Mário Moura
16 min readJan 5, 2016

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2015: não uma lista mas sobretudo histórias

Do que mais gostei em 2015, não consigo fazer uma lista. Nem quero. Seria uma contradição. Uma lista isola uns tantos elementos num plano abstracto, num vazio (caso existisse, seria ao xadrez cinza e branco, como o fundo sobre o qual se manipulam imagens no photoshop). Das relações entre esses elementos fica muito pouco. Às vezes, tudo o que têm em comum é terem aparecido no mesmo ano. Ou serem escolhidos pela mesma pessoa. Ou estarem na mesma lista. Diz-se que são os “melhores”, os “mais fracos”, os “mais belos”, os “mais feios”. Ou (pior ainda) que são “livros”, que são “filmes”. E dentro destes que são “não-ficção”, “documentário” ou (mesmo mau) “docuficção”, “cinema do real”, etc.

2015 foi o ano das coisas que não encaixam bem, que transbordam das listas, que, mesmo separadas pela abstracção da lista, se atraem e se fundem. Não adianta classificá-los ou inventar-lhes nomes porque não colam, porque soam a pouco. O que interessa são objectos que, pelo contrário, agarram em listas e as transformam em histórias. O que dizia Miguel Gomes ao começo de um desses objectos, as suas 1001 Noites? Logo antes de desatar a fugir. Quando se angustiava com a impossibilidade de juntar a história do fecho dos estaleiros de Viana à de um homenzinho que exterminava vespas asiáticas. “Sou burro e a abstração dá-me vertigens.”

Contra a abstracção das listas, contam-se histórias. Contra as listas de fim de ano, contra as listas de espera, contra as listas de devedores, de desempregados, de emigrantes, de empresas do PSI-20, contra todas as listas. Usa-se o Excel como se fosse o Word ou o Paint. Desfazem-se as listas, desenhando bonecos a Bic nas margens, acrescentando verbos, tornando itens em nomes, bullet points em desenhos grosseiros de buracos de bala com um BANG! ao lado. Deslizando a caneta entre as palavras como num labirinto. Só assim se consegue juntar a notícia de um galo processado por cantar demais à de uma série de incêndios ateados por amor. Ou se percebe que a juíza chora porque não há limites claros para a justiça, que um crime leva a outro, que o inquilino vende a mobília porque o senhorio foi enfeitiçado pelo banqueiro com a ajuda de um génio. No tribunal de Miguel Gomes, vai-se percebendo a pouco e pouco que o público não está ali como figurante mas como parte de uma absurda cadeia de crimes. Não há ali espectadores. Não há ninguém que cumpra a lei dentro daquele tribunal que se estende ao país inteiro. Não há ninguém que fique de fora. Mesmo o maior “filho da puta” do filme, Simão “Sem Tripas”, que matou a sua mulher e está a monte, paga os seus sumos de fruta, distribui dinheiro pelas crianças, visita a família. Não admira que os escuteiros o aclamem, quando finalmente se entrega à justiça. Nem ele, o pior dos criminosos, chega bem a ser um marginal. Não se enganem, achando que este é um filme português como tantos outros, sobre a “marginalidade” ou sobre o “portugal profundo”. Todo ele foi feito a partir de notícias que apareceram nos jornais. Não há aqui nenhum segredo a desvendar. Reparem: há uma história sobre as negociações entre o Governo e a Troika, há outra sobre um banho de Ano Novo. Podia ser um telejornal. Não há, portanto, nada de menos marginal. Está tudo à vista. Todos os dias, à hora do costume.

Não se confunda o cinema de Miguel Gomes com toda essa ficção fácil, todo o filme ou novela de bairro social ou do interior do país, que se resume quase sempre a formas de romantizar a pobreza e a exclusão em nome da “autenticidade”, dos “problemas a sério”, das “vidas mais lixadas do que as nossas”. O gajo com um carro e uma máquina de filmar à procura de “cenas fodidas” para lhes pôr um nome de banda sonora em cima é uma praga tão grande como os hostels, os resorts, os turismos rurais com relvado e piscina. E o pior é que não percebem que são a nova burguesia: pensam que ter uma conta no facebook ou no instagram, preferir a Uber aos Taxis, pendurar uma bicicleta acima do sofá, os iliba de serem da classe média. Andam à procura de marginalidade e pertencem sem o saber à classe mais camuflada de Portugal e do mundo. Escondida à vista de todos, até da sua própria.

O tradicional recato burguês, o seu pudor público — não ofender, não ostentar, não provocar invejas — torna-se numa nova vergonha, mascarada por uma película breve de criatividade. Na velha burguesia havia um protestantismo transformado em ética laboral, na nova há uma doutrina da criatividade, da inovação, da felicidade organizada — onde havia pregadores, êxtases e baptismos, agora há TedX, Pecha Kuchas, spas, Crossfits e triatlos. A modéstia social virou-se do avesso: onde antes se escondia a riqueza, agora esconde-se a pobreza. Não se falava de dinheiro porque podia parecer demais, agora a vergonha é parecer de menos. O novo burguês esconde o trabalho que não foi pago, porque pode incompatibilizá-lo com quem lhe dá a “oportunidade” mas também porque não quer parecer ingénuo. Na verdade, esta nova burguesia é apenas o resultado da massificação extrema da própria ideia da burguesia, enquanto projecto de vida, enquanto ética, enquanto estética, enquanto nostalgia, etc. Há um aburguesamento total de classes que antes seriam consideradas subalternas. Até o desempregado se torna num potencial burguês, recebendo para isso formação no centro de emprego sobre montar o seu pequeno negócio, que é como quem diz “pedir financiamento”, que é como quem diz “endividar-se . Para se receber um subsídio de desemprego para o qual se descontou, recebem-se portanto aulas de endividamento. Depois, investe-se em algo que só não é uma tasca, um snack-bar, uma barbearia, uma pensão ou um taxi, porque tem um logo, um conceito e uma app. Olhando de olhos semicerrados para a Nova Economia não é fácil distingui-la da velha.

Não falar de dinheiro é a coesão social desta nova classe média. Permite aos que recebem muito, pouco ou nada interagirem sem demasiado rancor. Sucesso ou insucesso, nunca se sabe muito bem o que estamos a ver. Um exemplo: no mundo da arte contemporânea, tal como no facebook ou na imprensa por altura do Ano Novo, também tudo se organiza em torno das listas. Três ou quatro vezes por ano, anunciam-se listas de nomeados para prémios com o nome de um banco falido, de uma empresa pública privatizada, de um grande conglomerado, etc. De entre eles, escolhe-se um vencedor. É assim que se vai decidindo o topo das artes em Portugal. Tudo o resto se angustia porque não pertence, porque não foi escolhido, porquê eles e não eu. Mas ao topo, a angústia é quase a mesma. É comum expor-se em grandes instituições e não receber um tostão por isso. Com sorte, recebe-se os custos de produção, a estadia e as refeições. No fim, se houver catálogo, pode-se levar uns tantos. E é raro falar-se disto porque (lá está) esta nova vergonha — “ se calhar nunca mais nos convidam” ou “se calhar percebem que trabalhamos de graça.” Pouca gente se queixa, embora a precariedade seja um tema recorrente, tal como a marginalidade, a crise, etc. Fala-se de uma classe média envergonhadamente empobrecida; as artes também lá estão. É a pobreza envergonhada que indicia a sua pertença à nova burguesia.

São raras as ocasiões em que essa nova classe envergonhada se representa a si mesma. João Nicolau conseguiu fazê-lo em Rapace, um filme que vai fazer dez anos em 2016. O protagonista vive num bairro que o define e ao mesmo tempo oprime, cumpre os seus dias como um ritual enfadado e claustrofóbico, troca ironias com os amigos, escreve um rap onde descreve com sarcasmo o dia-a-dia da vizinhança. Resumido deste modo, poderia ser um filme de Joaquim Leitão, de João Salaviza ou até de Pedro Costa. A diferença é que isto não são as Fontainhas, o Bairro Padre Cruz ou a Reboleira. O bairro é Telheiras, reduto suburbano da classe média; o rapper, o rap ace do título, procrastina o mestrado no sofá, atormenta a mulher-a-dias porque esta insiste em reprovar-lhe a passividade e o trata por “menino”. É um objecto raro por representar o modo de vida, a identidade em bruto de quem o fez — classe média suburbana, intelectual e sem grandes tragédias ou epifanias. É mais habitual um cineasta encenar-se a si mesmo reagindo a um sítio novo, a um novo contexto social, reclamando melhor ou pior uma nova identidade numa realidade que é nova para ele — um esquema onde encaixam todos os documentários, todos os portugáis profundos e todos os dramas de “linha de coca e alguidar”. Filma-se e escreve-se e arranjam-se coisas em salas brancas para fugir às origens. Para sair finalmente da casa dos paizinhos. Quase sempre em vão.

Em 2015, em Portugal, não houve muita coisa que contrariasse a tendência. Uma excepção: Zombie, e a bd de Marco Mendes em geral. O que gosto nas suas histórias não é nenhuma exaltação da marginalidade, mas o facto de ele próprio não se colocar do lado de fora das histórias: dá aulas numa faculdade, vive (ou vivia) numa casa a cair de velha, viaja, sai, vê filmes, visita os pais. Desenha retratos dos amigos, sentados num sofá, dormindo ou olhando em frente como se estivessem a ver televisão. Às vezes o que dizem fica registado num balão de fala esboçado, cheio de rasuras. São artistas, professores, estudantes, emigrantes, imigrantes, quase todos precários, quase todos a viverem num lusco fusco social. Não há muitas representações disso dentro da cultura portuguesa.

Não seria difícil. No cinema americano, o mumblecore tem representado o mesmo tipo de identidade. No cinema português, Miguel Gomes e João Nicolau também o fazem. Mas não se vê a mesma capacidade na arte contemporânea ou literatura portuguesa, que tende à abstração e à recuperação de esquemas modernistas de narração — a escola Gonçalo M. Tavares — ou então à literatura e jornalismo de viagem, que só muito raramente não se limita a ser um registo reactivo de toda a circulação global inconsequente, uma prosa AirBnB, Ryan Air, TripAdvisor, onde entra tudo, desde as crónicas de Alexandra Lucas Coelho ou Válter Hugo Mãe até à crítica dos enviados à última bienal ou festival de cinema. O problema não está necessariamente nos artistas ou nos críticos mas na escassez dos formatos e abordagens. Ler um suplemento cultural é cada vez mais repetitivo, nos nomes, nos temas, na prosa. Não há problema nenhum com Gonçalo M. Tavares, Siza Vieira, Pedro Costa ou os Sonic Youth, mas apanhar todas as semanas com mais outra entrevista, recensão ou destaque é cansativo. Parece que estamos presos a ler o jornal no Dia da Marmota. Mesmo por comparação com o comentário político ou até o jornalismo em geral, o que se mostra e reflecte sobre a cultura em Portugal é mínimo, residual. Tende-se a insistir no sucesso esquecendo tudo o que fica imediatamente abaixo dele e esquecendo que, em Portugal, nem o sucesso é particularmente bem sucedido. Veja-se o que já dizíamos atrás sobre os artistas “bem sucedidos” que não recebem um tostão. Leia-se as notícias sobre a abertura de galerias low cost por curadores de topo como Delfim Sardo, onde se pode comprar arte pelo preço de um par de peúgas e um cachecol. O meio cultural português não tem estratosferas.

Por contraste, uma das melhores surpresas do ano foi aquilo a que chamo a Nova Escrita sobre Arte, um fenómeno para já americano. Tomei conhecimento dela no começo de 2015, através de dois livros, The Miraculous, de Raphael Rubinstein, publicado pela imprescindível Paper Monument, e How to Write About Contemporary Art, de Gilda Williams. O primeiro é realmente milagroso. Consiste apenas na descrição de peças de arte sem qualquer referência a nomes de artista, curadores instituições ou tendências. Ou seja: é escrita sobre arte feita à revelia de tudo o que se considera ser as suas características essenciais. Quebra todas as regras habituais. E funciona. Por comparação, a maioria da crítica ou das folhas de sala parece velha e empertigada. How to Write About Contemporary Art tem a aparência despretenciosa de um manual cheio de dicas e exemplos, apresentados de modo acessível e claro. (E na verdade, é.) À superfície, trata-se apenas de clarificar o estilo mas o que se muda realmente é a própria substância da escrita. Abandona-se a prosa carregada da Teoria francesa, de Rosalind Krauss ou de Hal Foster e tenta-se algo mais luminoso e fluente. Sai-se do formato científico e experimentam-se outras coisas, mais descontraídas, mais soltas, mais entusiasmadas.

Porque não escrever, por exemplo, ficção sobre arte como Katrina Palmer em The Dark Object? Aqui está um livro notável de 2010 (só o li este ano) sobre o único aluno de uma escola de arte onde a produção de objectos foi proibida e portanto se refugia na escrita de uma sucessão de narrativas. Na mais cómica, Slavoj Žižek tenta abandonar em vão o seu gabinete ao fim do dia até acabar preso pela barriga numa janela de guilhotina. Em 2015, entretive-me a ler um não acabar de abordagens inventivas à escrita sobre arte, política e cultura. Insisto aqui de novo nas edições da Paper Monument, na própria revista que só durou quatro números mas também no livrito I Like Your Work: Art and Etiquette, um conjunto de inquéritos a artistas, comissários e outros agentes sobre o que consideram ser as boas maneiras e regras não escritas do mundo da arte. Esperava anedotas e gafes mas, surpreendentemente, o que fica não são piadolas fáceis e má língua, mas rituais de iniciação, histórias de como jovens artistas inseguros tomavam contacto pela primeira vez com o mundo da arte. A Nova Escrita sobre Arte agarrava assim em ideias básicas e quase adolescentes: o que seria fazer uma espécie de Pepsi Challenge à arte (The Miraculous) ou pôr as pessoas a falar de rituais subentendidos de etiqueta social mas só raramente descritos (I Like Your Work), e tratando essas premissas com delicadeza conseguia resultados de uma poesia e humanidade inesperadas.

Este ano fui a Nova Iorque visitar amigos e amigos de amigos, quase todos artistas. Ver a cidade pela primeira vez. Sempre pensei que o tom de lusco fusco outonal que lhe via nos filmes derivava de um filtro qualquer de imagem, uma particularidade da película ou uma preferência por recolher imagens ao fim da tarde. Na verdade, é quase toda construída com materiais de tons quentes, de tijolo, de pedra, tintas castanhas e ocre, entremeada com grandes paredes de vidro quase camufladas por reflectirem o que as rodeia. A minha primeira impressão da ilha de Manhattan, a chegar de New Jersey pelo meio dos cemitérios rasos, do arame farpado das prisões, foi a de uma escultura maciça de formas geométricas castanhas e cinza azulado a desfazerem-se entre as nuvens baixas e as abertas. Lá dentro, entre museus, galerias, diners e parques, era mais barato comprar um livro — novo, antigo ou raro — do que comer. Um café nunca andava mais baixo que três, quatro dólares. Um cupcake, com gorjeta incluída, andava pelos seis. Uma garrafa de vinho barato andava pelos dez, onze. Um livro custava mais ou menos o mesmo e as livrarias estavam cheias de coisas boas. A Strand tinha um andar inteiro, pé-direito duplo só para livros raros e primeiras edições. Foi em Nova Iorque que comprei e li I Love Your Work, apercebendo-me que cumpria muitos dos rituais descritos no livro enquanto visitava galerias, ou enquanto uma artista me guiava numa visita ao seu estúdio, comentando pacientemente o seu portfolio. Quase todas as conversas eram sobre arte, design, empregos ou casas. Toda a gente comentava com um ar perplexo a gentrificação rápida, o preço absurdo de apartamentos e espaços minúsculos, a procura de casas acessíveis sempre um pouco mais longe, em sítios considerados inóspitos ou perigosos há um ou dois meses. Enumerava-se a pior casa e a melhor casa onde se viveu, em termos de preço, de localização e depois debatia-se as inevitáveis divisões, quem ficava com o melhor quarto ou com o espaço absurdo, o armário, o estrado pendurado por cima da sala, o corredor.

Toda a gente tinha meia dúzia de empregos a correrem em paralelo, compartimentados em alturas do dia, da semana, do mês ou do ano. Trabalhavam em galerias, fábricas, davam aulas, concebiam cenários para teatros, recuperavam motas antigas, penduravam posters em casa de gente famosa, faziam house-sitting para artistas bem sucedidos que mantinham um apartamento em Manhattan. Diziam que tudo isto eram os “fake jobs” — o verdadeiro emprego seria a arte. Longe da ideia do artista como um boémio marginalizado, percebia-se que estas pessoas quotidianamente eficientes e ambiciosas como eu nunca tinha visto estavam encrastadas na economia da cidade. Assistentes, produtores, art handlers, mas também mecânicos, picheleiros ou mordomos para uma economia do luxo e do bom gosto. No fundo, eram uma nova versão do exército de criados e funcionários que se descrevia em histórias como Downton Abbey. As competências que um artista precisava para trepar na sua carreira em Nova Iorque acabavam por ser as mesmas que a ilha precisa para funcionar.

Não se tratava de artistas ou actores falhados que acabavam por ter que fazer outra coisa enquanto se iludiam mas de gente que fazia tudo, ao mesmo tempo, sempre, nem tanto um malabarismo como uma coreografia permanente. É essa a imagem que se tem de Nova Iorque — “if you make it there, you make it anywhere” — mas a coreografia muda com os anos. Percebe-se isso em toda a onda de nostalgia pela década de 1970, as biografias de Patti Smith ou de Richard Hell. São memórias de uma cidade onde também se lutava para sobreviver mas que era radicalmente diferente, perigosa, desesperada, antes de se gentrificar, o que significa apenas que se tornou extrema de um outro modo. A música, o cinema e a violência da década de 70 compunham uma atmosfera comum que tanto os muito ricos como os muito pobres respiravam. Agora, a desigualdade é imensa, ao ponto de ser praticamente impossível sobreviver mesmo com um emprego. Veja-se o caso dos chamados “sem abrigo invisíveis” de Nova Iorque, gente como Mark Reay, fotógrafo de moda (street style e backstage), modelo e actor, que ainda assim não consegue dinheiro para pagar renda (pelas suas contas gasta 1200 a 1500 dólares por mês), dorme num telhado e muda-se para o seu “disfarce de homem bem vestido” em casas de banho públicas e vestuários de ginásio. Reay foi o tema de um documentário, Homme:Less (Thomas Wirthensohn, 2014). Especula-se que há muitos mais “sem abrigo invisíveis” como ele.

Pela cidade, as memórias da pobreza de outros tempos estão por todo o lado, imagens granulosas de Patti Smith a arrastar um Robert Mapplethorpe doente até ao Chelsea Hotel, o Taxi Driver de Scorsese, os gangues documentados por Herbert Asbury e Jacob Riis. Mas a representação da nova precariedade é algo mais raro mas ainda assim presente: Frances Ha (2012), por exemplo, ou o menos interessante Mistress America (2015), os dois de Noah Baumbach. Em ambos, Greta Gerwig é uma jovem a viver abaixo de grandes expectativas mas acima dos meios através de um sem fim de expedientes. Entre a boémia esquálida de Patti Smith e o frenesim dos sete instrumentos das personagens de Baumbach não há quase nada em comum excepto o cenário de fundo. A pobreza dos punks e dos gangs foi refogada durante anos até se caramelizar, até servir ela própria de papel de parede, de decoração à gentrificação e depois à financeirização acelerada, quando quarteirões inteiros são comprados para investimento e permanecem desabitados, excepto pelos artistas que servem de caseiros aos donos ricos, e mesmo as lojas do rés-do-chão acabam por ser expulsas pelas rendas altas. Quarteirões de luxo um andar acima de ruas entaipadas e devolutas.

Nova Iorque é mais parecida com Portugal em crise do que se pensa. A maior diferença é a capacidade dessa cidade para se verbalizar, para produzir uma narrativa sobre tudo e sobre nada. Têm um jornalismo sedento de novidade, onde um novo restaurante, uma nova sobremesa, uma maneira de entalar a camisa se elevam facilmente a uma tendência, a um estilo, ou a um movimento, seguidos e reinterpretados em todo o mundo. Essa capacidade de auto-reflexão e de mitificação quase não existe por estas bandas, mas é possível olhar para lá e tirar lições, ver paralelos, fazer contrastes. Por aqui, há um culto maior do indivíduo, do herói, do caso único. Onde na América se vêem tendências, aqui hesita-se em estabelecer paralelos, fala-se de singularidades, acha-se que generalizar é sempre mau, mesmo quando é o processo habitual para propor padrões, para comparar. A nossa abstracção (as nossas listas) são de nomes próprios, nunca de nomes colectivos. Quando Mariana Silva, por exemplo, ganhou o prémio Edp era bastante visível pela descrição do seu trabalho que este se aproximava das tendências da Post Internet Art (encenações sobre o espaço expositivo mediado pelas novas tecnologias) resistiu-se a enumerar estas filiações. Enquanto na crítica internacional se inventam tendências por tudo e por nada (a já referida Post Internet Art, Zombie Formalism, etc.) por aqui será bastante difícil nomear ou até especular sem alguma reflexão qual a tendência de um artista estabelecido como Rui Chafes, por exemplo. Poder-se-ia dizer o mesmo da maioria dos artistas, cineastas, escritores ou arquitectos em Portugal. Se há uns trinta anos ainda se podia arriscar que Souto Moura ou Siza eram pós-modernos, ou racionalistas, ou enquadráveis no regionalismo crítico, agora é mais comum arrumá-los de acordo com o seu estatuto, ou os seus prémios — se é um starchitect, se ganhou um Pritzker ou tal concurso. Fala-se de classes de pessoas e não de estilos.

É esta incapacidade de abstrair as coisas excepto em termos de génio, de singularidade, de talento individual que leva a todas as acusações caricatas de plágio que houve ao longo do último ano — a mais caricata de todas a que confrontou a imagem da Câmara do Porto com uma semelhante produzida em Berlim, que rapidamente se alastrou à de uma escola de design em Praga e a inúmeros projectos semelhantes no Behance. Em vez de se olhar para estratégias de composição semelhantes numa mesma época, concluindo que se tratava de um estilo comum, as coisas rapidamente se crisparam, assumindo um plágio. Talvez seja este o melhor símbolo de uma sociedade profundamente individualista mas que tende a produzir apenas um único tipo de indivíduo — falo como é evidente da sociedade neoliberal e do empreendedor.

Contra esta tendência de ver as pessoas e as experiências como ilhas, foi-me fundamental ler The Contemporaries: Travels in the 21st Century Art-World, de Roger White, um editor ligado à Paper Monument. White dedica o seu livro a estudantes, professores, assistentes de artistas, cenas de arte periféricas e artistas descobertos tarde na vida, tudo categorias habitualmente ignoradas, subalternas, embora omnipresentes. O mérito do livro não é tanto a teoria, mas simplesmente a descrição, a troca de anedotas, de maneirismos, de situações corriqueiras mas raras sobre a página impressa. Trata do submundo do mundo da arte que, paradoxalmente, é aquilo que está mais à vista. Trata esse meio, não como Cultura com C grande, mas como uma subcultura, o que lhe dá uma humanidade e uma textura bem mais interessantes. Em Portugal, onde provavelmente nunca houve tanta gente a dedicar a sua vida à cultura, tanto como produtores como enquanto público, insiste-se em usar os jornais como um filtro rarefeito míope que resume a sua função a uma espécie de creditação, de ir carimbando o que se considera incontornável: o novo filme de X, o novo livro de Y, a nova exposição de Z, o novo disco de W — onde estas letras podem ser as do autor, da instituição, do editor, do festival, da bienal, etc. Tal como em Casablanca (1942), à falta de melhor, vão-se buscar os suspeitos do costume.

São raras as ocasiões em que se tenta um novo formato de escrita, de edição, que baralhe as expectativas. Uma grande excepção: Agora, Irrepetível, um livro que desafia as categorias. À primeira vista, é o catálogo de uma exposição de finalistas de Design da Faculdade de Belas Artes da Universidade de Lisboa, mas escapa-se ao modelo da listagem de trabalhos. Tudo o que lá aparece é enquadrado por um sem número de narrativas. O tema principal é “Juventude em Marcha”. O que se mostra não são apenas trabalhos escolares respondendo a uma proposta genérica mas ligações, discussões, polémicas, discordâncias e concordâncias. É um trabalho de pedagogia, de jornalismo, de crítica, de ensaio político, um objecto tantalizante e complexo que desafia fronteiras e nos espeta o dedo a cada momento entre duas costelas: “E tu? O que andas tu a fazer?”

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