Palavras sujas

Marina Legroski
18 min readOct 14, 2016

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(Tradução minha do original disponível aqui. )

O que faz dos palavrões tão ofensivos? Não é nem o significado, nem o som. Estariam estes componentes da língua nos distraindo?

Por Rebecca Roache (professora de Filosofia na Universidade de Londres e atualmente escrevendo um livro sobre palavrões. Mora em Oxfordshire.)

Em 2012, o jornal The Sun noticiou que o membro do parlamento britânico Andrew Mitchell, então um membro influente do governo da Grã-Bretanha, chamou um grupo de policiais de “plebeus de merda”. De acordo com a matéria, a polícia considerou prendê-lo, mas mudou de ideia. No caso do “plebgate” (como o incidente ficou conhecido), muitos jornalistas apontaram para um padrão duplo: Mitchell conseguiu escapar, mas, para a maioria de nós, prisões por desacato a policiais são bastante comuns. Essas prisões são feitas sob a Seção 5 da Lei da Ordem Pública [N.T. Artigo 331 do Código Penal Brasileiro.]. Pessoas enquadradas nessa lei podem ser punidas com uma pena fixada e a condenação pode resultar em uma multa. Usar linguagem ofensiva, parece, pode ser uma grande coisa. Mas por quê?

O dicionário on line da Editora da Universidade de Cambridge define “swearing” [N.T. Falar palavrões, mas também xingar, imprecar] como “linguagem rude ou ofensiva que alguém usa, especialmente quando está nervoso”. Pensar em xingamentos como “linguagem rude ou ofensiva” é um bom começo, mas muito impreciso para nossos propósitos. Para começar, “linguagem rude ou ofensiva” não precisa envolver palavrões. Eu sou rude ou ofensiva quando lhe digo que seu bebê é medonho, quando aceito um presente sem agradecer ou quando solto uma piada de mau gosto sobre morte quando você me conta que está com uma doença terminal. Algumas definições de palavrões tocam nesse assunto especificando que estes devem envolver linguagem tabu (isto é, proibida) –, mas nem isso é específico o suficiente. Tabus incluem não apenas palavras pantanosas, como as mencionadas acima, mas também outro tipo de palavras que não são meu foco aqui.

Uma categoria de palavras tabu que não são palavrões é formada pelas expressões e palavras de blasfêmia, impronunciáveis por certos grupos religiosos. Outra categoria são as politicamente incorretas: palavras que menosprezam grupos inteiros, frequentemente associadas a discursos de ódio. Insultando alguém assim — por exemplo, usando o termo “viado” –, você expressa desprezo não apenas à pessoa a quem se dirige, mas ao grupo inteiro ao qual ela pertence; nesse caso, homens homossexuais. Em contraste, ao gritar “vai se foder!” para alguém, você não expressa desprezo por ninguém além da pessoa a quem se dirige. A linha que divide xingamentos, palavrões e ofensas politicamente incorretas não é muito clara (nós entendemos “buceta” como um palavrão, mas algumas pessoas a consideram como sendo um termo tão ofensivo para as mulheres em geral que podemos considerá-lo um xingamento também). A linha entre palavrões e tabus religiosos é igualmente borrada: considere que nós podemos xingar usando a palavra “maldito”. Entretanto, existe um contraste tão grande entre esse xingamento e as categorias acima que faz valer a pena os separarmos quando consideramos os limites éticos.

Eu vou focar aqui nas palavras não ofensivas ou estigmatizantes de grupos específicos que, em inglês e em muitas outras línguas, têm, normalmente, uma temática sexual ou excretória. Assim, o que há de especial nessas palavras? O que as separa de outras áreas da língua?

Uma pista é dada pela segunda parte da definição do dicionário citada acima: a qualificação de que as pessoas xingam “especialmente quando estão nervosas”. Não é exatamente correto ligar palavrões unicamente à raiva, mas eles têm um papel especial em comunicar e expressar emoção. As expressões “Meu carro foi roubado!” e “Puta que pariu, meu carro foi roubado!” denotam a mesma coisa, mas a segunda também veicula um sentido de raiva, desespero e irritação graças à inclusão do palavrão. Como o linguista Geoofrey Nunberg assinalou, “palavrões não descrevem os sentimentos, eles o manifestam”. É seu papel único expressando emoções que separa o uso dos palavrões dos outros tipos de uso linguístico, incluindo outros tipos de linguagem tabu.

Esse papel psicológico único dá ao palavrão um papel linguístico também único. Suponha que ouçamos alguém exclamar “Vai se foder!” quando derrama chá no seu colo. Nós não conseguimos interpretar essa exclamação refletindo o significado literal das palavras, como faríamos se o falante tivesse dito “Vai comer!” ou “Vai se lavar!”. Alguém que diz “Vai se foder!” depois de derramar chá em si mesmo não está expressando o desejo de foder alguém, nem está instruindo uma outra pessoa a foder a si mesma. Para entender essa exclamação, precisamos considerar não ao que o falante está se referindo ou sobre o que está falando, mas o que ele quer indicar sobre as suas emoções. Isso faz dos palavrões, nessas circunstâncias, mais um grito do que uma sentença: assim como um grito, ele expressa emoções sem ser a respeito de nada.

Talvez isso explique porque palavrões fracassam em funcionar como outras palavras. Steven Pinker aponta que “fucking” não é um adjetivo porque, se fosse, “Drown the fucking cat!” [“afogue o gato fodido”] seria intercambiável com “Drown the cat which is fucking” [“afogue o gato que está fodendo”], assim como “Drown the lazy cat” [“afogue o gato preguiçoso”] é intercambiável com “Drown the cat which is lazy” [“afogue o gato que está com preguiça”].¹ Quang Phuc Dong — um pseudônimo boca suja do linguista James D. McCawley — pensa, por várias razões, que “Vai se foder!” não é um imperativo (isto é, uma ordem) como “Lave a louça”. Uma das razões é que, ao contrário de outros imperativos, “Vai se foder!” não pode ser juntado com outros imperativos em uma única oração. Podemos dizer “Lave a louça e varra o chão”, mas não podemos dizer “Lave a louça e vá se foder”. [N.T. Talvez isso soe mais aceitável em português brasileiro.] Nunberg sugere que “fucking” não é um advérbio como “muito” ou “extraordinariamente”, porque enquanto você pode dizer How brilliant was it? Very,’[“Quão brilhante isso foi? Muito”] and, ‘How brilliant was it? Extraordinarily,’ [“Quão brilhante isso foi? Extraordinariamente.”], você não pode dizer ‘How brilliant was it? Fucking.’ [Quão brilhante foi isso? Foda.²]

O filósofo Joel Feinberg notou que palavrões “adquirem sua força expressiva em virtude de uma tensão quase paradoxal entre um tabu poderoso e uma facilidade universal em desobedecer”. E, de fato, tanto no Reino Unido quando em muitas outras culturas, nós evitamos, censuramos e punimos palavrões. Isso é frequentemente feito de maneira informal: talvez a maneira mais eficaz de regular palavrões seja através da percepção de nossa atitude em relação a eles. Saber que enfrentaremos desaprovação dos outros se falarmos palavrões nos contextos errados assegura que prestemos atenção ao que estamos falando. Mas também existem esforços formais para policiar os palavrões: usá-los pode te mandar embora do emprego, ser multado, censurado e até mesmo preso. O tabu contra o uso dos palavrões é, parece, um assunto muito sério.

Uma pista de por que palavrões focam em tópicos tabus é o fato de que diferentes culturas dão pesos diferentes a temas tabu; por exemplo, em inglês, palavrões que blasfemam são relativamente raros — “maldito” e “Deus” [N.T. em expressões como “pelo amor de Deus”, acredito.] — e considerados até brandos cotidianamente. Mas, em outros lugares, a blasfêmia tem um papel muito maior. Talvez o exemplo mais notável seja o Francês do Quebec, em que os palavrões mais pesados são termos relacionados ao catolicismo: “tabernak” (tabernáculo), “criss” (Cristo), “baptême” (batismo), “calisse” (cálice), e “osti” (hóstia).

“Je m’en calisse” é equivalente a “Eu estou pouco me fodendo”. Essas expressões são consideradas mais fortes que os palavrões franceses tradicionais como “merde” (merda). Eles podem ser amplificados quando combinados, como em Mon tabernak j’vais te décalliser la yeule, calisse (grosseiramente, “Filho da puta, eu vou te foder pra caralho”), e Criss de calisse de tabernak d’osti de sacrament (expressão de raiva intraduzível).[N.T: Literalmente, algo como “Cristo do cálice do tabernáculo da hóstia do sacramento”, equivalente a algo como “Um caralho dum filho duma puta de merda”.]

Blasfemar tem um papel importante em muitas culturas religiosas, incluindo a italiana, romena, húngara e espanhola — mas algumas culturas seculares também consideram ofensivas as imprecações religiosas. Godverdomme (maldito) permanece sendo uma das expressões mais fortes em holandês.

Perkele (o nome de uma divindade pagã, agora equivalente ao significado de “o diabo”), Saatana (Satã), Jumalauta (literalmente, “Deus ajude”, mas usado similarmente ao inglês “goddamn”), e Helvetti (inferno) são todas formas comuns e poderosas para xingar em Finlandês. For fanden, For helvede, e For Satan (‘Pelo diabo/inferno/Satã) são expressões dinamarquesas largamente utilizadas; de maneira similar, fan (Satã), helvete (inferno), e jävla (derivado de djävul, que signinifica “diabo”) são expressões suecas comuns.

Enquanto o poder dos palavrões deriva de quebrar padrões, o fato de que os palavrões se refiram a tópicos tabu não explica porque o próprio ato de falar palavrões é considerado tabu

Alguns palavrões são caracterizados por tabus que se referem à hierarquia; especificamente, expressões de desrespeito a certos indivíduos, comumente à mãe da pessoa insultada. Exemplos incluem as expressões croatas Pička ti materina (“a buceta da tua mãe”) e Jebo ti pas mater (“um cachorro fodeu a tua mãe”); o filipino Putang-ina (“mãe-puta”); o romeno Futu-ți dumnezeii mă-tii (“Fodam-se os deuses da tua mãe”) e Futu morții mă-tii (“fodam-se os parentes mortos da tua mãe”); o espanhol “Me cago en la leche de tu madre (‘Eu cago no leite da tua mãe”), “Me cago en tu tia” (‘Eu cago na tua tia”), e Putamadre (literalmente, “mãe-puta”); o turco Ananı sikeyim (“Eu fodi sua mãe”); o mandarim 肏你祖宗十八代 (‘Fodam-se seus ancestrais até a 18ª geração”); e o coreano 당신의 어머니는 일본어 전함을 충족하기 위해 밖으로 수영 (“Sua mãe nadou até encontrar os navios de guerra japoneses”). A expressão “filho da puta” tem equivalentes em muitas outras línguas, como o francês (Fils de pute), alemão (Hurensohn), italiano (Figlio di troia, figlio di puttana), e turco (Orospu çocuğu); assim como ‘Motherfucker’ [literalmente, “fodedor de mãe”] (por exemplo, Mutterficker em alemão.)

Palavrões relacionados à hierarquia e à ancestralidade são menos comuns em inglês — exceto pelo “motherfucker” e o “son of a bitch” — mas a prática tem um pedigree histórico pomposo. A sequência depreciando a mãe a seguir aparece em Titus Andronicus³, de William Shakespeare:

Demétrio: Vilão, o que você fez?

Aarão: Aquilo que não pode ser desfeito.

Quirão: Você desfez a minha mãe!

Aarão: Vilão, eu “fiz” a tua mãe!

O japonês oferece o talvez mais notável exemplo de insultos relacionados à hierarquia. Uma das maneiras mais eficazes de ofender alguém no Japão é se referir a ele como てめ, que não é um palavrão, mas é uma forma muito depreciativa de dizer “você”.

Enquanto o poder dos palavrões deriva de quebrar padrões, o fato de que os palavrões refiram a tópicos tabu não explica porque o próprio ato de falar palavrões é considerado tabu. Existem, afinal de contas, formas inofensivas de se referir a tópicos sensíveis: podemos dizer “cocô” ou “fezes” ao invés de “merda”; “vagina” ao invés de “buceta”, e assim por diante. Apesar de as funções sexuais e excretórias serem tabu, nem todas as maneiras de se referir a elas são indecentes. Nós ainda precisamos de uma explicação sobre o que faz de “merda” mais ofensivo que “cocô”.

Alguns sugerem que o som dos palavrões contribui para sua ofensividade. Pinker nota que “imprecações tendem a usar sons que são percebidos como rápidos e ásperos” e Kate Warwick hipotetiza que a ofensividade peculiar de “cunt” [buceta] resulta de uma combinação entre o seu significado, “o som da palavra e a satisfação física de arremessar essa granada de mão verbal”. Existe alguma plausibilidade nisso. Tentar expressar raiva usando uma palavra cheia de sons gentis e macios — como as palavras whiffy e slushy [N.T. imagine “laminha” ou “xoxinho”, em português] — seriam o equivalente linguístico de tentar bater uma porta, furiosamente, com uma pistola de ar comprimido. Mesmo assim, o som dos palavrões não pode explicar completamente a sua ofensividade. Muitas palavras inofensivas podem soar “rápidas e ásperas”, e algumas tem significados benignos (considere “pica” e “rola”), ou soam idênticas a partes de palavras inofensivas (“porra” soa igual às duas primeiras sílabas de “porrada”).

De qualquer forma, focar nos palavrões descontextualizados não nos permitirá explicar completamente porque eles são ofensivos, porque a ofensividade do proferimento de um palavrão é relativo ao contexto histórico e social. Xingar em ao lado de um túmulo num funeral tem mais chances de ofender do que em uma multidão num jogo de futebol, e falar “maldito” tem menos chance de ofender atualmente do que muitas décadas atrás. Nós não podemos explicar tanta variação contextual na ofensividade dos palavrões olhando apenas para os traços que não variam com o contexto, como ao que eles referem e como soam. Devemos olhar além das palavras isoladamente, e considerar o contexto comportamental mais amplo em que elas aparecem.

Se fizermos isso, a explicação é mais fácil de ser encontrada. Nós temos, afinal de contas, todo o tipo de preferência sobre como as pessoas se comportam. Muitas dessas preferências são tidas em grande conta na nossa moral; outras são associadas à etiqueta. Etiqueta dita que nós seguramos o garfo na mão esquerda e a faca na mão direita, que nós tiramos o chapéu ao entrar em igrejas, que dizemos “obrigado” quando as pessoas são gentis conosco e assim por diante. Etiqueta varia com a cultura e a educação, e suas convenções são mais aplicadas em alguns cenários do que em outros. O fato de que desenvolvemos preferências por certos tipos de comportamento ao invés de outros, frequentemente por nenhuma razão aparente, torna previsível que vamos preferir algumas formas de comportamento linguístico. Falar palavrões é uma forma rejeitada desse comportamento.

Como saímos disso para uma explicação de por que falar palavrões é ofensivo? Bem, uma vez que temos estabelecidas nossas preferências sobre comportamento, a capacidade de um deles se tornar ofensivo emerge naturalmente. Para ilustrar isso, considere o seguinte cenário (baseado em uma série de eventos real e recorrente). Suponha que você faz uma nova amiga chamada Rebecca, mas sempre se dirige a ela como Raquel. Depois de você ter feito isso uma porção de vezes, Rebecca educadamente assinala que seu nome não é Raquel, e sim Rebecca. Se, depois que ela chamou a sua atenção para isso, você continuar chamando-a de Raquel, há chances de que ela comece a se irritar, e ela pode repetir o pedido (para que você a chame de Rebecca). Se você ignorar o pedido uma segunda ou terceira vez, então — desde que ela não tenha razão para acreditar que você não entendeu os pedidos e que você não é incapaz de cumpri-los — é provável que ela venha a entender esse seu comportamento como ofensivo. O que começou como uma forma de falar rejeitada (por Rebecca) se tornou, então, ofensiva.

Como isso acontece? Bem, a primeira vez que você chamou Rebecca de Raquel, Rebecca considerou que você cometeu um erro inocente e fortuito, e assumiu que você não estava fazendo por mal. Quando você continua a chamá-la de Raquel mesmo depois de ela ter lhe lembrado o seu nome, ela conclui que você está irracionalmente ignorando os desejos dela. E quando você persiste em chama-la de Raquel mesmo depois de várias correções sobre o fato de esse não ser o nome dela, é difícil evitar a conclusão de que você está deliberadamente usando uma forma inadequada de se referir a ela apenas para chateá-la. Mesmo que tenha começado assumindo que você não estava fazendo por mal, ela começa a ver sua atitude para com ela como hostil. E, de fato, é difícil imaginar como ela poderia estar enganada.

Neste exemplo, não encontramos a explicação para a ofensividade da expressão rejeitada olhando para a expressão em si. Não existe nada ofensivo no nome “Raquel”. Em vez disso, a expressão começa a ser ofensiva depois de ter sido filtrada por uma cadeia de inferências que o falante e os ouvintes fazem um sobre o outro e sobre as inferências uns dos outros. Em essência: você sabe que o nome da Rebecca não é Raquel, e você sabe que ela não gosta de ser chamada de Raquel, e mesmo assim você continua a chamá-la desse modo; Rebecca sabe que você sabe de tudo isso, e conclui, a partir desse seu comportamento, que você está sendo hostil em relação a ela; por sua vez, você reconhece tudo isso e mesmo assim persiste em chamá-la pelo nome errado; Rebecca percebe que você está fazendo isso e, então, se ofende. Vamos chamar esse meio, pelo qual a ofensividade de um comportamento rejeitado emerge desse tipo de inferências entre o falante e o ouvinte de “intensificação da ofensa”.

A intensificação da ofensa permite explicar como falar palavrões pode ser considerado ofensivo. A história começa com certas formas de falar sendo rejeitadas. Uma vez que essas preferências são estabelecidas dentro de uma comunidade de falantes, o conhecimento das pessoas sobre que determinadas expressões devem ser evitadas inevitavelmente os leva a inferir que, se eles usam uma expressão rejeitada, existem chances de que eles causem desconforto em seus ouvintes. E isso faz com que o uso de uma expressão rejeitada seja uma transgressão ainda maior: uma coisa é usar uma expressão malvista não intencionalmente; outra é usar uma expressão sabendo que ela é rejeitada, especialmente se nossos ouvintes sabem que sabemos que essa expressão é mal vista. Neste caso, mas não necessariamente naquele, nossos ouvintes têm boas razões para duvidar da nossa boa vontade e, consequentemente, eles se ofendem.

Precisamos adicionar algo a essa história da intensificação da ofensa para explicar como as palavras se tornam palavrões. Como eu sublinhei, a intensificação da ofensa permite qualquer palavra se tornar ofensiva, pelo menos para alguém, desde que envolva uma palavra que desagrade o ouvinte. Como vimos no exemplo Rebecca/Raquel, mesmo um nome perfeitamente respeitável pode se tornar ofensivo quando usado de determinada forma. Entretanto, palavrões não são meramente palavras das quais não gostamos e que subsequentemente se tornaram ofensivas por um processo de intensificação da ofensa. Afinal de contas, “Raquel” não é um palavrão, mesmo no contexto descrito acima. Além de serem malvistos, palavrões também compartilham certas características, como seu foco em tópicos tabu, como sexo e excreções. Como notamos, elas também soam de determinada maneira. A intensificação da ofensa não explica porque são palavras tabu, com determinados sons, ao invés de outro tipo de palavras, que se tornam palavrões.

O som “rápido e áspero” dos palavrões possivelmente adiciona drama à emoção de quebrar um tabu

De fato, palavrões serem focados em tabu serve perfeitamente à história da intensificação da ofensa. Para um falante começar o processo de aumentar a ofensividade da palavra, ele precisa usar uma expressão que sabe que irá desagradar seu ouvinte. Como ele poderia fazer isso? Bem, se ele conhece seu ouvinte bem o suficiente para saber de que tipos de proferimento ele não irá gostar, seu trabalho é fácil, e será simples achar um caminho para ofendê-lo. Por exemplo, se o ouvinte é sensível ao fato de estar perdendo cabelo, o falante pode chamá-lo de “careca”. Mas, e se o falante não souber nada a respeito das preferências do ouvinte? Ou, e se o falante estiver se dirigindo a uma audiência com várias pessoas e várias preferências? Ele poderia ofender nessas circunstâncias? A existência de tabus diz que a resposta é “sim”.

Desde que o falante e a audiência reconheçam os mesmos tabus — o que é mais provável se eles pertencerem à mesma cultura e falarem a mesma língua — o falante sabe alguma coisa sobre quais expressões irão desagradar seus ouvintes. Ele sabe que sua audiência vai considerar desagradáveis as formas mais rejeitadas de se referir a tabus. E a sua audiência saberá que ela sabe que eles acham essas referências desagradáveis. Isso permite que o processo de enriquecimento da ofensa surja. Além disso, ele permite que isso aconteça em larga escala, e muito mais rápido que o exemplo Rebeca/Raquel descrito acima: uma vez que as preferências são (e são conhecidas por ser) muito difundidas dentro de uma cultura, uma pessoa pode aborrecer uma grande quantidade pessoas de uma vez só com uma simples menção a um tabu. E, ao contrário do caso Rebecca/Raquel, ninguém precisa apontar que uma dada expressão (tabu) é inapropriada, uma vez que todo mundo vai considerar que o falante já sabe disso.

A existência de tabus amplamente reconhecidos, então, oferece um caminho rápido para certas expressões se tornarem largamente ofensivas. E também dá uma certa motivação para isso acontecer: quebrar tabus largamente reconhecidos pode ser excitante (ao contrário de chamar pessoas pelo nome errado). Às vezes, chocar pessoas pode ser divertido. Talvez isso ajude a explicar porque palavrões tendem a soar de certa maneira: o som “rápido e áspero” dos palavrões pode não ser o suficiente para explicar a sua ofensividade, mas ele provavelmente adiciona drama à excitação da quebra do tabu, então não deve ser surpreendente que um som ardente que faça referência a tabu esteja determinado a se tornar um palavrão.

Por outro lado, palavrões são mais do que palavras universalmente ofensivas dentro de determinada cultura. Palavras politicamente incorretas também caberiam nessa descrição. Parece possível que estas expressões, assim como os palavrões, se intensifiquem através de um processo, ainda que eles sejam diferentes dos palavrões no sentido que eles expressam desprezo a um determinado grupo. Por que algumas palavras se tornam preconceituosas enquanto outras se tornam palavrões?

Eu acredito que a resposta resida no fato de que o uso de palavras menos preferidas é tomado pelo falante e pelo ouvinte como certo. Que “foda” se intensifique até ser um palavrão pode ser atribuído ao fato de que o ouvinte tome o falante que fala “foda” como insensível à sua antipatia pela palavra. O fato de que “crioulo” seja considerada uma palavra preconceituosa pode ser atribuído a uma coisa um pouco diferente: que o ouvinte reconheça o que o falante deseja, através do uso desta palavra, transmitir seu desprezo do povo negro/preto. Nós devemos também adicionar — como os filósofos que falam sobre estas palavras fazem às vezes — que, usando uma palavra pejorativa, um falante tenta fazer a sua audiência ser cúmplice de seu desprezo, assinalando que ela acredita estar entre pessoas que compartilham desse preconceito. Isso, também, é ofensivo para uma audiência que não pensa da mesma forma e se sente insultada por ter sido considerada assim. Nós podemos ver a intensificação da ofensa de maneira similar tanto em palavras que expressam preconceitos quando em palavrões — ambos envolvem conhecimento de mundo compartilhado entre o falante e o ouvinte sobre o fato de que a palavra é malvista –, mas, no caso dos palavrões, a ofensa emerge meramente do conhecimento de que a palavra é malvista (e, portanto, o falante sabe que é inapropriado escolhê-la), enquanto que no caso das palavras que expressam preconceito emerge também pelo conhecimento de que o falante almeja comunicar ao seu ouvinte uma atitude em relação a determinado grupo e talvez também por assumir que sua audiência compartilha dessa atitude.

Falar palavrões, então, é ofensivo não por causa de algum ingrediente mágico que eles possuem e as outras palavras não, mas porque quando os falamos, nossos ouvintes sabem que nós estamos fazendo isso sabendo que eles acharão ofensivo. Essa é a razão pela qual o contexto é importante: existem alguns contextos nos quais nós sabemos que não vamos ofender falando palavrões, e, então, o conhecimento de nossos ouvintes de que fizemos isso sem querer ofender ajuda a assegurar que eles não ficarão ofendidos. Isso explica porque nós somos mais tolerantes com palavrões de pessoas não fluentes na nossa língua, como crianças pequenas e falantes não nativos, do que somos com os falantes competentes. Quando os não fluentes falam palavrões, geralmente não suspeitamos de que eles sabem que essas palavras são ofensivas. Consequentemente, somos menos suscetíveis a nos ofendermos.

Você pode achar rude minha recusa em agradecer por sua boa ação, mas provavelmente não a considerará moralmente suspeita

A intensificação da ofensa ajuda a explicar por que alguns palavrões são mais ofensivos que outros: por exemplo, porque “buceta” é mais ofensivo que “merda”. Inicialmente, uma é mais rejeitada que a outra. Qualquer um que perceba isso, e que imagina que sua audiência também percebe isso, comete uma grande transgressão escolhendo dizer “buceta” ao invés de “merda”. E nós sabemos que isso, por si só, magnifica a ofensividade de uma palavra em relação à outra. Quanto mais fortes as regras contra usar determinada expressão, maior a ofensividade em se usar aquela expressão. Por sua vez, quanto maior a ofensividade de uma expressão particular, mais fortes serão as regras contra o uso dela. A ofensividade do palavrão se retroalimenta.

O que isso nos diz sobre a moralidade de falar ou não palavrões? É útil, mais uma vez, fazer a comparação com as violações de regras de etiqueta. Uma vez que é preferível não aborrecer as pessoas quando podemos evitar fazer isso facilmente, nós temos algumas razões para não falar palavrões em contextos onde é mais provável que iremos ofender. O mesmo vale para regras de etiqueta. Mesmo assim, na maioria dos casos, nós tendemos a ver violações de etiqueta não como imorais, mesmo quando elas ofendem. Você pode achar rude minha recusa em agradecer sua boa ação, mas provavelmente não a considerará moralmente suspeita. Você pode fazer um julgamento semelhante quando eu falo um palavrão no decorrer de uma conversa educada.

Isso não é para dizer que falar palavrões, ou violar as regras de etiqueta, de alguma outra forma, nunca é imoral. Nós podemos imaginar situações em que quebrar a etiqueta — por falar palavrões inapropriadamente, se referir a uma pessoa de forma muito íntima, se recusar a aderir um código de vestimenta, falhar em dizer “por favor” e “obrigada”, e assim por diante — pode causar aborrecimentos, e nós podemos imaginar situações onde isso possa ser moralmente errado. Essas situações podem envolver menosprezar, ofender, ameaçar, intimidar, provocar e assim por diante. Mas a maioria dos casos de quebra de etiqueta — incluindo a maior parte dos casos de palavrões — não são assim. Com isso em mente, alguns dos nossos esforços para punir e evitar palavrões — assim como a prisão sob o Código Penal — parecem extremamente draconianas. Falar palavrões pode ser censurável, mas raramente é imoral.

¹ N.T. Em português, temos observado alguns palavrões funcionando como advérbio de intensidade, mas ainda assim não carregando seu sentido literal.

² N.T. As traduções são mais imprecisas aqui porque, neste trecho, a autora brinca com a distribuição das palavras na sentença. A ideia é que você pode dizer algo como “isso foi muito brilhante” e segmentar o “muito” em outra sentença, como em “Quão brilhante isso foi? Muito”. Aparentemente, isso não funciona com o “fucking”, em inglês. Em português brasileiro, um exemplo correlato seria o “puta” como intensificador (“Isso é uma puta ideia” x *“Quão boa é essa ideia? Puta!” ); por outro lado, funciona um pouco melhor com “pra caralho” (“Isso é brilhante pra caralho” x “Quão brilhante isso foi? Pra caralho!”).

³Aqui a tradução é nossa, apesar de haver traduções em português. Quis manter o trocadilho com o tema em questão.

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