Sarna Pisciana

Margem
18 min readJun 8, 2022

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Enquanto o mundo estava comprando caixas de papel higiênico e todos os pacotes de farinha de trigo que os mercados tinham no estoque, eu estava buscando retomar o que pensava ser a salvação da quarentena: um romance com meu vizinho. Quer coisa melhor que garantir a conchinha em um confinamento que ninguém sabia direito como iria ser? Pois é, depois de um lindo carnaval no Brasil, eu voltava para um estranho fim de inverno europeu, com os românticos queijos e vinhos de sempre, mas com as incertezas de um vírus que se espalhava cada dia mais pelo continente.

Com menos de dois dias quarentenada o convite surgiu. Tornou-se uma tarde de vermut na varanda do prédio, que se estendeu para a sala, ouvindo uma coletânea de músicas dos anos 2000 no YouTube, um jantar japonês com amigos, e claro, o café da manhã do dia seguinte. Para mim, virginiana atenta às dinâmicas do mundo e aos comportamentos humanos, o café da manhã é o momento perfeito de análise do que aconteceu no dia anterior e a brecha para entender o que esperar para o futuro. E foi então que percebi que eu não poderia esperar muita coisa. E se meu cérebro analisador de momentos estava esperando a conexão perfeita da conchinha de confinamento, eu vivi o oposto. Vi a desconexão, e aquele ar de final mostrou que meu romance também iria entrar em quarentena.

Barcelona já estava confinada, e nos 100 metros de rua vazia que separa nossas portas pude me dar conta que meu plano provavelmente tinha fracassado. Foi só nesse momento que eu realmente entendi que o mundo tinha parado, pois, ao voltar para casa, percebi que aquele seria meu ambiente por tempo indeterminado. E na tentativa parar de pensar um pouco, resolvi tomar um banho, pois se tem uma coisa que eu gosto é de banho pós sexo, quando meu ascendente em sagitário me mostra a importância de um corpo vitalizado, carregado de energia.

Mas esse banho não foi um desses revitalizantes, aliás, o oposto das minhas expectativas se mostra outra vez ao revelar que eu não estava tão bem assim. Manchas vermelhas por todas as partes e uma coceira imediata resolveram se espalhar pelo meu corpo igual o corona se espalhava pela Espanha. Alergia? Picadas? Eu não tinha ideia do que poderia ser. Mas virginianamente resolvi esperar para entender o que minha pele tentava colocar para fora.

E assim foram os dias seguintes: coceira, observação, e nada de contato com o vizinho. As manchas vermelhas viraram pequenas feridas por determinadas regiões, e a coceira tinha tomado conta do meu dia a dia.

Só podia ser ácaro!

É quando começa a saga de buscas no Google, mensagens com a mãe médica da amiga e diversas faxinas com vinagre de limpeza para matar até a avó paterna dos ácaros no meu colchão. Porém, o silêncio no meu celular continuava, e foi quando meu impulso de comunicação, que vem da minha lua em áries, me fez mandar aquela mensagem que estava se coçando no botão enviar.

Oi, tá tudo bem com você e com a sua pele?

E se a comunicação até o momento estava lenta, a resposta foi imediata: “você também está se coçando?”. Deste momento em diante, posso dizer que nossas conversas viraram um verdadeiro congresso de dermatologia e nossa quarentena uma troca de experiências de como é ficar em casa se coçando.

Os rumores sobre um possível ácaro passaram em alguns dias, quando a gente se deu conta de que lavar os lençóis a 60º e deixar o colchão no sol todos os dias mata este tipo de praga, mas não acabava com nosso problema.

Se não é ácaro, o que pode ser? Alergia não era mais opção, já estávamos há duas semanas confinados — e separados pelos nossos 100 metros de distância — e a comida que tínhamos comido juntos já estava bem longe de nossos organismos. Foi nesse momento que aconteceu a nossa primeira aceitação e a gente resolveu verbalizar que sim, nós tínhamos sarna.

Pensar em pegar sarna já dá vergonha, parece sujo, do mundo animal, não é coisa de nós, humanos que tomam banho pós sexo. Mas pegar sarna do seu vizinho, no dia do término daquilo que poderia ter sido um romance, e ainda, trancada em casa, enquanto um vírus estava matando mais de mil pessoas por dia na Espanha, era pior. Tudo isso me parecia algo no mínimo inusitado e completamente fora do que o mundo esperava de mim naquele momento difícil. Nesse momento, a conversa no nosso celular deixou de ser sobre dermatologia e teve seu momento de descontração com a piada de que iríamos contar isso a nossos netos: enquanto o mundo tentava acabar com um vírus, a gente tentava acabar com um bicho em nossa pele.

E foi diante da concretização da minha sarna que resolvi atuar com todo o meu poder virginiano de conexão do corpo e para curar desse bicho em mim, e claro, no vizinho também. Mas tratar uma doença no meio de um pandemia não é tão fácil, já que todos os médicos do país estão lutando para salvar vidas. Seria no mínimo egoísta da minha parte usar o tempo de um deles para isso. Apelei para o senhor Google e descobri que na Espanha o tratamento de sarna em humanos é feito através de um creme. Fui logo contar minha descoberta ao meu parceiro de coceira. Eu só não imaginava que a gente ia se encontrar 5 minutos depois na fila da farmácia, que fica justamente no meio do caminho de nossos prédios.

Depois de duas semanas sem se ver e com um milhão de manchas vermelhas na pele, nos olhamos com um certo desconcerto, típico de quem pega sarna no meio de uma pandemia. Rapidamente eu vejo que a situação dele era muito pior que a minha. Se eu já não aguentava mais me coçar, só conseguia pensar como ele podia viver com a pele naquele estado. Foi então que o meu já conhecido atendente da farmácia (eu já tinha comprado creme de irritação para pele na semana anterior) percebeu nossa movimentação e veio nos perguntar como poderia ajudar.

– Faz quanto tempo que vocês estão assim?

– Duas semanas! (respondemos os dois)

– E vocês moram juntos?

– Não! (os dois)

Pode ter sido nossa maneira de falar, ou nossa cara de vergonha, mas o farmacêutico rapidamente entendeu que ali tinha alguma história boa, e resolveu palestrar sobre como se passa sarna de uma pessoa a outra, explicando entre palavras e gestos que somente através da fricção de corpos (sim, ele disse isso) que se passa este tipo de bicho. Nos disse também que deveríamos limpar nossos lençóis, sofás e todas as roupas depois de usar. E, por fim, ainda não satisfeito, ousou dizer que se algum de nós tivéssemos outros parceiros, poderíamos ter passado para eles também.

Não sabemos até hoje o que o farmacêutico pensou dessa história toda, mas eu e o vizinho fizemos infinitas teorias do que pode ter passado pela cabeça dele, e temos a certeza de que foi um momento de descontração no meio o estresse de quem trabalha em uma farmácia e está vivendo horas incansáveis de trabalho repetindo que máscaras e álcool gel estão esgotados há semanas. Depois de muito rir da situação, resolvemos cuidar de nossa pele, obviamente, cada em sua casa, já que o isolamento da nossa relação continuava mais evidente que a prorrogação do estado de calamidade de Pedro Sanchez.

Pronto, é sarna e eu tenho o creme que vai resolver em um dia. Isso era tudo o que eu podia pensar depois que voltei para casa com um tubo enorme de pomada na mão. Confesso que cheguei a pensar que a gente poderia passar o creme juntos, aproveitar e um passar no outro, deixar a sarna unir o que aquele final de semana tinha separado. Fantasiei um lindo romance de quarentena que poderia ter existido. Mas o clima do encontro na farmácia foi tão bizarro que achei melhor deixar essa vontade somente minha imaginação e na do farmacêutico.

Aquela noite passou, o dia seguinte também, minha conversa com o vizinho acabou, e eu achei que tudo iria melhorar. E junto com meu otimismo, chegou a primavera! Ai que delícia tirar todas aquelas blusas e tomar sol da janela da sala. E olha que ter sol talvez seja o maior privilégio na vida de uma pessoa há um mês em quarentena. E eu fui tão otimista que resolvi cuidar da minha pele me depilando inteira, até nas costas, local que eu nunca tinha sequer pensado em tirar pelos antes. A coceira continuava ali, mas eu estava tentando fingir que ela ia acabar logo.

Domingo, sol na janela, eu com a pele nova e depilada, pronta para um verão totalmente incerto e esquisito, mas pronta. Pena que durou só no domingo mesmo. E o oposto das minhas expectativas volta a se tornar presente, quando eu acordei completamente cheia de feridas nas minhas costas recém depiladas. Pensei na hora que a sarna tinha voltado, mas não, eram manchas diferentes, um pouco como espinhas, irritação, qualquer coisa, mas não era bicho. Era eu.

Já fazia uns dias desde que uma amiga psicóloga estava me dizendo que tempos estranhos podem causar somatizações, e que talvez eu poderia estar somatizando a minha sarna, já que ela estava durando semanas, e eu já tinha passado o creme há dias. Eu refutei essa possibilidade milhões de vezes. Afinal, eu tinha os mesmo sintomas que o vizinho, e todos sabemos que um bicho não sai do nosso corpo de um dia para o outro. Entretanto, acordar com as costas totalmente preenchida por outro tipo de ferida me fez pensar que talvez ela não estivesse tão errada assim. Até porque, minhas costas coçavam tanto quanto minha sarna. Que resolveu voltar a aparecer, aliás.

O mundo está louco. Estou há um mês sem sair de casa. Morrem mil pessoas por dia na Espanha. O Covid-19 chegou ao Brasil. Acho que tudo bem eu estar somatizando esse bicho maldito que resolveu se instalar na minha pele enquanto eu buscava a minha conchinha de quarentena e não consegui. Frustração mundial e pessoal reverberando na pele, acho que entendi. Outra vez, reuni minhas energias do signo de virgem para estruturar o que meu corpo estava tentando dizer, e como eu ia seguir me curando dali em diante, já que meu amigo farmacêutico não podia me explicar mais nada.

E na tentativa de ver minha sarna — que agora eram também feridas nas costas — de outra maneira, resolvi sair da medicina tradicional e mirar nas que eu mais gosto, as holísticas. Sei que tem gente que acha que uma é ciência e a outra é crença, mas para mim, as duas são processos de conhecimento do ser humano, executados de modos diferentes. E eu me joguei com tudo, usei todo o que eu não estava gastando pelos bares de Gràcia, bairro que moro em Barcelona, e espalhei meu dinheiro pelo mundo através dos mais diferentes tipos de tratamentos e consultas online com os bruxos e bruxas espalhados pelo planeta.

Comecei me consultando com um italiano que junta o tarot com constelação familiar, uma prática terapêutica usada para tratar questões físicas e mentais a partir da revelação das dinâmicas ocultas de uma família. Por meio da constelação familiar é possível identificar acontecimentos até mesmo desconhecidos por nossa memória. Em um final de tarde e uma sessão de quatro horas, ele me disse que eu era a carta mundo do tarot. Para quem não sabe, é a melhor carta do jogo, aquela em que a mulher tem os quatro elementos, representa uma pessoa completa. Mas como tudo não é só beleza e completude, vi neste dia também que eu tinha problemas com meu nascimento, meu lado masculino muito controlador e com a raiva, raiva de tudo e qualquer coisa, essa mesma, eu tinha um monte dela.

Amei receber todo esse conhecimento que me fez entender melhor a minha família, minha história, meu lugar dentro do ambiente familiar e como eu encaro e internalizo tudo isso em quem sou hoje, além do que isso reflete no modo que encaro o mundo e as relações com o outro. Só teve uma frase que eu não entendi, mas me marcou muito: “Manifestar minha integridade feminina em um mundo masculino que me oprime”.

Resolvi deixar anotada no meu caderno.

Mas eu não estava satisfeita, e minha coceira estava pior que nunca. Escolhi, então, como próximo tratamento o thetahealing, uma meditação guiada feito com uma técnica que atua diretamente na parte do cérebro onde se guardam memórias e sensações. Minha guia era uma mulher que estava na Austrália. Ela virou minha amiga e me atendeu em uma chamada de vídeo que eu nunca vou esquecer.

– Vejo em você uma flor desabrochando, mas ela está muito enraizada, o que te prende?

– Ah, eu tenho controle demais sobre as situações, não deixo nada fluir.

– Vamos nos desprender desse controle?

– Vamos!

– Vamos nos desprender do processo do outro?

– Vamos!

– Vamos entender o processo do mundo?

– Ai, vamos!

E foi assim durante uma hora falamos que controle a gente só imagina que tem, porque na verdade sabemos que ele é ilusório. Desprendi-me de tudo o que pensava controlar, chorei, agradeci, passei pela minha história de vida outra vez, voltei a ser criança, me perdoei de atitudes que tomei, perdoei atitudes que tomaram comigo, e me senti leve. Mas o curioso disso, é que a leveza veio junto com muita dor de cabeça, com muita coisa informação de que eu não era tão boa e certa assim. A leveza era pesada, cheia de vida, lotada de história e erros. Decidi que eu precisava de um tempo de vida normal.

A vida normal era a chatice de ficar em casa. Já fazia uma semana que eu não saía nem na escada do prédio. Fui ver o jornal, nada novo: caos nos hospitais, Pedro Sanchez lutando no congresso para aumentar o tempo do estado de calamidade e políticos brigando por seus podres poderes, enquanto uma infinidade de médicos lutava para salvar vidas. Eu, em toda minha insignificância de mais uma millenial no mundo, resolvi olhar o Instagram. Vejo que o vizinho postou um desenho dele. E era lindo. Uma flor de folhas verdes que saía de um poema. Era minha flor da meditação! Achei que merecia meu like. Mas não imaginava que ele resultaria em uma mensagem no celular alguns segundos depois.

Hola, qué tal?

Olha, eu fui no médico e queria te dizer uma coisa.

Não tem bicho, nenhum bichito!

Ele me falou que o que eu tenho é alguma alergia ou algo psicológico. Coisas de quarentena.

Demorei uma hora para me mexer no sofá. Que diabos a gente estava fazendo há semanas se não tem bicho? Se não é bicho, como passa de um para o outro? Como algo psicológico pode estar em duas pessoas de uma vez, e ainda, que merda de alergia psicológica que coça tanto? Fiquei com muita raiva, aquela lá, que eu tenho aos montes dentro de mim. Depois me veio um riso de nervoso, de não entender nada. Vi todo meu controle virginiano ir pelo espaço, e me dei conta que eu o tinha realmente cancelado na meditação.

Meditação, flor, raiz, controle, vizinho, sarna. Cancela, PUTA MERDA.

O mundo está louco. Estou há quase dois meses sem sair de casa. Tem uma pandemia que já chegou ao Brasil. E eu estou com uma sarna psicológica porque queria controlar meu romance da quarentena. Oi?

A certeza veio à tona, nem precisava cavucar mais em nenhuma sessão de terapia. Estava ali, escancarado na minha pele, me coçando há semanas, só eu não queria ver os sinais que meu inconsciente estava colocando para fora e tentando me dizer: Descontrola, e olha para dentro!

Essa frase ressoou na minha cabeça por horas, enquanto eu ficava estática com a mensagem na tela do meu celular.

Não respondi a mensagem e nem dormi aquela noite. Me revirava na cama entre pensamentos que rodavam e rodavam, e a sarna — que não era sarna — coçava e coçava. Fiquei com vergonha de tudo o que senti, de tudo o que pensei, de tudo o que eu fiz comigo mesma. Pensei que tinha machucado meu corpo por puro ego e controle, controle sobre o outro, controle sobre meus sentimentos e controle sobre o mundo. Tudo isso enquanto o outro me pedia tempo, meus sentimentos me pediam para sair e a terra mostrava que o ser humano não tem controle nenhum sobre o planeta.

Virei o caos. Foi então que uma grande amiga me mostrou o lado bom da coisa, quando me falou que o caos é a possibilidade do todo. Era isso! Eu já tinha aprendido a me perdoar, a entender que a leveza às vezes vem com a dor.

Resolvi que minha saga terapêutica não tinha terminado, ao contrário, estava apenas começando, e eu ia precisar da ajuda de muitas curadoras para tirar do caos a possibilidade que eu queria para mim. Mas enquanto isso, eu tinha uma mensagem no celular para responder.

-Hola, qué tal?

É, fiquei um pouco impactada com essa mensagem, mas acho que isso é talvez, assim, uma conexão, não? Ou estou viajando? hahahaha.

-Conexão? Sei lá, só acho muito estranho. É, acho que vou pensar nisso.

-É, eu também, acho que vou pensar nisso…

Foi quando uma outra amiga, aquela que já vinha me alertando da somatização, me mandou um convite para participar de uma aula sobre nossa Vênus no mapa astral. Eu topei na hora participar para saber mais sobre o planeta que fala sobre o amor e o feminino. E foi aí que escutei a chave que me faltava para fechar o quebra cabeça. Aprendi neste dia que ter a energia da Vênus integrada é saber se cuidar, ter o auto-amor. Amar-se exatamente como é para amar o outro e aceitar que ele te ame como ele pode e consegue amar. Por que isso me parece tão óbvio agora, se era tão impossível antes?

Eu sempre soube que minha Vênus era em escorpião, signo de água, profundo e controlador. Mas naquele dia descobri que temos que ver não só no signo que está, mas também em qual casa temos esse planeta feminino. E quando eu soube disso, entendi um lado que sempre neguei de mim mesma, o pisciano. Sim, tenho Vênus na casa 12, casa de peixes, e para explicar um pouco, é um signo de água também, sonhador e cheio de misticismo, da arte e do amor universal. Para uma virginiana — que é o extremo oposto — foi bem difícil aceitar que eu tinha um lado sensível e cheio de fantasias.

Qué fuerte, tío! Nem sabia o que pensar, mas enquanto eu me afundava em mim mesma, a Espanha começava a dar sinais de melhora do vírus que nos assombrava há dois meses. O 8M tinha sido interpretado por médicos como um grande disseminador do coronavírus por aqui. E pode ser que tenha sido. O que é ainda mais interessante, ao pensar que o movimento que quer tirar as mulheres do papel imposto dentro da sociedade para que sejam ouvidas nas ruas, colocou o país inteiro de frente com o que mais queremos transformar.

O feminismo quer que os cuidados sejam processos de colaboração mútua entre todos os indivíduos da sociedade, e o coronavírus fez o mundo sentir na pele a importância do cuidar de si e do outro. Em escala mundial, mas principalmente, dentro de nossas casas e dos nossos corpos. Parte do processo de ser feminista, se sentir livre e cheia de vida passa por mostrar a todos o que a política, os livros e contas empoderadoras no Instagram podem sim mexer com a auto-estima. O feminino é intuir, é amar, é cuidar e é receber.

E se no começo deste isolamento social eu era euforia pura, me sentia forte e realizada, cheia de verdades que meus recém cumpridos 30 anos tinham trazido. Agora, eu era sarna pura, caos em forma de pessoa, com feridas por todo o corpo que não me deixavam esquecer por um minuto sequer que, assim como todo o planeta, eu estava inflamada. E que forte é ter uma inflamação que te mostra na pele, através de formas asquerosas e dolorosas, que é preciso colocar algo para fora. O que eu estou expurgando? O que o mundo está expurgando?

Fiquei sensível, eu…logo eu, que queria ver todos os webinars de política, criar uma economia colaborativa e destruir todos os Trumps e Bolsonaros do mundo. Eu tive que ficar quieta, lá no meu quarto, coçando minha sarna, sem entender uma puta merda que meu inconsciente estava tentando me dizer. Oi? Inconsciente que já é consciente, quer falar comigo? To aqui, viu!

Sant Jordi, dia em que a Catalunha troca livros e flores entre as pessoas amadas, mas que em ano de quarentena, teve quer ser reinventando. Eu, na minha tentativa de expurgar o inconsciente, resolvi voltar a fazer algo que desde criança gostava tinha me esquecido, escrever poemas. E escrevi um pequeno poema para todas as pessoas com quem conversei naquele dia. E nossa, como fluía, vomitei assim mais de 20 poemas em uma tarde, escrevi para amigos, família e para o vizinho. Escrevi em português, espanhol, até com frases de francês eu me arrisquei a rimar.

Me senti carinhosa esse dia. Fazia tempo que eu não parava para falar bem das pessoas que amo, dar um presente lá do fundo do coração, deixando meu inconsciente falar. E ele se revelou para mim através do papel e da caneta, com uma personalidade assertiva e talvez um pouco dura, mas dito de uma forma muito amorosa. O poema da minha avó foi, para mim, o resumo daquilo que eu escrevi para todos naquele dia, e mais ainda para mim mesma. Ele dizia ao final:

E se o mundo nos presenteou com o cuidar, ele deve refletir, quando no espelho eu me olhar”

Ufa! Senti-me leve depois de dias. Como ajuda um processo artístico, deixar sair a criatividade, os sentimentos, o amor pelas pessoas. E eu, que sempre fui ligada a arte, porque sei o quanto me ajuda a entender o mundo e os outros, descobri que ela poderia fazer eu entender a mim mesma, na minha arte. Arte, aquela lá da minha casa 12, a pisciana, cheia de fantasia e totalmente imersa no signo de escorpião. E resolvi buscar mais ajuda outra vez!

Lembrei-me que fazia tempo que eu não tirava um jogo de tarot decidi ver o que me mostrava essa roleta russa de cartas. O tarot é um meio de consulta e interpretação de fatos presentes, passados ​​ou futuros, além de sonhos e percepções. E meu jogo só veio escancarar tudo o que eu vinha coçando ao longo de todo esse processo.

A primeira frase que escuto ao cortar meu jogo é: “Você está em um processo de integração do seu feminino”.

Outra vez isso?

Ela ainda me contou que eu estava com feridas do coração abertas, aprendendo a curar processos, entender o outro, e parada, junto com o mundo inteiro. “Deixa, mulher, estamos todos em standby”.

A medida que os contágios começam a baixar, e fomos liberados de andar pela cidade, fazer esportes, a quarentena começou a ter uma luz no fim do túnel. E eu consegui ir no médico. Com todo o caos que vivia dentro de mim, achei que poderia voltar à vida normal, mas a sarna, ou o que quer que fosse aquilo, ainda atormentava os meus dias. E me coçava tanto, me irritava tanto, que resolvi que o tema da minha sessão semanal com a psicóloga, seria falar dessa sarna que não é sarna.

E assim foi. Despejei, sem parar de falar nem para respirar. Eu tinha um romance que me gerou uma sarna conjunta enquanto o romance acabava. Eu descobri que a sarna não é sarna, é psicológico, e que algo psicológico pode ser compartilhado quando nos conectamos com o outro. Eu descobri que amo ser feminista, me dá força. Eu descobri minha linhagem familiar, e que dela eu trago raiva, e que essa raiva pode ser usada de forma boa se eu manifestar o meu feminino oprimido por um mundo muito masculino, pelo equilíbrio do feminino e o masculino. Eu descobri que estava muito enraizada pelo controle ilusório da minha vida. Eu tentava controlar a mim, aos outros e o mundo. Descobri que minha Vênus não estava integrada à minha personalidade, eu estava usando a energia do amor para exigir e esperar no lugar de dar e receber, e que para integrar, eu deveria dar luz ao que eu estava escondendo. E a psicóloga só completou meu devaneio me dizendo que eu já tinha entendido a causa da doença, mas toda ferida precisa ter seu tempo de cicatrizar.

Eu não estava escondendo, eu estava abafando algo que nem eu sabia que tinha, essa foi minha conclusão neste dia em que entendi o que o tarot me dizia sobre integração do meu feminino. Minha pele, minha sarna, meu processo, minhas terapias, meu confinamento. Tudo o que eu pensava estar expurgando era nada mais do que uma integração do meu lado pisciano, meu signo oposto, que está na minha Vênus, na minha energia feminina. Minha sarna é pisciana.

E que louco pensar que enquanto eu vivia tudo isso, o mundo flertava com a economia achando que eles eram o par perfeito, segurou até não poder mais. Depois, foi obrigado a se fechar em quarentena, e foi só então que começou a notar que havia sido invadido por um vírus que estava se espalhando por seus territórios, causando feridas e incômodo por onde passava. O mundo achou que o vírus tinha sido criado em laboratório, mas depois, entendeu que ele mesmo o tinha feito, através dos mecanismos de funcionamento da sua própria natureza.

O mundo teve que aprender a se cuidar, e para isso, usou das mais diversas técnicas que a ciência e os profissionais da saúde poderiam oferecer. No processo do mundo, ele viu a força das políticas mulheres gerenciando uma crise de cuidados, e como as enfermeiras são as grandes trabalhadoras dentro de suas casa e hospitais. Dessa maneira, o mundo olhou para dentro, reviveu sua história, resgatou sua essência, entendeu que não tem controle sobre tudo e todos, valorizou o poder do feminino. O mundo expurgou tudo aquilo que ele estava escondendo, a integração da sociedade com os ciclos da vida. O mundo entendeu a sua doença, e agora precisa de tempo para cicatrizar.

Tudo isso me fez ver como nosso inconsciente e partes de nossa personalidade mal desenvolvidas precisam ser colocadas à flor da pele para que elas sejam reconhecidas e nos transformar de uma maneira que jamais vamos voltar a ser os mesmos. Se existe uma nova normalidade, eu posso dizer que volto para ela completamente transformada, muito mais verdadeira comigo mesma, entendendo que precisamos de auxílio de todas as medicinas e dos profissionais que as utilizam para nos auxiliar no conhecimento da nossa personalidade e corpo.

Entendi que minha força está em deixar que as coisas aconteçam, mas que vou tratar delas de maneira amorosa comigo e com o outro, deixando com que as coisas tomem o tempo que elas precisam para se curar, sem medo de criar feridas e carregar cicatrizes. Me coçar foi horrível, mas sem minha sarna pisciana, eu provavelmente não olharia para mim com tanto amor e cuidado. O vizinho continua lá, nos 100 metros que nos distanciam, provavelmente deve estar cuidando da sarna dele, que certamente é um processo diferente do meu, e qual é, só ele pode contar.

E se descobri que eu sou um mundo inteiro, também sei que sou parte do nosso planeta. E se através de uma doença que eu mesma criei eu fui capaz de mudar completamente a maneira com que encaro a mim mesma, entendo que não é por acaso que tudo isso aconteceu exatamente ao mesmo tempo que o mundo todo também passa por uma fase de reconhecimento e transformação. E é assim, através de uma sarna aparentemente inofensiva e uma doença invisível que se espalhou entre todos os continentes que podemos reafirmar o clichê: A gente muda o mundo e o mundo muda a gente.

E entre vírus, sarnas e transtornos psicológicos é que a gente carrega o peso da leveza de se manter vivo.

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Margem

Contos pessoais para curar o coletivo. Vênus em escopião, conjunção com plutão na casa 12 transmutando seu apego.