível.

De fato, é preciso dizer que a democracia possui em si mesma os instrumentos necessários para a sua derrocada e flerta constantemente com essa situação. Esse foi um diagnóstico que já estava presente na obra de Tocqueville sobre a Democracia na América. A inserção de mais pessoas à lógica da busca por suas felicidades leva à necessidade por se estabelecer novos pactos e novos acordos que nem sempre se dão de forma organizada, sem solavancos ou, até mesmo, sem traumas. O individualismo e o egoísmo colocam a sociedade civil e o bem comum em articulação, mas também lhe põem sempre a prova. Por isso mesmo a democracia é um tipo de regime onde a inércia não compõe a sua essência. Talvez, por isso mesmo, ela soe tão estranha para nós latino-americanos, acostumados a associar modernidade e civilização à ordem.

Porém, o mais interessante de se observar é que a expansão da cidadania e a inclusão de novos atores ao jogo de intensas movimentações da democracia não se dá apenas pela lógica demográfica. De certa maneira, o fenômeno tecnológico promove uma maior circularidade das ideias, das opiniões e fazem com que mais pessoas possam manifestar suas vontades e descontentamentos. Isso é algo que pode ser associado ao próprio recorte temporal que estabeleci acima. Nos anos 1930 e 40, não apenas o rádio ganhava espaço nos lares e nos ambientes públicos, mas a imprensa se expandia com o surgimento de novas editoras, gráficas, revistas, panfletos, folhetins e livros.

No entanto, penso que o nosso momento atual seja mais digno de análise. Afinal, demograficamente não tivemos nenhuma grande virada nos últimos vinte anos. Porém, nesse mesmo tempo, mais pessoas foram incorporadas à lógica do consumo (pelo acesso ao crédito) e, com isso, adquiriram seus computadores e smartphones, fazendo do WhatsApp um fenômeno de comunicação que capturou o público de faixas etárias mais elevadas para as tecnologias — algo que os computadores foram incapazes de fazer. Desta feita, mais e mais pessoas passaram a ter acesso a informação e encontraram novas ferramentas onde puderam dar vazão à sua insatisfação e denunciar os obstáculos que se levantavam no caminho entre elas e a busca pela felicidade. Assim, novas lideranças surgiram nesses meios digitais e conseguiram personificar tais interesses e falar em nome desses sujeitos, antes alheios às decisões políticas.

Da mesma forma que na década de 1930, isso provoca um abalo nos antigos paradigmas da democracia e dá origem a essa sensação de que o próprio regime de poder está em questão. Assim como naquele momento, levará um tempo para que este horizonte de desordem se estabilize e um novo status quo se estabeleça. Exigirá novos pactos e novos acordos e, com eles, os traumas e solavancos próprios desses momentos. De certa maneira, a escolha por um governante “linha dura” em nosso país pode encontrar ressonância na imagem que possuímos da modernidade/ civilização, associada com a ordem, como eu já disse anteriormente.

Evidentemente que isso explica apenas uma parte da angústia democrática que vivenciamos atualmente. O quadro é muito mais complexo e repleto de vetores a serem explorados em outros textos futuros. De qualquer forma, a parte boa da História é que ela pode nos mostrar que, para além do nosso umbigo, momentos de rearranjo da democracia são muito mais constantes do que imaginamos. Dizer que vivemos o tempo mais sombrio da história não é apenas ato de ignorância, mas um gesto narcisista. Nesta fase que estamos, resta saber se por fim compreenderemos que a democracia implica em movimento constante e, por isso, nela as derrotas não são o fim da linha, mas um reembaralhamento (às vezes brusco) das cartas.

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Marcos Sorrilha Pinheiro

Professor de História da América — Unesp/Franca. Escritor. Autor de Lino Galindo e os Herdeiros do Trono do Sol.