Solitude é povoar a sua própria solidão

Maria Gabriela Saldanha
9 min readAug 7, 2017

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Em 2012, escrevi sobre a coragem que precisamos reunir para, contra toda uma sociedade que nos diz que o único lugar que podemos desejar ocupar se encontra à sombra de um parceiro, desafiar a ameaça de nos vermos sozinhas e despertar para a construção de uma solitude. Recebi mensagens de muitas mulheres tocadas por esse texto, que chegou a ser replicado por algumas plataformas de grande alcance, como o portal Geledés. Mas qual a diferença entre solidão e solitude, afinal? A origem dessas duas expressões está no latim “solitudine”, porém, a primeira expressa um estado de isolamento e desertificação emocional, enquanto a outra remete à plenitude que podemos experimentar em nossa própria companhia.

“A linguagem criou a palavra solidão para expressar a dor de estar sozinho. E criou a palavra solitude para expressar a glória de estar sozinho” (Paul Tillich)

Minha proposta aqui é atar 2012 e 2017, compartilhando as impressões de cinco anos tentando exercitar alguma solitude, indo além da percepção formal daquele texto, humanizando o discurso para pincelar com os desafios e as conclusões de uma experiência real de avanço em face da ideia de libertação emocional, enquanto mulher. Sendo assim, transcrevo o escrito inicial, para então tecer minhas considerações:

É preciso ter coragem de estar sozinha também. E sobre isso ninguém nos ensinou. Ninguém vai nos ensinar. Há uma normatividade rígida se impondo sobre a afetividade feminina, mas dessa vez não fala de castração. Simula liberação. Para que ela se efetive, é preciso produzir em massa uma ansiedade quanto ao sexo, um desespero por parceiros, uma incompletude que nos rouba de nosso protagonismo e nos aprisiona — sendo esse o mesmo mecanismo da sensação de insuficiência física produzida pela ditadura estética e da sensação de insuficiência emocional produzida pela cultura romântica. A quem a insuficiência sexual está servindo? A quem o patriarcado serve. Falar disso, embora seja claramente um questionamento sobre até que ponto nossos corpos e sentimentos são realmente e apenas nossos, fatalmente soará como moralismo. É assim que querem que vejamos.

Antes de tudo, devemos admitir que as meninas fazem sexo cada vez mais cedo e que isso reflete um problema grave de gênero, uma vez que não fazem por mero instinto, mas porque há toda uma cultura que prega a obrigatoriedade da vida sexual. Independentemente de a infância ser uma construção histórica, a sua abreviação contemporânea é um interesse mercadológico. Elas fazem sexo para não se sentir socialmente inadequadas. A quantidade de vídeos de revenge porn de adolescentes tomando as redes sociais, a quantidade de letras de música falando de “novinhas” e o investimento pesado da indústria e da mídia na erotização infantil demonstram que há toda uma legislação subjetiva determinando a hipersexualização da mulher desde muito cedo.

Tudo à nossa volta constrange, impele, coage para o sexo. Mostrar-se sexualmente ativa, intensa e frequente é garantia de privilégios. Ora, o patriarcado é sobre sermos coadjuvantes: dos processos políticos e de nossas vidas. À frente, sempre a figura masculina, determinando o nosso manuseio correto. Logo, não só os homens gozam de um conjunto de privilégios, é preciso também “conceder” aparentes benefícios às mulheres, incentivando a competição entre elas, para que elas acreditem que há alguma forma de premiação dentro desse sistema. E as mulheres são “premiadas” segundo diferentes critérios: submissão aos padrões de beleza, ajuste à moral e aos costumes (mulheres relacionáveis), disposição sexual e capacidade de proporcionar prazer ao homem (mulheres consumíveis)…

Na contemporaneidade líquida, os falsos privilégios femininos estão ligados especialmente ao consumo sexual, de modo que as mulheres precisam comprovar que são livres, donas de seus corpos e bem-resolvidas, mantendo uma aura de autonomia. Essa autonomia sexual precisa ser aparente, não pode representar, em hipótese alguma, uma ruptura com o patriarcado, ela é uma ficção de uso, uma licença. A apropriação da homoafetividade feminina como fetiche é um exemplo de como a liberdade sexual feminina é encarada como uma concessão. Essa autonomia também vende o produto feminino com uma garantia de blindagem emocional: a mulher bem resolvida dá menos trabalho, não precisa de tantos cuidados no trato, não se melindra com qualquer gestozinho agressivo, não demanda tanto desgaste na sua administração.

É interessante para o patriarcado que a nossa sexualidade seja estimulante, garantindo o entretenimento em longo prazo ou o descarte imediato, como todo bem de consumo. Quase nos esquecemos de que existimos para nós, quase nos condenamos a bobas da corte. Agora somos máquinas de prazer. Democratizamos e afirmamos, assim, o sexo como mercado: somos todas profissionais de alguma maneira, eis o sonho machista realizado. O que não representa, de modo algum, a problematização da pornografia ou a libertação da mulher em situação de prostituição, ela permanece segregada e violável.

Resta claro como o patriarcado subverte os nossos processos e rouba a cena que jurávamos protagonizar. Quantas outras causas pensamos alavancar e correm esse mesmo risco? Ou já foram sequestradas e ainda não percebemos? Diante de um sistema que corrompe e usurpa até mesmo a idéia de empoderamento por meio de uma sexualidade mais livre em prol do prazer masculino, o que parece definitivamente libertário? Respondo: o triunfo sobre essa ansiedade por parceiros e pela consagração sexual dentro do jogo de falsos privilégios dados à mulher. É no estado de solitude que essa solidão devastadora e insaciável perde a força. É quando tomamos coragem de romper com a obrigatoriedade de um parceiro, com esse desespero por companhia e afirmação sexual que finalmente podemos empregar a nossa energia em atividades diversas, que nos permitam tomar o mundo, que nos apresentem uma perspectiva de igualdade de gênero a respirar fora da guerra dos sexos. Ou o contrário: é quando empregamos a nossa energia em atividades que nos façam tomar o mundo, que nos apresentem uma perspectiva de igualdade de gênero respirando fora da guerra dos sexos, que tomamos coragem de romper com a obrigatoriedade de um parceiro, com esse desespero por companhia.

De qualquer modo, é preciso autoconhecimento. A nossa intimidade sempre foi objeto de disputa e controle, nunca nos pertenceu. Parece improvável que realmente a gente venha a conhecer relações mais saudáveis e justas sem que haja uma retomada e reconhecimento dessa intimidade, para que nunca mais fique ao cálculo dos interesses culturais, sociais e econômicos traçados pela supremacia masculina. Precisamos nos explorar mais, somos um universo desconhecido para nós mesmas. Aprender a ficar só e a ser por inteiro, virando o tabuleiro da manipulação afetiva e sexual, pode ser um passo determinante para nos desintoxicar de séculos viciadas em submissão, competição e aprovação. Se mesmo o nosso protagonismo em algumas questões pode ser uma ilusão de ótica, aprender a estar consigo e a preencher-se de companhias não sexuais (notem como a sororidade é imprescindível), de objetivos que nos obriguem a ir além de nós e que restaurem o óbvio — não somos as nossas emoções, NÓS TEMOS AS NOSSAS EMOÇÕES — podem ser os únicos passos concretos para a descolonização e autodeterminação femininas.

Em sete parágrafos, a falácia da liberdade sexual, o cultivo de uma dependência afetiva pela cultura romântica, a ditadura da beleza como medida da feminilidade, a exposição das meninas à objetificação sexual, a competitividade entre mulheres, o estereótipo de mulher bem-resolvida como forma de desumanização e o consumo sexual são explicados como facetas do mesmo processo de socialização, que vão cada vez mais nos mutilando emocionalmente para que estejamos sempre prontas para o sexo e, se possível, sem perturbá-lo com demandas emocionais “tolas”. Hoje eu só evitaria o termo “sororidade”, porque ele é bem relativo.

Continuo chamando a atenção para o quanto o trunfo de “moralistas” é usado contra nós, sempre que ousamos pensar a existência da mulher para além do quanto ela é formada para a satisfação sexual masculina, internalizando equivocadamente que essa é sua própria satisfação e exercício de liberdade erótica. A identidade da mulher contemporânea está profundamente assentada sobre a sua sexualidade, mas essa sexualidade não reflete de fato liberdade, reflete uma radicalização na dominação sexual por homens. A classe sexual dominante está nos dizendo que podemos nos relacionar com nossos corpos da forma que lhe convém, isto é, “Você pode caminhar nua e lubrificada o bastante por esse terreno, porque EU DEIXO”. Até que ponto libertar-se sexualmente tem sido para si e não para o outro?

Por outro lado, para cultivarmos essa falsa noção de liberdade sexual, é fundamental descartar nossas necessidades afetivas. Mas sequer tivemos tempo de conhecê-las, retirando-as da caixinha de feminilidade para enxergar o que é nosso e o que é demanda da cultura romântica para nos deixar eternamente à disposição da nutrição emocional dos homens. Durante séculos imperou um feminino classicamente submisso e associado ao espaço do lar. Com a apreensão desse feminino pelo capitalismo, dentro da lógica de mercantilização dos corpos, emerge a super mulher, atropelando a anterior: da rua, sexualmente objetificável ao máximo, vazia de pretensões afetivas até onde isso pareça conveniente, desejosa de sua autonomia até onde isso não represente uma ruptura com o sistema e, aparentemente, senhora de seu corpo, desde que ele reflita o que é esperado pela indústria. Mas para isso há um pacto: ele precisa estar aberto a ser constantemente moldado pelo que ela produz.

Entre uma geração com um determinado estereótipo de feminilidade e outra, o que sobre de nós? Quem somos nós, de verdade, fora da caixinha da mulherzinha dócil e servil emocional ou do mulherão servil sexualmente, por vezes com um pé em cada uma, vivendo uma afetividade dúbia, partida ao meio? Você conhece os seus desejos, o que te faz bem, permite-se querer mais da vida, sonhar alto, ou internalizou que um companheiro basta para a vida fazer sentido? Estamos sempre sendo formadas para ser a companhia de alguém. Ambos os modelos de mulher foram inventados para corresponder às necessidades masculinas e do mercado, nunca às suas próprias. Não nos pertencemos. Alguma pausa precisa existir para que não tenhamos mais a subjetividade tragada para dentro dessa engrenagem. Precisamos nos tomar nas mãos em definitivo, deixando de existir para o outro, passando primeiro a existir para nós mesmas e depois para a coletividade, tomando os espaços públicos dominados por eles ao longo de séculos. Para isso, a coragem enquanto enfrentamento do medo de encarar a sua própria solidão, que é uma ferida fabricada pelo processo de socialização de gênero, e buscar um autoconhecimento que nos deixe mais à vontade em nossa própria pele, preenchidas com a nossa própria companhia e das demais mulheres à nossa volta, que conosco compartilharão experiências, em um fortalecimento mútuo. Pesquisar outras possibilidades existenciais que nos deem prazer de estar vivas desloca o nosso eixo de segurança das relações com o outro para a relação conosco e com as outras, rompendo também com o ciclo de competitividade.

Desconhecemos, ainda, tudo o que podemos realizar quando nos colocamos no centro de nossas vidas. Talvez tenhamos medo de caminhar de forma mais autônoma e, paralelamente a isso, na ideia de masculinidade também foi depositada uma forte expectativa de proteção. O que é uma falácia, uma vez que o mesmo estereótipo paternal nos expõe à violência e à dominação. Que ousemos nos imaginar vivendo o avesso de tudo o que o mundo espera de nós, como mulheres: desde o dia em que você começou a ter vida sexual até agora, em algum momento já se imaginou feliz mesmo sem casamento ou filhos? E aquela viagem, aquele trabalho que te motiva, o seu projeto artístico, tudo o que você pode e deve inventar por aí? Como seria a vida ideal dentro de uma ideia de felicidade com solitude para você? A qual situação gostaria de dizer um enorme “foda-se”e ainda não fez? Temos o direito de reescolher o nosso caminho e as nossas crenças, infinitamente, sem achar que cada homem que aparece é o salvador em face da culpa milenar que carregamos. Quando vamos em busca de todas as ferramentas, linguagens terapêuticas, redes de apoio que possam nos desvendar no mecanismo de nossa própria ferida secundarizante, um novo mundo se abre diante dos nossos olhos. Começamos a despertar para as muitas mulheres que nos habitam, sentimos novamente tesão de viver, vamos povoando a nossa solidão. E, obviamente, mudamos pouco a pouco a dinâmica das relações, as coisas não ficam mais tão fáceis e à disposição dos predadores afetivos e sexuais. Rompemos com essa caricatura edipiana que advém da maternidade compulsória. Descobrimos quem somos nós e o quanto podemos realizar. Cercar-se do que ama fazer e buscar outras possibilidades de realização na vida, bem como companhias que nos impulsionem para o que de melhor existe em nós, são modos de povoar a própria solidão, convertendo-a em solitude.

A energia sexual que nos é constantemente solicitada é também energia de criação. Porque é capaz de gerar a vida. A energia afetiva que despendemos é energia nutridora. Esse fôlego infinito significa que estamos constantemente doando criatividade e nutrição para a vida dos homens, abastecendo-os. Somos como geradores. Tenha certeza: eles não realizam um terço do trabalho emocional que realizamos, não passam o dia inteiro quebrando a cabeça para compreender nossos padrões psicológicos, não se dão desculpas do tipo “ela tem problemas com a mãe ou com o pai”. Não que não tenhamos o direito de desejar construir uma vida ao lado de alguém, mas viver à espera disso pode ser uma morte lenta. Não que não possamos estar agora em uma relação, mas quando ela terminar, é preciso ter um espaço seguro para o qual voltar e redescobrir o prazer de estar consigo. Até mesmo as relações ficam mais ricas quando mergulhamos nesse processo de libertação, porque entramos plenas para viver as novas trocas. Olho historicamente para esses milhões de geradores desperdiçados, pifando por trabalhar à exaustão, e penso: se eles foram brilhantes funcionando sob tais condições precárias, imagina quando operarem sob os cuidados merecidos, doando sua energia para aquilo que transformaria o mundo. O seu próprio mundo e o que divide com todos.

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Maria Gabriela Saldanha

Escritora, sommelier de cafonice, It girl de camelódromo, performer de comumadeusa, analista tatiquebrabarraquiana, dançarina pombagiresca.