Olavo de Carvalho ou o "maior gramscista" do Brasil.

Marcos Sorrilha Pinheiro
6 min readDec 6, 2018

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A Nova Era. Para quem nunca ouviu, esse foi um nome bastante difundido entre os círculos católicos da década de 1990, principalmente aqueles ligados à Renovação Carismática, mas também entre os evangélicos “neopentecostais”. A premissa era a seguinte: existiria um plano global para retirar as pessoas do caminho de Deus e implementar uma Nova Era capaz de botar fim ao cristianismo. Para os mais versados, tratava-se da superação da Era de Peixes (símbolo cristão) e a entrada na Era de Aquário, marcada pela libertinagem e a negação das tradições vinculadas ao Evangelho.

A execução desse plano se daria por várias frentes, com destaque para a Indústria Cultural como um todo, produtos e produtores: filmes, artistas, diretores, desenhos animados, músicas, pinturas, bandas (principalmente as de Rock), entre outros. Assim, por meio de tais obras seriam transmitidas mensagens subliminares (ou explícitas) que influenciariam a todos nós, criaturas de Deus, para que deixássemos de acreditar na salvação e adorássemos a outro senhor que não fosse Cristo.

Esta ideia ganhava contornos ainda maiores quando saía da alça da influência cultural e entrava para a seara da autoridade política. Em um conluio multinacional, existia a expectativa de que empresas e nações imporiam, num futuro muito breve, o registro de pessoas com um código de barras no punho ou na testa. Somente com isso poderiam participar livremente do comércio, mas também, exigir seus direitos enquanto cidadãos. Essa era a temível marca da Besta e, quem assim o fizesse, perderia o direito à eternidade.

Por trás de tudo isso estava o arque vilão da humanidade: claro, Lúcifer. Seria ele o grande artífice do projeto apocalíptico que levaria a cristandade ao inferno, recorrendo ao seu poder sobrenatural capaz de manipular as mentes das pessoas e assinar pactos com os artistas, seus agentes do caos.

Evidentemente, trata-se de uma teoria da conspiração que, para que haja engajamento, você deve concordar com algumas premissas que não possuem uma validação científica, como o poder sobrenatural de entidades celestes e, até mesmo, suas próprias existências. Ou seja, o simples fato de não acreditar em Deus ou, o que é mais comum, no demônio, desmonta por completo a trama conspiracionista. Percebam, portanto, que existe um certo nicho ou campo de abrangência até onde a ideia pode atingir. Basicamente diz respeito aos cristãos.

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Por que contei tudo isso?

Vejam, a lógica por trás disso se assemelha à forma pela qual Olavo de Carvalho diz interpretar o mundo. Porém, no lugar do demônio, está o Comunismo e, para além dos artistas, aparecem os intelectuais, como aqueles responsáveis por elaborar as concepções norteadoras desse “plano sombrio”. No lugar da atuação paranormal do demônio, ele transfere aos mecanismos de transmissão de cultura a responsabilidade pela difusão planetária de tais mensagens. Por fim, no lugar do inferno, estaria um futuro não menos obscuro cujo o cenário é composto pela submissão dos indivíduos a uma elite global que se apropriaria de suas produções, gozando de uma vida de luxos e luxúrias.

Desta forma, segundo Carvalho, o sucesso dessa empreitada de dominação globalista depende essencialmente de que as pessoas sejam apartadas dos “verdadeiros” valores ocidentais (as tradições judaico-cristãs, o conservadorismo político e o nacionalismo), aderindo a um novo conjunto de regras e morais que se tornariam hegemônicos.

Atenção!

Essa palavra, hegemônico, é fundamental para entendermos como se daria a construção da “Nova Era” na versão 2.0 de Olavo de Carvalho. Na verdade, não se trata apenas de uma palavra, mas sim de um conceito elaborado pelo italiano Antonio Gramsci nas primeiras décadas do século XX. Resumidamente, segundo propunha Gramsci, o conceito de hegemonia retirava o socialismo do plano revolucionário e o trazia para o paradigma político/democrático. Para o italiano, a construção de uma sociedade organizada de maneira inspirada no comunismo, principalmente no Ocidente, não se daria mais pela revolução, e sim pela articulação do campo político, por meio da difusão de valores, tradições e ideias junto ao sistema nervoso das sociedades: a cultura.

Para tanto, os partidos, bem como os intelectuais, deveriam atuar como sujeitos articuladores dessa cultura, lançando mão dos aparatos próprios para a mobilização social: a mídia, a religião, a escola, as artes, entre outros. A medida em que tais ideias fossem ganhando maior abrangência e concordância entre os cidadãos, seria aberta a possibilidade de que líderes comunistas fossem eleitos pelo voto e, uma vez no comando do Estado, lançariam mão das ferramentas do poder para mobilizar a sociedade em torno de seus ideais, convertendo-os em uma hegemonia.

A ideia de Gramsci era muito original para época, o que fez dele persona non grata entre os comunistas da União Soviética. Até mesmo porque, a teoria de Gramsci não funciona apenas para o comunismo, mas para a construção de qualquer tipo de hegemonia, o que faz com que os mecanismos de transmissão de cultura estejam sempre em disputa pelos espectros políticos (esquerda ou direita) dentro do campo democrático, ainda que uma das partes possa não ter a plena consciência disso. A esta disputa, deu-se correntemente o nome de “guerra cultural”, expressão jamais proferida pelo próprio Gamsci.

Assim, ao conhecer o conceito de hegemonia gramsciano, Olavo de Carvalho passou a defender a ideia de que, com o ocaso da União Soviética, Gramsci se converteu no grande paradigma de atuação da esquerda global. Por meio de seus métodos (difusão dos valores e tradições marxistas e a contaminação da cultura cotidiana) foi possível aos intelectuais “gramscistas” o predomínio junto às principais instituições internacionais responsáveis por elaborar as pautas de desenvolvimento global, como: a ONU, IPCC, Banco Mundial, Ongs, entre outros. Existiria, portanto, um “gramscismo universal”(!) culpado por transformar as pautas da esquerda, nas pautas da própria humanidade.

Ainda que possa parecer um exagero de minha parte, não é nada equivocada esta comparação que faço entre a Nova Era cristã e a "Nova Era" olavista. Afinal, é o próprio autor quem diz que o pensamento de Gramsci tinha como grande característica a negação ao cristianismo e a tentativa de substituir os mártires e santos do catolicismo por nomes do comunismo europeu, como: Marx, Lênin, Rosa Luxemburgo, entre outros. Aliás, Gramsci é chamado de “Santo Antônio Gramsci” em um dos livros escritos pelo filósofo das redes sociais.

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Diante de tudo isso, torna-se inevitável a seguinte constatação: a “teoria” de Olavo de Carvalho apenas funciona, pois ele se apropria dos paradigmas gramscianos de política. Ironicamente, é a noção de hegemonia em Gramsci que "torna possível" a existência de uma "Nova Era" enquanto um “plano global” aos moldes propostos por Olavo. Ao mesmo tempo é ela que dá à sua teoria da conspiração um caráter supostamente “científico”, capaz de retirá-la do nicho cristão e se tornar palatável a amplos setores da sociedade. E ainda mais, ajuda a "desvelar" as tramas do "conluio global" por meio de uma lógica aparentemente "acadêmica", fazendo com que aqueles que aderem a essa teoria se sintam mais inteligentes que seus interlocutores, ao invés de conspiracionistas, como de fato são. Isto, neste momento de descrédito da democracia e seus representantes, bem como de contestação às principais instituições de validação do saber, resulta em uma fórmula muito eficiente para a propagação de desinformação.

Porém isso não é tudo, o empréstimo que Olavo faz de Gramsci, também nos permite compreender as estratégias de sua própria atuação, uma vez que ele assume um papel análogo a de um intelectual orgânico (mesmo sem pertencer a um partido ou não estar articulado à uma classe ou corporação), uma vez que se posta como organizador da cultura, não apenas com seus livros e vídeos, mas por meio de seus cursos de filosofia online, vendidos em seu site.

Neste ponto, é possível afirmar que Olavo de Carvalho não somente entendeu a lógica do pensamento de Gramsci, usando-a como base central de suas teorias apocalípticas, como a coloca em prática fazendo aquilo que equivocadamente foi chamado de “contra-hegemonia”. Ou seja, combate a suposta predominância do pensamento de esquerda, recorrendo à construção e apropriação dos canais de difusão de cultura.

Isso ficou muito evidente no vídeo de ataque ao Escola sem Partido que ele recentemente postou no YouTube. Na oportunidade, ele disse que o erro do projeto está em tentar interditar autoritariamente, de cima para baixo, o adversário político. Oras, Olavo sabe que a “guerra cultural” (e ele usa esse termo) se dá no campo da disputa pelos mecanismos hegemônicos e não pela interdição de seu adversário, pois, de maneira autocrática, não existe hegemonia. E o que ele quer é sim transformar as ideias que ele professa em algo hegemônico, afinal, de todos intelectuais brasileiros da atualidade, ironicamente, não existe nenhum mais “gramscista” do que ele.

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Marcos Sorrilha Pinheiro

Professor de História da América — Unesp/Franca. Escritor. Autor de Lino Galindo e os Herdeiros do Trono do Sol.