Olhar viciado causa impotência

Marcus Telles
5 min readJan 18, 2017

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Tava aqui lendo uma entrevista bem boa do Vladimir Safatle, e fiquei pensando sobre como precisamos escolher bem a direção em que investimos nossa atenção e nossa energia se queremos difundir ideias benéficas à vida coletiva: é uma boa decisão, por parte de alguém que pensa sobre circulação de afetos, não-identitarismo, reconhecimento etc., vir a público pra falar quase somente de política partidária? Óbvio que muitos rumos a nível nacional passam por lá, mas a maioria das coisas não passa, ou passaria como resultado de ações coletivas em escalas menores. Também vale a pena repensarmos para quem falamos: esse cacoete de falar sobre estratégias para “a esquerda” não contempla nem deveria contemplar a maioria das pessoas, cuja energia está engajada em atividades de alcance muito menor (embora meu “falamos” aqui também tenha um sujeito coletivo implícito, que pode simplesmente englobar todo mundo). E também como falamos: se o objetivo é abrir novas formas de vida possíveis, o jargão típico dos jogos de linguagem filosóficos tem lá os seus limites.

(O Safatle é apenas o estopim do raciocínio. Gosto das intervenções dele.)

Não podemos deixar que PMDB seja papo de gente séria e que a circulação social de medo e ódio seja assunto de auto-ajuda. Essa hierarquia implícita do que realmente importa aprisiona nossa atenção, já que ela nos faz ver exatamente campos sobre os quais não temos tanto poder de influência. Recebemos muitas narrativas prontas sobre “O que foi feito?” e acabamos tentando reproduzi-la quando nos perguntamos “O que fazer?” E aí acabamos implicitamente achando que, se não dá pra derrubar o governo nos moldes de 1789 ou 1917, então não há nenhuma ação possível. Mas, felizmente, as histórias das mudanças não resumem minimamente as possibilidades de reunir causas e condições necessárias pra produzir mudanças.

Vejo muito desânimo em pessoas com inclinações ativistas, mas, se focamos em níveis nos quais temos pouco alcance ou em interlocutores sem vontade ou condições de nos entender, vamos mesmo perder tempo, talvez a vida inteira. Imagino o tanto de mentes brilhantes e compassivas que não está gastando a vida tentando dialogar com figuras exemplificadas pelos atuais ex-governistas petistas, que simplesmente, ao menos no momento, não vão ouvir. Em vez de procurar pessoas com a energia travada pela falta de um trabalho de luto, por que não abrir espaço e se conectar com outras, já com mais potência? Isso, por si só, já facilita o próprio luto dos outros. Seja qual for a ideia, tem sempre um monte de outros interlocutores possíveis, e outras formas de falar ou agir possíveis.

Então, embora nem sempre, o desânimo às vezes vem do fato de o próprio ativismo se fechar no círculo de possibilidades do jogo “ativismo” (assim como filósofos se fecham no círculo de possibilidades do jogo “filosofia”), que teoricamente só faz sentido se for para ser um fator de ampliação das possibilidades.

Por algum motivo, procurei memes engraçadinhos com a palavra “impotência” e o Google Images retornou várias imagens do Ed Sheeran. É um diagnóstico musical justo. (Mentirinha, eu gosto, só que escondido.)

Uma das maneiras pelas quais as pessoas vão se abrir para novas ideias (cooperação, por exemplo) é vendo exemplos, em escala menor, de coisas que dão certo. Nossa crise de imaginação contemporânea é muito ligada a um senso de que não tem como fazer diferente. Então melhor que argumentar é fazer circular exemplos que já mostrem as possibilidades: o que dá certos nas escolas, creches, construções, praças, hortas do bairro, por exemplo. Não se trata de esquecer esse nível de atuação coletiva super difícil e efêmera a nível eleitoral, mas de construir coletivamente em níveis mais factíveis e dar visibilidade para quem já faz isso. Senão ficamos impotentes mesmo, e sem potência não há essa alegria necessária à ação. Exemplos realmente movem as pessoas, e ainda por cima sem as hierarquias e os messianismos típicos dessa ficção super nova na história, a nação.

E é bom que possamos fazer isto sem permitir que esse foco no factível seja transformado, como muitas vezes é, em um gesto conformista (“é só consumir consciente, reciclar o lixo”, etc.). As decisões políticas são capazes de jogar fora décadas inteiras de mobilizações sociais. É muito mais questão de abrir brechas. Por exemplo, as narrativas em ampla escala sobre como acontecem mudanças sociais nos fazem esquecer que ações no nível individual abrem brechas no capitalismo: se aprendemos a respirar e a cultivar alegria interior, contentamento, não precisamos consumir para tapar buracos emocionais, não internalizamos a temporalidade “em fuga” de quem precisa sempre produzir sempre mais, etc. Ações em pequenos grupos também: por que seguir isolando pessoas e atividades incompatíveis com uma certa lógica de mercado, isolando os velhos, os deprimidos, os doentes, os mães e pais com filhos pequenos (especialmente mães), ou terceirizando coisas como educação e alimentação? Mas as narrativas a nível nacional não captam essas modificações, captam apenas a tomada do poder no dia tal por tal grupo. “Fulano passou a manhã conversando com a vó” não entra na narrativa revolucionária, mas é uma recusa efetiva, com impacto direto e indireto, ao egoísmo, à lógica da produtividade.

As notícias tendem a focar no nível nacional: Benedict Anderson já disse que, no século XIX, a sensação de simultaneidade entre os vários fluxos temporais da nação foi possibilitado pela circulação de jornais. E também tendem a enfatizar o que há de negativo: como dizia Hegel, os momentos felizes são páginas em branco na história. Mas essa combinação entre um nível de ação (o nacional) quase inacessível e a ênfase nos problemas evidentemente nos deixa broxados. Não é que tudo esteja, na verdade, maravilhoso, mas sim que há muito o que fazer. Se miramos apenas em escalas amplas, todo benefício que geramos é insuficiente. (Curiosamente, combinamos essa expectativa muito ampla a um enfoque temporal muito curto: raramente pensamos em modificações para além do próximo período eleitoral. Quantos de nós pensa em dez, cem, mil, milhões de anos?) Mas se observamos, nós mesmos, a micro-história do nosso impacto no mundo, então dá pra ver que não estamos tão impotentes assim.

[Abaixo: Rascunho a ir atualizando constantemente, na medida em que eu for lembrando ou descobrindo]

Promovendo alguns exemplos de movimentos potentes que conheço

Cultivo de atenção, amor, compaixão, alegria, equanimidade, sabedoria: Lama Padma Samten, Centro de Estudos Budistas Bodisatva. Também: comunicação não-violenta.

Ativismo: Mães de Maio, Pe. Júlio Lancellotti, Rebeca Lerer, Pimp My Carroça, De Olho nos Ruralistas.

Escritores, intelectuais, colunistas: Eliane Brum, Moysés Pinto Neto, O que você faria se soubesse o que eu sei?, Pablo Ortellado, Gustavo Gitti, Vladimir Safatle, Christian Dunker, Ailton Krenak. Em inglês: Naomi Klein, George Monbiot.

Jornalismo: Ponte, Pública, Monitor do debate político no meio digital.

Educação: Escola Caminho do Meio, Escola Vila Verde, Escola da Ponte, Projeto Âncora e outros trabalhos do José Pacheco.

Em suma: além de combater aquilo que produz sofrimento, podemos divulgar, apoiar e fazer circular aquilo que produz felicidade para o maior número possível de seres. A existência sutil das coisas dependem delas serem vistas. Podemos nos engajar pessoalmente e apoiar financeiramente ao menos um desses movimentos. E aceito sugestões para ampliar a lista aqui.

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