O elefante está na sala

Marcos Sorrilha Pinheiro
6 min readDec 27, 2018

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Na década de 1990, quando a globalização se tornou um conceito midiático, para além dos muros das universidades, e jargões como “aldeia global” começaram a povoar o vocabulário dos âncoras de telejornais, a impressão que se tinha era a de que entrávamos definitivamente em um novo tempo na história da humanidade.

Naquele momento, muitos tentaram desqualificar o fenômeno, dizendo que a globalização era um processo mais antigo do que se poderia supor, retomando a eventos como as Grandes Navegações ou ao comércio feito entre Europa e China pela lendária Rota da Seda. Mas a verdade é que agora existia um componente tecnológico que tornava tudo muito diferente. As transmissões via satélite faziam crer que “o mundo era muito grande, pois a terra era pequena, do tamanho de uma antena parabólicamara”, como cantava Gilberto Gil. Além disso, a internet (a rede mundial de computadores, como se dizia à época) também dava seus primeiros passos para fora das universidades e possibilitava que as pessoas passassem a consumir conteúdos de maneira quase infinita sem sair de casa.

Um dos primeiros prognósticos feitos por “especialistas” era o de que a globalização traria um efeito nefasto, pois representaria o predomínio dos grandes centros sobre as periferias, cujo destino inevitável era o massacre das identidades locais. Um processo de aculturação global se avizinhava, portanto. Essas eram predições que vinham do campo da esquerda que temia que a globalização produzisse, por meio de seus mecanismos tecnológicos, um hipercapitalismo responsável por impor uma espécie de ciber-imperialismo.

Esta projeção estava em partes correta. Por um lado, ela errou completamente sobre a aculturação. Na realidade o movimento foi o inverso. Cada vez mais elementos das culturas periféricas inundaram os grandes centros, colocando em pauta, de maneira cabal, o tema da diversidade cultural. De forma definitiva, criou-se espaços para a contestação das identidades nacionais e a própria estrutura do Estado, como demonstrou o excelente livro de Manuel Castells, A Sociedade em Rede.

Por outro lado, o prognóstico acertou ao dizer que a globalização levaria o capitalismo a um novo patamar. Porém, ao contrário do que se podia imaginar, isso teve resultados comprovadamente benéficos. Em quase trinta anos, o capitalismo se expandiu de maneira tão pulverizada que conseguiu se sobrepor às muralhas da China e promover uma verdadeira revolução naquele país. A adoção de um capitalismo dirigido permitiu que, neste período, o índice de pobreza dos chineses saísse de 80% para 10% da população. Isso porque, como bem demonstrou a brilhante economista Deirdre McCloskey, nos últimos duzentos e cinquenta anos, pasmem: nada combateu mais a pobreza do que o capitalismo. Segundo ela, após a revolução industrial, o salto no crescimento econômico do mundo foi tão gigantesco que, quando se olha para o gráfico, ele se assemelha a um taco de hockey. Por conta disso, hoje, qualquer indivíduo das camadas médias de qualquer parte do mundo possui uma condição de vida muito melhor do que a de qualquer rei europeu do século XVII.

Deirdre McCloskey

Vocês repararam que "ninguém" mais fala sobre o trabalho escravo na China? Isso porque, hoje, um trabalhador chinês já ganha mais do que um trabalhador brasileiro. Vocês também repararam que quase "ninguém" mais fala do combate à pobreza no mundo, mas sim ao ataque à desigualdade? Ainda que os seguidores de Piketty apontem, com razão, para os efeitos da concentração de renda causada pelo capitalismo nesses últimos 30 anos, eles esquecem de contar que vivemos em um planeta que, pela primeira vez na história, vislumbra um horizonte real de erradicação da pobreza no mundo antes mesmo de chegarmos em 2050. Hoje, menos de 9% da população mundial vive em condição de pobreza extrema. Evidentemente, o número de pessoas é bastante elevado, mas a tendência, como eu disse, é que isso se reduza cada vez mais.

Tudo bem, certo?

Errado. Estranhamente é justamente esse quadro que ajuda a entender o mal-estar que se produziu na política ocidental nos últimos cinco anos e que, em partes, explicam os fenômenos da eleição do Trump, o Brexit, os Coletes Amarelos na França, entre outros eventos associados ao que se chama de “onda conservadora” que se alastra pelo mundo. Isso porque, como bem demonstrou o economista Branko Milanovic, em 2013, o crescimento visto nos anos de globalização, entre 1988 e 2008, não se deu de maneira uniforme. Na realidade, ele foi bom para os setores mais pobres do mundo, excelente para a classe média de países do Oriente e muito bom para as classes altas, como um todo.

Isso significa que todo mundo ficou feliz, certo?

Não. O que, de maneira categórica, o gráfico demonstra é que as classes médias do ocidente perderam muito com os anos da globalização. Isso provoca uma curva descendente no último terço do gráfico que faz com que ele se assemelhe a um elefante. Sim, e desculpem-me pelo trocadilho, mas o elefante está na sala e ele ajuda a explicar boa parte dos nossos problemas. É exatamente junto a esses setores onde o “conservadorismo” mais cresce. Onde o discurso contra a globalização ganha espaço e o nacionalismo possui maior capilaridade. Não à toa, o discurso do Trump prega a volta de um capitalismo pré-globalização e os teóricos da nova política externa no Brasil falam contra um globalismo (segundo eles, um tipo de globalização aparelhada por grupos de esquerda para promover sua própria pauta e atacar os valores ocidentais). Ironias a parte, enquanto a direita dos grandes centros pragueja, hoje é uma esquerda mais cosmopolita quem defende a globalização e é a China quem advoga, ao seu modo, em favor do “livre-mercado”.

Assim, conforme afirmam os discursos dessa direita conservadora, nas últimas décadas os estados teriam se vendido ao capitalismo financeiro a todo custo, esquecendo-se do bom e velho capitalismo industrial que permitiu ao EUA e à Europa se converterem nas maiores potências do mundo. Além disso, os governos teriam passado os últimos trinta anos defendendo mais as pautas de uma agenda global em detrimento dos interesses nacionais. Durante as semanas que abalaram a França, em novembro e dezembro deste ano, por exemplo, muitos conservadores brasileiros diziam que Macron deveria se importar menos com o Acordo de Paris e mais com Paris.

É incorreto dizer que isso se trata de um ressentimento branco de classe média que viu seu espaço invadido pela diversidade. Isso faz parte da análise, mas enquanto não tratarmos essas reivindicações como legítimas, não conseguiremos atacar o problema da maneira correta. Ou ainda, deixaremos que isso se torne um capital eleitoral cada vez mais potente para os grupos que, à sua maneira, colocam-se ao lado dessas pessoas. O problema é que a resposta que estes setores políticos apresentam parece anular o modelo de capitalismo global e coloca em xeque os ganhos produzidos pelo mesmo nas últimas décadas, inclusive nas temáticas da diversidade.

Pode ser que uma resposta a tudo isso esteja na condução do capitalismo a um novo degrau, com maior atenção às liberdades individuais e menos barreiras para que pessoas (para além de empresas) possam comercializar livremente pelo mundo, com menor intervenção estatal na economia, atacando, ao mesmo tempo, o protecionismo apregoado pelos conservadores, mas também o dirigismo da esquerda. Um tipo de capitalismo menos voltado às exclusividades de trocas, muitas vezes estipuladas pelos acordos multilaterais, e mais focada na facilidade de se promovê-las, segundo o interesses de seus indivíduos. Aqui, outra vez, as tecnologias teriam um papel fundamental, tanto para desatravancar a burocracia estatal, em um prisma econômico, quanto para produzir mais ferramentas que possibilitem a participação das pessoas na dinâmica democrática de seus países, no campo político. Autonomia e tecnologia poderiam ser as palavras dessa nova etapa.

Porém, ao que parece, a saída adotada passa longe desse caminho. Diante da grita dos setores médios tradicionais franceses, Macron ofereceu mais estado, com a ingerência direta na política dos salários locais. Um movimento esperto, mas pouco inteligente. Num futuro muito próximo, o estado francês pode ficar extremamente pesado. Neste momento, teremos outro elefante na sala e, dessa vez, com consequências ainda mais desastrosas para as democracias europeias.

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Marcos Sorrilha Pinheiro

Professor de História da América — Unesp/Franca. Escritor. Autor de Lino Galindo e os Herdeiros do Trono do Sol.