Biopolítica na época do coronavírus

Marcos Beccari
9 min readApr 4, 2020

Por Daniele Lorenzini . Tradução de Marcos Beccari . Texto original AQUI (April 2, 2020)

Em um post recente de seu blog, Joshua Clover nota aguçadamente o rápido surgimento de uma nova prédica de “filosofias da quarentena”. Não surpreende que uma delas se concentre na noção de biopolítica de Michel Foucault, questionando se tal noção ainda seria apropriada para descrever a situação que estamos vivendo atualmente. Também não surpreende que, em praticamente todas as contribuições que associam tal conceito à atual pandemia de coronavírus, um mesmo conjunto de ideias bastante vagas seja mencionado várias vezes, enquanto outros insights foucaultianos — sem dúvida mais interessantes — tendem a ser ignorados. A seguir, discuto dois desses insights e concluo com algumas observações metodológicas sobre a questão do que pode significar “responder” à atual “crise”.

A “chantagem” da biopolítica

O primeiro ponto que eu gostaria de destacar é que a noção de biopolítica, conforme Foucault a desenvolveu em 1976, [1] não teve como objetivo nos mostrar o quão maléfica é essa forma “moderna” de poder. Obviamente, também não era para elogiá-la. Parece-me que, ao cunhar a noção de biopolítica, Foucault quer antes de tudo nos conscientizar da passagem histórica de uma abertura ou, mais precisamente, do que ele chama de “seuil de modernité biologique” (“limiar de modernidade biológica”). [2] Nossa sociedade ultrapassou esse limiar quando os processos biológicos que caracterizam a vida dos seres humanos como espécie se tornaram uma questão crucial para a tomada de decisões políticas, um novo “problema” a ser tratado pelos governos — e isso não apenas em circunstâncias “excepcionais” (como a de uma epidemia), mas também em circunstâncias “normais”. [3] É uma preocupação permanente que define o que Foucault também chama de “étatisation du biologique” (a “estatização do biológico”). [4] Para permanecer fiel à ideia de Foucault segundo a qual o poder não é bom ou ruim em si mesmo, mas que é sempre perigoso (se aceito cegamente, ou seja, sem nunca questioná-lo), pode-se dizer que essa “mudança de paradigma” pela qual somos governados, com resultados tanto positivos quanto horríveis, corresponde certamente a uma ampliação perigosa do domínio de intervenção dos mecanismos de poder. Não somos mais governados apenas, tampouco principalmente, como sujeitos políticos da lei, mas também como seres vivos que, coletivamente, formam uma massa global — uma “população” — com uma taxa de natalidade, uma taxa de mortalidade, uma taxa de morbidade, uma taxa de natalidade, uma expectativa média de vida etc.

Em “O que é Iluminismo?”, Foucault afirma que quer recusar a “chantagem do iluminismo” — ou seja, a ideia de que devemos ser “a favor” ou “contra” o iluminismo — e abordá-lo como um evento histórico que ainda caracteriza, pelo menos até certo ponto, o que somos hoje. [5] Gostaria de sugerir, de maneira análoga, que recusemos a “chantagem” da biopolítica: nós não precisamos ser “a favor” ou “contra” a biopolítica (o que isso significaria?), mas devemos tratá-la como um evento histórico que ainda define, pelo menos em parte, a maneira como somos governados, a maneira como pensamos sobre política e sobre nós mesmos. Quando, nos jornais ou nas mídias sociais, vejo pessoas reclamando de outras pessoas que não respeitam as regras de quarentena, sempre penso em como é surpreendente para mim que, pelo contrário, são poucos os que, na maioria dos lugares e mesmo quando há risco de sanções, estão de fato em quarentena. Também notei a recorrência de citações de Vigiar e punir, em particular do início do capítulo “Panopticismo” [6], que naturalmente ecoa perfeitamente em nossa experiência atual da quarentena, pois descreve a disciplinarização de uma cidade e seus habitantes durante uma epidemia. No entanto, se insistirmos em medidas coercitivas, em permanecer confinados, controlados e “presos” em casa durante esses momentos extraordinários, arriscamos ignorar o fato de que o poder disciplinar e biopolítico funciona principalmente de maneira automática, invisível e perfeitamente comum — e que ele é mais perigoso precisamente quando não o percebemos.

Em vez de me preocupar com o aumento dos mecanismos de vigilância e com o controle indiscriminado sob um novo “estado de exceção”, eu tendo a me preocupar, antes, com o fato de já sermos sujeitos biopolíticos dóceis e obedientes. O poder biopolítico não é (apenas) exercido em nossas vidas a partir de “fora”, como outrora o era, mas faz parte do que somos, de nossa forma histórica de subjetividade desde, pelo menos, os últimos dois séculos. É por isso que eu discordo de que qualquer estratégia eficaz de resistência a seus aspectos mais perigosos devesse assumir a forma de uma recusa global, seguindo a lógica da “chantagem” da biopolítica. As observações de Foucault sobre uma “ontologia crítica de nós mesmos” [7] podem vir a ser surpreendentemente úteis aqui, uma vez que é o próprio tecido de nosso ser que deveríamos estar prontos para questionar.

A (bio)política da vulnerabilidade desigual

O segundo ponto que eu gostaria de discutir — um ponto crucial, mas que eu raramente vejo sendo considerado nas contribuições que retomam a noção de biopolítica para lidar com a atual pandemia de coronavírus — é o elo inextricável que Foucault estabelece entre biopoder e racismo. Em artigo recente, Judith Butler constata com razão que “a rapidez com que a desigualdade radical, o nacionalismo radical e a exploração capitalista radical encontram maneiras de se reproduzir e se fortalecer dentro das zonas de pandemia”. Isso é um lembrete necessário em um momento em que outros pensadores, como Jean-Luc Nancy, argumentam que, pelo contrário, o coronavírus “nos coloca em uma base de igualdade, nos unindo na necessidade de tomar uma posição comum”. É claro que a igualdade a que Nancy se refere é apenas aquela entre os ricos e os privilegiados — aqueles que têm a sorte de ter uma casa ou um apartamento para passar a quarentena, e que não precisam trabalhar ou podem trabalhar em casa, como Bruno Latour já observou. E quanto àqueles que ainda são forçados a ir trabalhar todos os dias porque não podem trabalhar em casa nem se dar ao luxo de perder o salário? Ou aqueles que não têm sequer um teto sobre a cabeça?

Na última aula de Em defesa da sociedade, Foucault argumenta que o racismo é “uma maneira de introduzir uma ruptura no domínio da vida tomado pelo poder: a ruptura entre o que deve viver e o que deve morrer”. [8] Em outras palavras, com a emergência da biopolítica, o racismo se torna uma maneira de fragmentar o continuum biológico — todos nós somos seres vivos com mais ou menos as mesmas necessidades biológicas — a fim de criar hierarquias entre diferentes grupos humanos e, portanto, desigualdades (radicais) na maneira pela qual alguns estão expostos ao risco de morte. A exposição desigual dos seres humanos aos riscos de saúde e sociais é, segundo Foucault, uma característica marcante da governamentalidade biopolítica. O racismo, em todas as suas formas, é a “condição de aceitabilidade” de uma exposição tão desigual de vidas numa sociedade onde o poder é exercido principalmente para proteger a vida biológica da população e aumentar sua capacidade produtiva. [9] Devemos, portanto, ter muita cautela e evitar reduzir a biopolítica à famosa fórmula foucaultiana de “permitir viver e deixar morrer”. [10] A biopolítica não consiste em uma clara oposição da vida e da morte, mas é melhor entendida como um esforço para organizar diferencialmente aquela área ainda indiferenciada entre eles. O atual governo de migração é um excelente exemplo disso, como mostra Martina Tazzioli de maneira convincente ao falar da “biopolítica através da mobilidade”. [11] De fato, somos constantemente, e às vezes dolorosamente, lembrados nos dias de hoje que a biopolítica é também, e crucialmente, uma questão de governar a mobilidade — e a imobilidade. Talvez essa experiência, que é nova para a maioria de nós, nos ajude a perceber que o modo ordinário pelo qual as “fronteiras” são mais ou menos porosas para pessoas de diferentes cores, nacionalidades e parcelas sociais merece ser considerado como uma das principais formas de como o poder é exercido em nosso mundo contemporâneo.

Em suma, a biopolítica é sempre uma política de vulnerabilidade desigual. Longe de ser uma política que apaga as desigualdades sociais e raciais ao nos lembrar de nosso pertencimento comum a uma mesma espécie biológica, é uma política que depende estruturalmente do estabelecimento de hierarquias no valor da vida, produzindo e multiplicando a vulnerabilidade como meio de governar pessoas. Nós poderíamos pensar nisso na próxima vez em que aplaudimos coletivamente os “heróis médicos” e os “profissionais de saúde” que estão “combatendo o coronavírus”. Eles merecem tal reconhecimento, com certeza. Mas eles são realmente os únicos que estão “cuidando” de nós? E quanto às pessoas que prestam serviços delivery que garantem que eu receba o que comprei enquanto permaneço em segurança no meu apartamento em quarentena? E quanto aos caixas dos supermercados e farmácias, os motoristas de transporte público, os trabalhadores das fábricas, os policiais e todas as outras pessoas (principalmente as de baixa renda) que trabalham em setores considerados essenciais para o funcionamento da sociedade? Elas também não merecem — e não exclusivamente nessas circunstâncias “excepcionais” — ser consideradas “profissionais de saúde”? O vírus não nos coloca em uma base de igualdade. Pelo contrário, revela descaradamente que nossa sociedade depende estruturalmente da produção incessante de vulnerabilidade desigual e de desigualdades sociais.

A gramática política da crise

O trabalho de Foucault sobre biopolítica é hoje mais complexo, rico e convincente do que aquilo que parece estar sob a caneta daqueles que o reduzem muito rapidamente a uma série de anátemas contra confinamento disciplinar e a vigilância em massa, ou que o utilizam erroneamente para falar sobre o estado de exceção e a vida nua. [12] Não quero sugerir, no entanto, que a noção de biopolítica deva ser tomada como um princípio último de explicação capaz de nos dizer o que está acontecendo e qual é a “solução” para todos os nossos problemas — e isso não apenas por causa da “natureza historicamente diferenciada dos fenômenos biopolíticos”, enfatizado corretamente por Roberto Esposito, mas também por uma razão metodológica mais profunda. Nosso pensamento político é prisioneiro da “gramática da crise” e de sua temporalidade restrita na medida em que respostas críticas à situação atual (ou, vale dizer, a praticamente todas as recentes “crises” econômicas, sociais e humanitárias) não parecem capazes de olhar além do futuro mais imediato. [13] Assim, se eu concordo com Latour que a atual “crise da saúde” deveria “nos instigar a nos preparar para a mudança climática”, sou muito menos otimista do que ele: isso não acontecerá a menos que substituamos a narrativa da crise por um esforço crítico e criativo de longo prazo para encontrar respostas múltiplas e amplas às causas estruturais de nossas “crises”. Elaborar respostas em vez de procurar soluções significa evitar estratégias de solução de problemas de curto prazo, estratégias estas que tentam mudar o mínimo possível de nossa maneira atual de viver, produzir, viajar, comer etc. Em vez disso, elaborar respostas significa explorar alternativas sociais e caminhos políticos na esperança de que esses experimentos durem mais do que o tempo entre a atual “crise” e a próxima, embora reconhecendo que essas transformações são necessariamente lentas, uma vez que não podemos simplesmente nos livrar de nossa forma histórica de ser em um piscar de olhos. Em uma palavra, significa ter fé em nossa capacidade de construir um futuro, não apenas para nós mesmos, mas para inúmeras gerações ainda por vir. E realmente começarmos a fazê-lo.

Sobre o autor: Daniele Lorenzini é professor assistente de Filosofia na Universidade de Warwick, onde também é diretor adjunto do Centre for Research in Post-Kantian European Philosophy. Coeditor da Foucault Studies, seus livros mais recentes incluem La force du vrai: De Foucault à Austin (2017) e Éthique et politique de soi: Foucault, Hadot, Cavell et les techniques de l’ordinaire (2015).

Notas:

[1] Ver: Michel Foucault, The History of Sexuality, Volume 1: An Introduction (New York: Pantheon Books, 1978), p. 135–145; Michel Foucault, “Society Must Be Defended”: Lectures at the Collège de France, 1975–1976 (New York: Picador, 2003), p. 239–263.

[2] Foucault, The History of Sexuality, Volume 1, p. 143 (tradução modificada).

[3] Foucault, “Society Must Be Defended”, p. 244.

[4] Ibid., p. 240 (tradução modificada).

[5] Michel Foucault, “What is Enlightenment?”, in Paul Rabinow (ed.) The Foucault Reader (Nova York: Pantheon Books, 1984), p. 42–43.

[6] Ver, por exemplo, este dossiê sobre “Coronavírus e filósofos”. Para ler a análise de Foucault na íntegra, ver: Michel Foucault, Discipline and Punish: The Birth of the Prison (New York: Vintage Books, 1977), p. 195–200.

[7] Foucault, “What is Enlightenment?”, p. 47.

[8] Foucault, “Society Must Be Defended”, p. 254 (tradução modificada).

[9] Ibid., p. 255–256 (tradução modificada).

[10] Foucault, The History of Sexuality, Volume 1, p. 138–141; Foucault, “Society Must Be Defended”, p. 241–243.

[11] Martina Tazzioli, The Making of Migration: Biopolitics of Mobility at Europe’s Borders (London: Sage, 2019), p. 106. Embora isso tenha passado praticamente despercebido, no primeiro volume de sua História da sexualidade, Foucault menciona as migrações como uma das as principais áreas nas quais os mecanismos biopolíticos do poder funcionam. Ver: Foucault, The History of Sexuality, Volume 1, p. 140.

[12] Ver, por exemplo, os textos de Giorgio Agamben sobre coronavírus, bem como a resposta crítica de Gordon Hull.

[13] Ver: Daniele Lorenzini e Martina Tazzioli, “Critique without Ontology: Genealogy, Collective Subjects, and the Deadlocks of Evidence”, Radical Philosophy, no prelo.

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