Sagrado Feminino: o que é isso, afinal? Superando a ignorância que matou milhares de mulheres no curso da história

Maria Gabriela Saldanha
11 min readApr 9, 2017

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Diante de várias críticas rasas que têm sido feitas em época de expansão e celebração da ideia de “Sagrado Feminino”, cai bem uma brevíssima explicação para afastar minimamente a mesma ignorância em torno do tema que perseguiu, torturou, estuprou e matou diversas mulheres ao longo da história da humanidade, sacerdotisas ou não, sob acusação de que exerceriam práticas demoníacas e reverenciariam entidades das trevas. Hoje essa ignorância aparece sob outras roupagens, estigmatizando e desestimulando mulheres que se encontram para estudar ervas, ginecologia e alimentação natural, magia, linguagens terapêuticas ancestrais diversas, mitos femininos, instrumentos oraculares e outros saberes que, antes da apreensão da ideia de sagrado pelo império das religiões monoteístas-patriarcais, pertenceram predominantemente à nossa classe sexual nas mais diversas culturas.

Em primeiro lugar, mulheres podem e devem se encontrar cada vez mais. Não precisam pedir permissão para tratar de temas de seu interesse. Embora as redes sociais tenham constituído uma mídia da maior relevância para o levante feminista testemunhado pela nossa geração, os discursos de libertação feminina só se consolidam com a constituição de laços reais. Nesse sentido, a prática constante de realizar rodas, que são o formato de encontro mais comum para o estudo dos muitos temas que podem ser alocados dentro da compreensão de Sagrado Feminino, está um passo à frente de um determinado feminismo que busca disputar espaços quase que exclusivamente virtuais.

Mas vamos ao conceito: Sagrado Feminino é apenas um código. Fica um pouco difícil bater em um código, sobretudo se ele expressa o direito de todas as mulheres a uma religiosidade livre. É ineficaz. Esse código, tão falado nos últimos tempos, sempre se fez presente em todos os povos, ainda que não identificado dessa forma. Sagrado Feminino nada mais é do que a face feminina do divino e todas as coisas onde ela pode ser reconhecida. Quando nos lembramos que, muito antes da devastação cristã, povos ameríndios cultuavam divindades fêmeas, como Coatlicue, IxChel e Senhoras ligadas ao cultivo de milho, estamos nos reapropriando de sabedorias que resgatam múltiplas possibilidades existenciais para a mulher, na contramão do apagamento histórico de referências divinas nas quais se espelhavam. Ora, se você afirma em caráter de dominação que só existe um Deus e ele é homem, se você aniquila o espelhamento de seres humanos do sexo feminino em forças invisíveis, sendo a fé uma necessidade comum a todos os povos, obviamente deixa as mulheres mais facilmente expostas a toda forma de violência, posto que não participam do divino.

Isso implica dizer que para que sofrêssemos milênios de violência, precisaram nos usurpar, demonizando ou apagando, uma noção de sagrado onde elementos como a dignidade e a liberdade de mulheres eram colocados acima de qualquer questionamento dos homens. Uma vida em integração com o sagrado, conforme ele era enxergado na natureza, era uma vida infinitamente mais sustentável do que o capitalismo hoje nos autoriza. A maioria das sociedades que foram vítimas dessa usurpação era matrifocal, como os povos celta e maia, e a capacidade reprodutiva, que antes era respeitada e celebrada como uma metáfora do poder de perpetuação da vida nos ecossistemas, passou a ser apropriada pelos homens como instrumento de dominação de mulheres. Se antes o lugar de mulher era em toda parte, porque em tudo sobre a Terra se reconhecia o poder feminino, a exploração da gravidez e da maternidade, sobretudo pela ideia de pecado original, reservou a existência feminina à dimensão privada do lar, vergonhosa de seu corpo, de seus desejos, de seus conhecimentos.

Algumas sociedades, como a grega antiga, galesa, yorubá e hindu, chegavam a ter dezenas de Deusas. Não é verdade, no entanto, que em todas as mulheres estivessem livres de violência, como entre os Vikings, que violentavam mulheres de outros povos como prática de guerra. Porém, certamente a existência de um feminino divino resguardava possibilidades que hoje não vivenciamos. As mulheres nórdicas, por exemplo, eram as porta-vozes dos Deuses. Isso implica ter voz quase que incondicionalmente à luz do sagrado. O mais perto que conhecemos disso hoje é a figura de uma Mãe de Santo. Sobre a Grécia, em especial, para a qual a mulher não era cidadã, vale lembrar que divindades como Afrodite, Hécate e muitas outras não eram originalmente gregas, mas reverenciadas por outros povos. No caso dessas duas, povos da Ásia Menor. Foram, assim, enxugadas de seus significados e reduzidas para caberem em uma sociedade obcecada pelo estereótipo de feminilidade para fins de dominação. Afrodite, que era uma Deusa de Fertilidade ou Deusa Mãe, passou assim a ser uma Deusa do Amor e da Beleza, concorrendo definitivamente para o empobrecimento de uma zona de interesse feminino por meio do seu culto. Estudar Mitologia dentro do Sagrado Feminino, felizmente, nos ensina isso, contribuindo para a superação de uma ignorância histórica que atravessou toda a formação do Ocidente.

Antes da existência de Adão e Eva, dizem os hebreus, existiu uma mulher indomável. Seu nome era Lilith. Não desejando limitar sua vida à condição de companheira de Adão, foi banida do paraíso. Para remediar tal insubordinação, Deus teria criado Eva, não da cabeça de Adão, não dos pés, mas de sua costela, para que caminhasse ao seu lado e pudesse ser protegida pelo seu braço. Ou seja, para lhe pertencer. Lilith, portanto, representa o feminino insubmisso que existiu antes da civilização patriarcal. Igualmente, Blodeuwedd, já estudada aqui, foi criada por dois druídas para ser esposa de um Deus, mas termina por se libertar desse destino de mera esposa e retorna como coruja — selvagem e sábia — ao seio da floresta, que simboliza o ventre da terra, o mesmo local de liberdade feminina inquestionável do qual parte Lilith. Estudar Mitologia dentro do Sagrado Feminino, felizmente-parte2, nos ensina que a quebra do estereótipo de feminilidade não é matéria exclusiva do feminismo. E nos faz construir críticas melhores. É simplesmente vergonhoso de tão raso supor que o Sagrado Feminino afirme estereótipos, com centenas de Deusas completamente distintas umas das outras dentro do seu repertório de mitos, talvez milhares completamente desconhecidas.

Abrir-se a essa diversidade cultural e representação do feminino divino é um ponto central para esse resgate. Sagrado Feminino, para muitas autoras, como Amy Sophia Marashinsky, é a vivência de uma forma de totalidade. Sobre a totalidade, já intuía Clarice Lispector em uma carta famosa: “ “Não pense que a pessoa tem tanta força assim a ponto de viver qualquer espécie de vida e continuar a mesma. Até cortar os próprios defeitos pode ser perigoso — nunca se sabe qual é o defeito que sustenta nosso edifício inteiro”. Totalidade, nessa acepção, é quando todas as formas existenciais cabem dentro do feminino, sem que seja preciso renunciar a uma delas, mas compreendendo que todas podem coexistir e se mostrar fundamentais. Em outras palavras, é quando uma mulher não renega ou diminui nenhuma parte do seu ser, experimentando amor por si mesma. Assim, temos um feminino ancestral para o qual uma Deméter, que escolheu viver em aversão a qualquer abordagem masculina, o que seria considerado “misândrico”, é tão importante quanto uma Kuan Yin, deusa oriental de absoluta misericórdia, o que se aproxima da nossa visão de maternidade, apesar das infinitas formas maternas, inclusive nada dóceis, previstas em outros panteões.

Mas não somente do estudo de Deusas é feito o conceito de Sagrado Feminino. É bem verdade que a atividade de contação de estórias é primordial na história da humanidade e seu patrimônio simbólico. E, como tal, soa misógino reclamar que mulheres estejam estudando mitos, mas nunca ter visto problema algum na apropriação de conteúdo mitológico por homens, por vezes na formação de um conhecimento sistemático, como ocorre com a disciplina da Psicanálise. Porém, o conceito de feminino divino também comporta práticas, sendo muitas milenares, que devolvem à mulher de imediato uma outra relação com o seu corpo, com a sua alimentação, com o autoconhecimento e a cura. Restitui, portanto — lembrando da sacerdotisa que por direito existe em cada uma, uma vez que esse know-how é historicamente nosso, e pode a qualquer momento ser empregado — um senso de autonomia diante da natureza e de saberes ancestrais, sem deixar as mulheres infinitamente à espera de um outro sistema de escolhas a ser conquistado politicamente.

Práticas antigas, como manipular a própria menstruação ou lubrificação vaginal para fins mágicos, exercidas por sacerdotisas pagãs, expressavam um nível maior de poder sobre o próprio corpo do que aquele que é dado dentro do processo de socialização de gênero das mulheres da minha geração. Da mesma forma, uma vez que posso conhecer ervas que curam males diversos, que divido receitas simples para não precisar encher meus filhos com a indústria farmacêutica, que desenvolvo produtos artesanais que me custam pouco, que consigo observar a conexão entre os meus hormônios e o meu estado emocional, que tenho elementos para abraçar mulheres com depressão e síndrome do pânico, que repenso meus propósitos de vida à luz de símbolos contidos em oráculos, que tenho autonomia para aplicar reiki, mocha, banho de assento, que ofereço perspectivas alimentares revolucionárias para quem tem câncer ou HIV, que estou moldando uma maternagem diferente e reconhecendo o trabalho das doulas, que diversas terapias alternativas (por força das mulheres que a mantiveram viva ao longo dos tempos) já são adotadas dentro do sistema de saúde, o que estou vivenciando é gigantesco em termos de autonomia e me faz usar elementos ancestrais para construir o meu agora e o futuro das mulheres que virão depois de mim. Deixo de ficar à espera do Estado, da família, do mercado, da indústria para muitas das minhas necessidades. O Sagrado Feminino já se constitui como o esboço de um sistema de escolhas diferente para todas nós e é importante lembrar do que afirmamos lá atrás: ele sempre existiu, só está sendo chamado por esse nome mais constantemente. Criticá-lo sem conhecer é pegar todas as práticas que garantiram alguma autonomia e a sobrevivência de mulheres em todos os tempos e jogar no lixo de uma vez só.

Pelo mesmo fator histórico, não faz muito sentido que estejamos acusando o Sagrado Feminino de uma banalização. Nunca nos preocupamos em observar como o cristianismo quis se banalizar para constituir o seu império, não é mesmo? Nossas críticas recaem sempre sobre as iniciativas de mulheres. No caso, mulheres que estão fazendo uso de conhecimentos que sempre lhes pertenceram. Sagrado Feminino está presente na atividade da curandeira da favela. Está presente na erveira da cidade pequena. No copo de vela com água e reza da quilombola. Na mãe evangélica que visita toda a vizinhança oferecendo o seu apoio emocional por meio de uma oração. Nas senhoras beatas que se dedicam a novenas e mais novenas, para curar as mais diversas dificuldades de uma família. Certamente, as críticas rasas feitas a esse código — Sagrado Feminino — jamais seriam apresentadas diante de uma liderança religiosa do porte de Mãe Stella de Oxóssi. O nome disso é respeito. Mas se você não tiver, experimente dizer a ela que Oxum, Yemanjá ou a figura de uma Yalaxé reforçam estereótipos de feminilidade. Experimente e fique. Fique para ouvir a resposta.

A maioria dos povos que vivem em integração com a natureza não é cristã, mas politeísta, isto é, também reverenciam Deusas. É assim com a soberania de Pachamama para diversos povos andinos. Além disso, sem as religiosidades das muitas nações indígenas e africanas, cuja presença sacerdotal feminina é predominante, diversos processos de resistência não seriam possíveis no Brasil e nas Américas. Criar um modo de vida com responsabilidade ambiental é importante e urgente. O mais próximo que temos de cotidianizar isso em larga escala é feito por muitas mulheres que, paralelamente, interessam-se pelas sabedorias ancestrais que curam e trazem qualidade de vida. As sacerdotisas contemporâneas perdidas por aí, que agora se encontram nesse processo de autonomia, dando-lhe o fôlego de um verdadeiro movimento, cuja base é a solidariedade. Um movimento que resgata e integra mulheres de religiosidades e crenças diversas, porque sabemos que os diálogos entre mulheres extrapolam as possibilidades demarcadas pelo feminismo.

Não são inferiores as mulheres que trocam tais sabedorias, seja dentro de religiosidades neo-pagãs ou numa comunidade da Baixada Fluminense. Nem as que leem livros como “Mulheres Que Correm Com os Lobos” e “O Anuário da Grande Mãe”, mantendo ativo um imaginário em torno da mulher selvagem ou da bruxa, antes demonizada, mas cuja relação com a floresta é representativa de autonomia, de usufruir dos recursos à nossa disposição com mais dignidade do que os sistemas de opressão disseram que poderíamos. Tampouco as autoras dessas obras são dignas de menos respeito. Não são inferiores as mulheres que mantiveram acesa a chama dessas sabedorias desde sempre, as oraculistas e curandeiras que se faziam presentes em cortiços e cortes, em feudos e feiras, em navios ou que nunca saíram de suas comunidades, todas com o propósito de diminuir o sofrimento humano. Não existe homogeneidade na busca por esse Sagrado, não é possível atribuir-lhe um rosto sujeito a fatores raciais e de classe, porque ele se encontra em todos os povos, em todos os períodos históricos. Tentar sujeitar a uma caricatura todas as mulheres que se aproximam de um exercício mais livre de sua religiosidade e relação com a terra é que seria estereotipar. Ele é, assim, uma tática de sobrevivência e emancipação feminina. O único fator que é consenso no Sagrado Feminino é o de gênero, não como critério absoluto de exclusão, mas como reconhecimento de um legado, sem o qual não é possível começar a dialogar.

O que se faz hoje é conversar sobre o que sempre existiu e amparou mulheres, muito antes de o Feminismo sonhar em existir como existe hoje. E sobre o que ainda as ampara, onde o debate sobre gênero não alcança. As mulheres da minha família não sabem quem foi Andrea Dworkin. Mas todas sabem quais ervas são abortivas e sabem preparar um Omolocum. Entendem quando uma criança está com o ventre virado e recorrerão à cura disso sem que precisem enfrentar horas no SUS. Funcionará perfeitamente. Não se sentem superiores a outras mulheres por terem essa crença ou aquela descrença. É totalmente possível aprender com elas e com outras que há respostas desenvolvidas por mulheres às suas opressões e angústias muito anteriores ao feminismo. É possível não ridicularizar as novas gerações que estão vivendo esse interesse do seu jeito, dentro de suas possibilidades e que, como tal, ainda cometerão muitos erros e acertos. É possível não chamar de banalização aquilo que sequer conhecemos o suficiente, deixando que quem está dentro desse processo e conhece minimamente esses recursos faça críticas melhores. É possível se espelhar na fome de autoconhecimento dessas mulheres e tentar entender por que projetamos nosso incômodo nelas, em vez de olhar para nós mesmas. É possível não reinventar uma crítica que viabilizou a inquisição, vivenciando uma competição retórica velada, enquanto continuamos a viver em um país que mata e estupra mulheres todos os dias. É possível lembrar que quando o calo aperta, muita gente crítica recorre a uma consulta com cartas; que a popularização feminista de expressões como “graças à Deusa” vem daí; que na hora de brincar dizendo-se bruxa todo mundo gosta. Tenhamos mais respeito, portanto. É muito fácil dizer que somos as netas das bruxas que eles não puderam queimar e continuar dando elementos para que bruxas ainda sejam queimadas. O Sagrado Feminino não compete com o Feminismo, ele só o antecipou alguns milênios. Podemos dizer que foi o seu ventre. Se hoje lutamos politicamente pelos direitos humanos das mulheres, tenhamos respeito pelas sacerdotisas de todo o mundo que asseguraram processos de libertação feminina muito antes de nós.

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Maria Gabriela Saldanha

Escritora, sommelier de cafonice, It girl de camelódromo, performer de comumadeusa, analista tatiquebrabarraquiana, dançarina pombagiresca.