Sobre “Música de pianola”, de Renato Suttana

Mariana Belize
7 min readJan 10, 2023

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Photo by Maksym Kaharlytskyi on Unsplash

Renato Suttana é natural de Barbacena, mas viveu até os 33 anos em Barroso/MG. Professor universitário, escritor e tradutor, publicou livros de poesia e ensaios, entre os quais Bichos imaginários (2013) e Rapinário (2015). Mantém na internet o site O Arquivo de Renato Suttana no endereço: http://arquivors.com/

Música de pianola foi publicado pela Editora ARS em 2018. É dividido em três partes: Música de pianola, Joias falsas e Labirintos. Dentre seus temas estão o silêncio, a ação, mas também cansaço e certas notas de nostalgia. Nesta resenha, o foco é a primeira parte “Música de pianola”, que dá título ao livro.

A pianola é conhecida como um piano mecânico, que toca músicas automaticamente por meio de mecanismos que movem seus rolos, feitos de papel perfurado ou música gravada em diversos formatos. A máquina inspirou criações de Stravinski e permitiu aos compositores criarem músicas sem preocupações com as limitações das mãos humanas.

Ao trazer essa imagem da pianola para a poesia, duas ideias nos interessam: a primeira é a do piloto automático, ou seja, a música que toca a si mesma e a segunda, o flerte com a superação de limites humanos. A pianola também reflete em como essas ideias são antigas, assim como o ideal do robô já mora no autômato de ETA Hoffmann. Sendo assim, a tecnologia que parece dizer do futuro, parece, ao eu-lírico, ser antiga, monótona e não trazer euforia, mas tédio. Daí a predileção pelo silêncio, pela memória, a certa nostalgia já citada. Mais do que isso, chegamos ao dilema entre Heráclito e Parmênides, passamos por Goya e chegamos a Sartre, no seu conceito de má-fé.

I

No vidro do teu silêncio
se arranha a minha intenção:
asa que salta do imenso
azul nessa direção -

e esbarra na transparente
barreira do por dizer
(que te separa, luzente,
do escuro que vim trazer).

Nesse muro, que não dizes
e, ambígua, apenas sustentas,
meus sonhos vão, aprendizes,
parar às portas nevoentas

do voo que não começas,
do salto com que não sonho
(e que entanto são promessas
da voz em que te suponho).

O primeiro poema me transporta, de alguma forma, para uma relação entre poesia arcaica e a modernidade. Quando falo de poesia arcaica aqui, me refiro especificamente à Teogonia e, principalmente ao que JAA Torrano desenvolve em seus textos introdutórios sobre a poesia de Hesíodo. Alguns traços nos interessam: o aedo (poeta-cantor) representa o máximo poder da tecnologia da comunicação, o poeta tem na palavra cantada o poder de superar distâncias temporais e espaciais, também possui poder político e sua palavra libera força e existência que são divinas. Quando surge a lírica, ou seja, a poesia escrita, a linguagem passa a investigar a realidade humana e transforma forças divinas em questões interiores, já não representará o poder máximo, nem a pura memória, nem deuses.

No poema citado acima, há um vidro e ainda um muro que separa o eu-lírico de um tu. Essa distância que é dada através da linguagem escrita reflete um silêncio do “por dizer”, há também uma separação entre a escuridão e a luz desse tu. O eu-lírico só tem promessas. Esse dilema entre os dois, no qual um só fala e um só lemos, demonstra estarmos juntos no desconhecimento desse tu. Esse poema, no entanto, me faz pensar profundamente no abismo entre nossa linguagem e a do aedo, onde por não sabermos mais cantarmos da existência e fazendo existir as Musas, seguimos sós diante de barreiras e muros, donde só podemos pressentir, como o eu-lírico de Suttana, a ambiguidade e a espera “do voo que não começas”. Como uma intuição longínqua, ele só pode supor a voz das Musas como uma promessa no vazio e no silêncio. E daí sua intenção “arranha” o vidro do silêncio, em uma espécie de espera no escuro.

Ao mesmo tempo, conforme a leitura avança, vemos esse tu a que os poemas se dirigem e alguns até se referem, como a Ceifeira. E daí ficamos transtornados com a transformação dos sentidos possíveis, ao dar conta dessa possibilidade. Se for a morte, então tudo muda. Muda a Musa, só resta ao poeta falar com a Morte?

Nos poemas seguintes, os impulsos morrem antes mesmo de tornarem-se movimentos. O fracasso é tema do poema III, numa caminhada em que o eu-lírico percebe-se “colhendo nada e somando/ isso e ilusão ao meu gesto.” É no V que a imagem da ceifeira aparece e ela canta, embora só saibamos disso pelos versos de quem a ouve. “Sem força de dar sentido/ ao sentido de cantar,/ canta o sentido esquecido/ na tarde plena, solar”, aqui mais uma vez transparece a luz que vai morrendo e nascendo a cada poema.

No VII, há escuridão, no XI, sol demais. A amenidade mesmo não há. A natureza parece caótica, mesmo que seus movimentos não sejam violentos, mas displicentes, sem propósito, conforme lemos no poema VI: “Presa ao capricho do vento/move-se a folha, cansada -/ não do inquieto movimento,/ mas de ser assim levada”. O eu-lírico parece sentir-se assim dentro da vida, como quem é levado por ela, sem destino.

Do poema VIII em diante, o que teremos é, de certa forma, uma poesia altamente existencialista. No VIII, o eu-lírico flerta diretamente com a noção de impermanência e perpassa as ideias presentes n’O Ser e o Nada, de Sartre. O que faz com que tenhamos que lidar com a angústia da nossa própria impermanência, não só por causa da nossa consciência da finitude, mas principalmente porque não estamos nem nunca estaremos prontos, formados ou completos. Sendo Nada, Nada continuaremos. Paixão inútil, é como Sartre define a nossa situação no mundo.

Isso é sim um resumo bem pobre do que Sartre escreve sobre a condição humana, mas bem basicamente, é uma aventura de angústia e projetos fadados ao fracasso. O eu-lírico também percebe isso de certa forma, donde nasce o poema IX, onde a angústia do fracasso é atravessada pela ideia do tudo que já se fez. O tempo se torna uma busca perdida, como lá em Proust nós percebemos. No IX, perde-se a lógica do tempo cronológico para o tédio. Heráclito não é citado, mas sempre que se fala de rios e margens me lembro dele e de sua frase famosa de que não entramos no mesmo rio sendo os mesmos, algo do tipo.

No poema XII, o eu-lírico, pela angústia do pensar e a multiplicidade do agir, fica à margem do rio. “Deixa que eu, aqui parado,/ tenha o mundo em minha mão:/ feito de água e de chamado,/ mas vazio de intenção.” O eu-lírico aqui sabe que não pode coordenar permanência e impermanência. Estar à margem é, ainda, uma escolha, ele sabe. Daí que o vazio da intenção não é real, como também é ilusão um mundo feito de água nas mãos. Entre os dedos, o mundo lhe escapa, água que é. Mas isso não é dito, escapa pelas frestas da imagem construída pelos versos, escapa como o momento, o tempo, a leitura e o poema que acaba.

A dor de existir acumula-se no poema XV. No XVI, o dilema entre Parmênides e Heráclito é trazido e resolvido: a impermanência vence. No XVII, encontramos a “mentira desejável” como sinônimo do conceito de má-fé proposto por Sartre como a postura daqueles que preferem esconder-se atrás de desculpas e tarefas para fugir às responsabilidades que a liberdade impõe. E, como no quadro de Goya, “o sono da razão produz monstros”.

Fonte: https://artout.com.br/o-sono-da-razao-produz-monstros/

XX

Qualquer coisa no meu dia
pede a distração e o sono,
de tal modo que a vazia
apetência do abandono

se converte (sem que eu pense
nalgum modo de alcançá-la)
pouco a pouco num suspense
que me obriga a recusá-la.

Qualquer coisa de dormir
que me vem do dia certo
(em que tento desistir
do fardo de estar desperto)

se converte, onde eu me veja
incapaz de dirimi-la,
numa luz que me anegreja
sem que eu possa refleti-la.

Num eclipse proposto na linguagem do poema final, o eu-lírico manifesta a condição humana: nem num limbo, nem numa fresta cinzenta. Entre luz e sombra, o sono por “qualquer coisa no meu dia”. Viver é, por assim dizer, difícil quando se está desperto, ou seja, consciente da condição humana no mundo. O eu-lírico escolhe então o sono, como se na inconsciência pudesse fugir do mundo. Dorme por cansaço de pensar, dorme por medo de agir.

Dormir, no entanto, é também escolha. Não há fuga do escolher. Tudo está em ato.

Se a palavra cantada em Hesíodo tinha o poder de fazer o mundo e o tempo ressurgirem em vigor e perfeição, o poema no século XXI perde-se na interioridade humana. Resta ao homem o eco da própria voz, um corpo levado pela vida como folha carregada pelo vento e a escolha mais aguerrida ser pelo sono. Não pelo descanso do corpo e mente, mas como escape de uma realidade que não o aprisiona, mas que, como também as dores do mundo, cansa profundamente. Não por negar resposta, mas por apresentar tantas. O saber não ajuda. O conhecer, também não. Tudo inútil por não ter função essencial e, como seguem-se as questões existenciais: irrespondíveis.

Do vento que não me consola
nada que venha dizer.
Tudo é inútil. E saber
é poeira que nele rola

(trecho do poema VIII)

Mariana Belize

Projeto Literário Olho de Belize

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Mariana Belize

Doutoranda em Lit. Brasileira na UFRJ. Poeta e contista. Gosta do que escrevo? Então manda um pix pra mim.