(Des)abafar: quando voltamos a respirar

Mariana Farinas
4 min readJun 21, 2018

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A maneira mais comum em que a ventilação de um assunto é tapada, em uma relação próxima, é quando o assunto é impedido de se tornar uma realidade admitida e compartilhada.

A expressão “abafar o caso” significa disfarçar, ocultar, omitir algo que, por algum motivo, é considerado inconveniente. Esse termo é utilizado quando não se deseja a propagação de fofocas ou informações que podem acabar com a reputação de alguém. Mas e quando o que é inconveniente para uns é o que alguém tem necessidade que os outros saibam? E quando isso se dá em relações próximas e em nada tem a ver com abalar a reputação de alguém diante de terceiros? Aí quem fica abafado não é o caso, mas os sentimentos de alguém — e a própria pessoa.

“Como é difícil acordar calado
Se na calada da noite eu me dano
Quero lançar um grito desumano
Que é uma maneira de ser escutado”
— Chico Buarque

A maneira velada e mais comum de calar um assunto numa relação próxima é atrapalhando sua continuação. Seja pela falta de ajuda adequada para que o assunto se desenvolva (às vezes é necessário um incentivo para que temas mais delicados se manifestem), seja pela desconsideração daquilo que é o cerne do que é dito, a expressão tem seu progresso sabotado. Quem é interrompido ao manifestar algo importante pode inclusive, ter o fluxo de sua respiração alterado. A respiração pode sofrer uma pequena pausa diante do entrave ou, em situações mais intensas, pode ficar exasperada, com o peito arfando agoniado diante do bloqueio que parece, no desenrolar de uma conversa, cada vez mais intransponível.

“Encosta a tua cabecinha no meu ombro e chora
E conta logo a tua mágoa toda para mim
Quem chora no meu ombro eu juro que não vai embora, que não vai embora, que não vai embora”
— Almir Sater

O “abafo”, é uma diminuição da possibilidade de circulação do ar: o suspiro aliviado não vem, a respiração pode ficar curta ou o diafragma fica tenso, fazendo parecer que nem todo ar do mundo seria suficiente. O peito fica oprimido e a relação com a pessoa que contribui com o abafamento deixa de ser, neste momento, um espaço de crescimento. Não se pode crescer porque o abafamento significa que quem abafa não vive uma transformação a partir daquilo que estava sendo dito — e portanto, quem teve sua expressão abafada que procure outro lugar para se transformar.

O des-abafo ocorre quando existe a liberdade de dizer o que se pensa com franqueza. Essa liberdade se dá, comumente, quando se tem segurança de que o que for manifestado irá comover e modificar algo em quem ouve — ou quando a agonia e indiferença é tanta que não existe nada mais nada a perder. Por isso, geralmente escolhemos des-abafar com quem facilita para nós o momento de manifestar aquilo que nos oprime o peito. Escolhemos quem percebe o que estamos dizendo e entra conosco numa espécie de sintonia. É o tipo de pessoa que é capaz de se comover e ao mesmo tempo permanecer sereno, ou de se inflamar na medida necessária. É a presença nos dá coragem para não nos calarmos e, nos convidando de corpo inteiro a soltar a voz, o grito, o choro, nos faz lembrar desde a planta dos pés do nosso direito de sermos ouvidos.

“Deixa, deixa, deixa
Eu dizer o que penso dessa vida
Preciso de mais desabafar

Suportei meu sofrimento
De face mostrada, riso inteiro
Hoje canto o meu lamento
Coração cantou primeiro
Você não tem direito
De calar a minha boca
Afinal me dói no peito
Uma dor que não é pouca
Tenha dó”

A dificuldade ou impossibilidade de manifestar um sentimento difícil não é incomum em situações difíceis como decepção, luto e perda — não é a toa que na medicina chinesa problemas no pulmão estão relacionados à estas questões. Quando os sentimentos ficam abafados dentro do peito, há uma restrição de movimentos principalmente no tórax, cervical e boca. Essa contenção do movimento de forma crônica pode se dar quando uma pessoa não encontrou, ao longo da sua história, alguém que lhe facilitasse um bom choro do começo ao fim. E, não tendo tido essa referencia por tempo suficiente, ela desaprende a des-abafar mesmo sozinha, vivendo em constante estado de alerta. Além disso, pode também acabar selecionando para a sua vida justamente quem a cala — quando se está acostumado à um tipo de destrato, perde-se a referência do que é bom, pois os desconfortos que sinalizam o perigo sempre foi parte da vida.

Nos des-abafo finalmente descarregamos a contenção do peito, da garganta, da língua e da boca. O que estava abafado dentro do peito é lançado no mundo por meio de palavras, choros e soluços, liberando espaço para entrar ar novo. No des-abafo voltamos a respirar — afinal, não é expirando o que é velho e inspirando o que é novo que se respira?

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