Referências da 2ª temporada de “O Rei da TV”: Tudo foi verdade?

Novos episódios da série sobre Silvio Santos foram lançados em 29 de março no Star+, com foco na era mais polêmica da televisão

Marcos de la Cruz
9 min readApr 3, 2023

A série O Rei da TV, da Star+, é uma biografia não-oficial e que inclusive foi criticada pela família de Silvio Santos, que relata histórias da vida do comunicador, do SBT e da televisão brasileira, misturados com “liberdades poéticas” que incrementaram a trama.

Além disso, alguns momentos históricos da TV foram alterados de forma que a história fosse mais fluida, deixando despercebido para as novas gerações, como jovens de 20–30 anos que nasceram nos anos 90.

A segunda temporada traça dois paralelos: A falência do Banco Panamericano, em 2010; e a história de Silvio Santos e do SBT no fim dos anos 80 e começo dos anos 90, que terão seus momentos analisados a seguir.

Teve debate presidencial no Show de Calouros?

Foto: Star+

Não.

O primeiro episódio da segunda temporada mostra um “Show de Calouros” com os principais candidatos a presidência da República em 1989: Lula, Paulo Maluf, Leonel Brizola e Fernando Collor, que venceu a eleição.

O que aconteceu de verdade foi uma série de entrevistas com os candidatos. Inclusive, Sérgio Mallandro realmente perguntou ao então deputado Lula se ele gosta de pinga com cambuci.

SBT cortou debate pra passar filme porque o Silvio foi barrado?

Um tipo de filme que o SBT com certeza passaria na programação.

Não.

É de conhecimento geral que Silvio Santos foi candidato a presidente em 1989 e que foi barrado pelo Tribunal Superior Eleitoral, alegando que o partido (o antigo PMB) era ilegal. A história foi retratada nos dois primeiros episódios.

Por conta disso, o apresentador não pôde ir ao debate gerado pela Band, que seria transmitido pelas principais emissoras, principalmente pelo SBT, mas que este cortou a transmissão pra passar um filme trash. Mas isso não aconteceu de verdade, pois o debate em questão passaria apenas na Band. O debate do segundo turno, entre Lula e Collor, realmente foi nesse esquema de pool, bastante utilizado nos EUA.

Silvio traiu sua esposa com uma atriz mexicana?

Não.

Nunca existiu a atriz Michelly Vega, também não existiu uma novela chamada “Cega de Paixão” e nem a esposa de Silvio escrevia novelas nesta época.

Essa história é baseada em um boato de que Silvio teria um caso com a cantora Sula Miranda. A crise do relacionamento entre Silvio e Íris realmente existiu durante os anos 90, com direito ao apresentador saindo de casa. Na série, Silvio chegou a morar no camarim do SBT, mas não há evidências se isso é verdade.

O diretor Karam e o Silvio Santos Night Show existiram?

Não e não.

O terceiro episódio introduz um personagem fictício chamado Karam, que era publicitário do fictício “Magazine Piauí” e que considerava o SBT ultrapassado. Silvio o contratou para que ele fizesse mudanças na programação e ter um canal mais “refinado”, o que seria melhor para os anunciantes.

Uma das propostas foi a mudança do principal produto do SBT, que era o Silvio Santos Night Show, um programa de entrevistas, sem plateia e com os jurados do Show de Calouros mais comportados.

O programa mais refinado não deu certo na audiência, perdendo pela primeira vez em 27 anos para a estreia do Domingão do Faustão, da Globo, que era um programa “do povão”. Por conta disso, Silvio demitiu Karam e seu programa voltou ao que era antes.

O Silvio Santos Night Show nunca existiu de verdade e Silvio nunca teve um programa sem plateia aos domingos.

Silvio mudava a programação do SBT no ar e “do nada”?

Inúmeras vezes.

O SBT sabia muito bem que concorrer diretamente com a novela da Globo era caso perdido.

Então, o Silvio adotava várias estratégias para esperar a novela terminar e colocar seus produtos de maior audiência, como exibir desenhos como o Pica-Pau.

O SBT inseria o desenho e ainda explicava em um slide que vai passar o filme assim que a novela da Globo acabar. Aí o Pica-Pau era picado na cara dura e a seguinte mensagem era exibida: “essa atração continua amanhã”.

E não para por aí, o SBT queria de todo jeito passar o então inédito O Exterminador do Futuro, só que a Globo contra-atacou e esticou a novela, fazendo que a emissora de Silvio exibisse esse slide na tela por 50 minutos:

Ao contrário do que aconteceu na série, o próprio Silvio Santos nunca apareceu de corpo presente e fez nenhum discurso sobre mudança de programação. Mas ele estava sempre de olho.

A guerra entre Faustão e Gugu

Vamos começar pelas datas: na série, o Domingão do Faustão estreou em 1990. Na verdade, o programa começou em março de 1989, antes das eleições, mas a mudança foi necessária para se separar do arco da candidatura de Silvio Santos.

A abertura do programa, com o apresentador fazendo piadas no meio da plateia foi bem fiel ao que o Faustão disse em sua estreia, no vídeo abaixo:

A abertura também é diferente do original, claro, pra evitar problemas com direitos autorais, mas o logo no final é bem parecido com a vinheta feita pela Globo em 1989. A vinheta da série foi inspirada na abertura de 1992, com um Faustozilla pelo Brasil. Abaixo, a comparação com as vinhetas.

Com o Domingo Legal, a série “antecipou” a sua estreia para 1991. Na verdade, aconteceu em 17 de janeiro de 1993. Além disso, o Gugu não brigava diretamente com o Faustão na audiência já nesta época, como é retratado no episódio 6. O confronto direto começou em 1997.

A série mostra uma guerra pela audiência logo na estreia, que teve a famigerada dança do ator Jean-Claude Van Damme com a Gretchen, inclusive com o Gugu agachado verificando se Van Damme tava excitado com a Rainha do Bumbum.

Isso realmente aconteceu, mas 10 anos depois, em 2001. O Domingo Legal venceu a Globo por 41 x 12, uma margem muito maior do que aconteceu na série, quando o programa empatou com o Faustão.

A cena na série. Abaixo, na vida real.

Ao mesmo tempo, o Domingão do Faustão apelou para o lado emocional e exibiu o quadro Arquivo Confidencial com a Angélica. Isso realmente aconteceu, mas em 1997.

A cena da série. Abaixo, o vídeo do fato real.

O auge da baixaria

Ainda no episódio, são mostradas três situações que marcaram a história da TV pela apelação na guerra pela audiência travada entre Gugu e Faustão, mas foram exibidas em ordens diferentes do original. Primeiro, um “sushi erótico” no Faustão, que realmente existiu, em 1997.

Faustão apresentando o sushi erótico. O “resto” da cena não pode ser exibido aqui (risos), tanto é que o vídeo original do YouTube tá restrito.

E depois a clássica Banheira do Gugu:

Era uma prova na qual um casal entra na banheira, o homem deve pegar os sabonetes e a mulher tem que impedir que ele pegue-os. Os câmeras trabalhavam muito para que focassem no corpo das mulheres (especialmente na bunda). O quadro começou em 1994 e foi “censurado” pela Justiça em 2001 pelo conteúdo impróprio ao ar.

Aqui, um exemplo, também restrito pelo YouTube (haha):

Na série, ao mesmo tempo em que a “banheira” era exibida, o diretor da Rede Globo, Rossi (que seria o equivalente ao Boni), ao ver o Domingão perder no Ibope, pediu para que chamasse um garoto “especial”. Seria o “Latininho”, um caso real e que foi símbolo da exposição exagerada na televisão em 8 de setembro de 1996.

Na época, o “Latininho” tinha 15 anos e era portador da síndrome de Seckel, um distúrbio genético que causa microcefalia, nanismo (ele tinha apenas 80 cm), e quadro de deficiência intelectual. Rafael não tinha ideia do que estava acontecendo, sendo constrangido em público ao estar caracterizado com o cantor Latino, que apresentou junto com ele.

Inclusive, esse caso foi retratado por uma denúncia na capa da revista Veja. Assim como aconteceu na série, o próprio Faustão não queria que isso acontecesse e foi pressionado pela diretoria. A Globo propôs um “acordo” entre Globo e SBT para que não tivesse mais baixaria, mas o SBT recusou, alegando que “a Globo não manda na programação do SBT”. Tem uma matéria que conta mais detalhes sobre o caso aqui.

Existiu uma matéria fake do PCC?

Sim, e o SBT pagou muito caro por isso.

Dois criminosos que diziam ser do Primeiro Comando da Capital (PCC) foram entrevistados por um repórter. Os bandidos também ameaçaram apresentadores como Marcelo Rezende e Datena.

É claro que a matéria repercutiu na mídia. A Polícia Civil abriu uma investigação e descobriu que, na verdade, eram dois atores contratados por um produtor do Domingo Legal. Dias depois, Gugu assumiu a culpa e disse que não sabia o que tinha no ar.

A série minimizou as consequências. O SBT perdeu sua credibilidade, todos os programas perderam audiência e faturamento (os anunciantes romperam) e o Domingo Legal ainda saiu do ar por duas semanas por decisão da Justiça, não pelo Silvio.

E por incrível que pareça, só existe um pequeno trecho desse episódio na internet.

Mas quando isso ocorreu de verdade?

Em 7 de setembro de 2003. No dia, o Gugu não concorreu com o Faustão, e sim, com um jogo da Seleção Brasileira. E também não aconteceu simultaneamente com…

…os sequestros de Patrícia e Silvio

Na série, os sequestros (inclusive foram pelo mesmo sequestrador, Fernando Dutra Pinto) aconteceram em 1999, sendo que na vida real aconteceram em agosto de 2001. Na série, assim como na vida real, o sequestro da filha ocorreu primeiro. E claro, após a negociação, houve o discurso de Patrícia na sacada da mansão transmitido ao vivo em todas as emissoras, inclusive na Globo:

Na série, cobertura do SBT sobre o sequestro de Silvio Santos (com direito a negociação com o então governador Geraldo Alckmin) ocorreu por meio do programa Aqui Agora. Mas isso não aconteceu de verdade porque saiu do ar em 1997. O TJ Brasil, jornal do cenário à direita, também saiu do ar no mesmo ano. Em 2001, o SBT só tinha jornalismo na madrugada.

Enfim, as inconsistências da série, como datas e eventos, são meros detalhes que passarão despercebidos, principalmente para as novas gerações. No geral, é uma série legal de ver, com boa direção, cenários e figurino e é bastante “caricata”. Inclusive, na minha opinião, a segunda temporada se saiu melhor que a primeira.

E reforçando: O Rei da TV está disponível através do Star+.

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Marcos de la Cruz

Jornalista pela UEMG Divinópolis. Escrevo sobre cultura e comportamento humano, sendo um "palpitador contemporâneo".