O vírus que somos IV: Confinamento

Marcos Beccari
9 min readApr 12, 2020

Este texto é a parte IV da série O vírus que somos, composta de 5 partes.

Outras partes: I. Perdido en el siglo | II. Enquadramento | III. Estranhamento | V. Desaparecimento | Poslúdio I

IV. Confinamento

Quando a prevenção se confunde com prostituição

D e um lado, nunca tivemos à disposição tanta tecnologia para viver em segurança: radares, câmeras, cartões de crédito, dispositivos móveis etc. De outro, nunca sentimos tanto medo: da pandemia, do desemprego, da criminalidade, da catástrofe ambiental, do colapso econômico etc. No meio de tantas comodidades e ameaças, somos impelidos a conduzir nossas vidas de acordo com a normalidade, isto é, evitando o perigo de ficarmos à margem das normas. O biopoder se exerce precisamente nesse policiamento normativo, seja de uns sobre os outros seja pelo autoexame de si, sustentando assim os dispositivos de prevenção/repressão que sempre se valem do discurso do combate ao risco [1]. Em tempos, ademais, de disseminação virulenta da xenofobia e dos genocídios contra imigrantes, transexuais, negros etc., não é difícil perceber a insidiosa ambiguidade das medidas de segurança que não cessam de derramar sangue.

É com vistas a tal sorte de ambivalência que devemos pensar neste imperativo que se espalha aos quatro ventos: “fique em casa”. Por mais que se trate claramente de um toque de recolher, de certo modo já não há lado “de dentro”, uma vez que a guerra contra o vírus atravessa paredes (ou, mais precisamente, telas) e nos convoca ao posto de informantes em alerta, com o dever de evitar o caos por meio da manutenção da ordem. Ao mesmo tempo, o lado “de fora” segue em franca e caótica expansão, lá onde as exceções sobrepujam toda regra no horizonte daqueles para quem ficar em casa não é sequer uma opção. O que hoje se evidencia, embora se insista em não querer vê-lo, é que o lado de dentro sempre dependeu do lado de fora: o confinamento não seria possível se a maioria dos trabalhadores não continuassem a sair de casa. É preciso que alguém esteja lá fora para que exista o home office.

Outra coisa também se evidencia: trabalhar em casa não nos torna menos peões. Pois há uma imobilidade intrínseca a todo trabalho, mesmo no caso de quem passa a vida se deslocando para limpar as ruas ou a casa dos outros, tanto quanto no caso de diplomatas e dos “empreendedores de si”.

Em Vigiar e punir, Foucault explica como a tecnologia disciplinar, vinculada aos saberes médico, militar e criminalístico, segue o modelo dos conventos como configuração ideal de sua aplicação: “É preciso anular os efeitos das repartições indecisas, o desaparecimento descontrolado dos indivíduos, sua circulação difusa, sua coagulação inutilizável e perigosa; tática de antideserção, de antivadiagem, de antiaglomeração” [2]. Por isso a imobilidade não é exclusiva da quarentena: o trabalho moderno já implica a repartição dos corpos e sua circulação controlada. E no primeiro volume de História da Sexualidade, Foucault mostra como, desde o século XVIII, “todos os detentores de uma parcela de autoridade se colocam num estado de alerta perpétuo: reafirmado sem trégua pelas disposições, pelas precauções tomadas, e pelo jogo das punições e responsabilidades” [3]. De sorte que a ascese do “sacrifício coletivo” não se restringe à conjuntura pandêmica, embora esta forneça um espelho simétrico à tecnologia disciplinar — e nisso Foucault chega a parecer premonitório:

Atrás dos dispositivos disciplinares se lê o terror dos “contágios”, da peste, das revoltas, dos crimes, da vagabundagem, das deserções, das pessoas que aparecem e desaparecem, vivem e morrem na desordem. […] No fundo dos esquemas disciplinares, a imagem da peste vale por todas as confusões e desordens; assim como a imagem da lepra, do contato a ser cortado, está no fundo do esquema de exclusão. […] A divisão constante do normal e do anormal, a que todo indivíduo é submetido, leva até nós, e aplicando-os a objetos totalmente diversos, a marcação binária e o exílio dos leprosos; a existência de todo um conjunto de técnicas e de instituições que assumem como tarefa medir, controlar e corrigir os anormais, faz funcionar os dispositivos disciplinares que o medo da peste chamava.— Michel Foucault [4]

Claro que, contudo, não há premonição alguma; Foucault não chegou nem perto de imaginar nossa atual amálgama de escravidão e “autoempreedimento”, abate coletivo e coworking — a ponto de o empresariado brasileiro admitir, sem nenhum pudor, que as “baixas” serão um efeito colateral do bom funcionamento necessário da economia [5]. O engenho, afinal, não pode parar. O importante é “lavar as mãos”, ainda mais quando pelo menos um terço da população segue aplaudindo os seus próprios algozes, da Casa Grande à Senzala. E enquanto muitos intelectuais continuam sonhando com a derradeira revolução (sempre do “dia seguinte”), vemos nascer uma forma mais perigosa, senão do vírus, da biopolítica neoliberal, aperfeiçoando-se na “imunização” das populações.

Não se pode perder de vista que o lockdown sinaliza, de fato, uma circunstância em que a vida de todos está em risco. O que costuma suceder a esse tipo de situação é outra pior, ainda que escamoteada sob a velha máscara do bem-estar social. Como bem lembrou Franco Bifo Berardi, a tecnologia da Internet propagou-se no exato momento em que a AIDS começava a ser contida, de modo que a pandemia atual poderia desencadear “uma condição de isolamento permanente dos indivíduos, e a nova geração poderia internalizar o terror do corpo dos outros”. Analogamente, Christine Greiner sustenta que o desempenho “exemplar” do Japão no combate ao Covid-19 vai muito além do estereótipo de um povo que cultiva a higiene e a disciplina. Ela argumenta que a experiência da clausura é historicamente arraigada na vida japonesa, o que remonta desde as bonecas sexuais consumidas abertamente desde o século XVII até a recente aproximação entre budismo e robótica — donde a autora vislumbra um “devir otaku” a emergir com a pandemia, numa espécie de misoginia zen.

Paul B. Preciado mostra-nos como esse tipo de imagem já transpôs a esfera da distopia. O filósofo retoma sua tese de doutorado acerca da mansão Playboy [6] para argumentar que a cama giratória de Hugh Hefner, fundador e editor-chefe da corporação erótica, foi uma espécie de protótipo para o sujeito confinado e ultra-conectado que hoje ganha corpo no que Preciado denomina “regime farmacopornográfico”. Hefner, afinal, dirigiu por quatro décadas a revista mais importante dos Estados Unidos sem sequer sair da cama, vestindo pijama e com a companhia das Playmates que habitavam a mansão. Sua cama era ao mesmo tempo o seu escritório, um lugar para fazer sexo e um palco para ensaios fotográficos e programas televisivos. Só não era usada para dormir, uma vez que Hefner vivia à base de anfetaminas que eliminam a fadiga e o sono. De fato, sua vida era literalmente farmacopornográfica: seu hedonismo extremo era indissociável do trabalho full time, conjunção alimentada por um coquetel diário de pílulas contraceptivas e medicamentos para manter o nível de produção elevado.

A silenciosa revolução biopolítica que a Playboy conduziu significou, além da transformação da pornografia heterossexual em cultura de massa, o questionamento da divisão que tinha fundado a sociedade industrial do século XIX: a separação das esferas de produção e reprodução, a diferença entre fábrica e casa e com ela a distinção patriarcal entre masculinidade e feminilidade. A Playboy abordou essa diferença propondo a criação de um novo enclave de vida: o apartamento do solteiro totalmente ligado às novas tecnologias de comunicação das quais o novo produtor semiótico não precisa sair nem para trabalhar nem para fazer sexo — atividades que, além do mais, tinham se tornado indistinguíveis. […] A Playboy antecipou os discursos contemporâneos sobre home office e a produção imaterial que a gestão da crise do Covid-19 transformou em dever do cidadão. Hefner chamou a este novo produtor social de “trabalhador horizontal”. O vetor de inovação social que a Playboy colocou em marcha foi a erosão (senão a destruição) da distância entre o trabalho e o lazer, entre a produção e o sexo. A vida do playboy, constantemente filmada e transmitida através da revista e da mídia televisiva, era totalmente pública, mesmo que o playboy não deixasse sua casa ou mesmo sua cama.

Paul B. Preciado [7]

Se hoje, em meio à quarentena, é fácil reconhecer-se nesse “trabalho horizontal” preconizado por Hefner, obviamente não é com base num estilo de vida hedonista, mas de modo a alimentar outra modalidade de pornografia, talvez sadomasoquista, que agora conta com um aparato tecnológico bem mais avançado do que aquela cama giratória. Nossos governantes e chefes nos convocaram não somente ao confinamento, mas também a um novo ritual de trabalho. Eis a chave da “imunidade”: isolamento social e aumento da produtividade. Uma vez imunes às interações e idiossincrasias coletivas, sobra-nos mais tempo para vender não apenas a nossa força de trabalho, mas também os nossos corpos, que devem ser efusivamente expostos em teleconferências. Precisamos ver os rostos e ouvir as vozes daqueles que gozam de nossos esforços.

É isso o que sustenta, ao menos na atmosfera acadêmica em que eu me situo, a defesa do EaD (ensino à distância) enquanto horizonte necessário e indiscutível. Note-se como, em primeiro lugar, há sempre a premissa de que quem tem mais experiência com EaD tem mais “propriedade” para falar a respeito — como se o professorado em geral não pudesse mais falar sobre educação, ou como se o EaD fosse outra coisa, que não educação. Em segundo lugar, há certo consenso em tratar o EaD como uma ferramenta que não deve substituir, ao menos por enquanto, o ensino presencial. Mas para que serve essa ferramenta? De imediato, e sobretudo, para acentuar as disparidades do alunado, posto que seu acesso sempre foi desigual, inclusive, para as aulas presenciais. Também serve para, mais do que complementar atividades de sala de aula, deslocá-las para outros espaços físicos e temporais que não o da sala de aula. Por conseguinte, o EaD é orientado ao engajamento individual e ao autodidatismo. Ora, e quanto aos estudantes que não têm esse perfil? Nesse caso a ferramenta não serve muito — o que, no limite, equivale a dizer que esse perfil de estudante é que “não serve muito”.

Eis o que, em tempos de Covid-19, vem a se tornar rapidamente o parâmetro, o diapasão, das políticas educacionais. Exatamente como na pornografia do “trabalho horizontal”, o estudante vê-se obrigado a se entregar de corpo e alma aos estudos. Se até ontem a maior parte do alunado não possuía esse perfil, agora, com a adoção do EaD enquanto mera ferramenta emergencial e provisória para não interromper os estudos, tal perfil torna-se uma questão peremptória para se pertencer ou não ao alunado. Sem falar, evidentemente, de como o EaD sempre foi, no fundo, uma excelente ferramenta para multiplicar o lucro das IES privadas — o que, nas públicas, em suas condições há muito precarizadas, reduz-se a um modo cogente de manter-se no mesmo patamar competitivo das privadas.

Sobreviver como estudante ou como trabalhador é, em suma, como tentar sobreviver ao vírus: imunizando-nos para que, mesmo à distância, nossos corpos possam continuar sendo vorazmente consumidos numa grande cama giratória.

Leia as outras partes de O vírus que somos:

I. Perdido en el siglo: A ameaça do que não conseguimos deixar de ser.

II. Enquadramento: A sombra do sol e a normalidade da anomalia.

III. Estranhamento: A imunidade de uns pela vulnerabilidade dos outros.

V. Desaparecendo: Uma eugenia à nossa imagem e semelhança.

Poslúdio I: Um golpe brando e a ficha que não cai.

Notas

[1] Não surpreende, aliás, que os países que saíram à dianteira no combate ao Covid-19 (Coreia do Sul, Taiwan, Singapura, Hong Kong, Japão e Israel) já estavam à frente no combate ao terrorismo e à prostituição por meio de um avançado aparato de monitoramento populacional e de gestão de dados.

[2] Foucault, Michel. Vigiar e punir: o nascimento das prisões. Petrópolis: Vozes, 1999, p. 138. Ver também: Foucault, Michel. Microfísica do poder. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2018, p. 371.

[3] Foucault, Michel. História da Sexualidade I: A vontade de saber. Rio de Janeiro/São Paulo: Paz e Terra, 2014, p. 30.

[4] Foucault, Michel. Vigiar e punir, op. cit., p. 164.

[5] Refiro-me nomeadamente aos empresários Alexandre Guerra (restaurante Giraffas), Luciano Hang (lojas Havan), Roberto Justus (multi-investidor) e Junior Durski (restaurante Madero).

[6] Tese defendida em 2010 no programa de Teoria da Arquitetura da Universidade de Princeton, com o título Pornotopía: Architecture and Sexuality in Playboy During the Cold War.

[7] Este e os demais trechos em língua estrangeira foram aqui traduzidos livremente por mim.

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