Romantização da maternidade: contextualização
Doce, angelical, generosa e abdicadora da própria vida e dos próprios desejos. Esses são valores comumente associados à imagem da maternidade quando analisamos obras de arte, filmes, livros, revistas e peças de comunicação em geral. No entanto, valores que parecem fazer parte do que se convencionou chamar de natureza ou instinto materno, conforme apontam algumas teóricas, estão relacionados a uma construção social e histórica.
Em seu livro Um amor inventado — O mito do amor materno, a historiadora e filósofa francesa Elisabeth Badinter (1985) se debruça sobre a história da maternidade e os hábitos sociais e culturais que nortearam a vida das famílias da Europa Ocidental. Até o século XVII, era comum que o pai fosse visto como a figura de autoridade, que comandava os acontecimentos dentro do lar e que educava o filho. Naquele cenário, a criança era enxergada como uma criatura “imperfeita, esmagada pelo peso do pecado original” (BADINTER, 1985, p. 54), de acordo com teóricos como Santo Agostinho. Corrompida pelo mal, a infância demandaria a autoridade paterna para ser “corrigida”. A pedagogia da época, profundamente influenciada por esse pensamento agostiniano, recomendava a frieza dentro dos lares e a dureza na educação.
Diante dessa filosofia, personalidades como o pregador espanhol J. L. Vives defendiam que a figura materna era uma desvirtuadora da criação dos filhos. Em obra reeditada a partir de 1542, Vives associava o afeto da mãe e até o ato de amamentar um filho à perdição humana:
As delícias são o que mais debilita o corpo, por isso, as mães perdem os filhos, quando os amamentam voluptuosamente. […] Que se poderá dizer do furor e da loucura das mães que amam os filhos viciosos, bêbados e negligentes mais do que os virtuosos, os modestos, sóbrios e pacíficos? […] Entre os filhos, o mais querido da mãe é comumente o pior. (VIVES em BADINTER, 1985, p. 56).
Badinter pontua que essas pedagogias eram reforçadas dentro das famílias e que, por isso, as mães demonstravam certa frieza e indiferença diante dos bebês, especialmente por conta da alta taxa de mortalidade. Práticas como a amamentação também eram desencorajadas:
Em nome do bom-tom, declarou-se a amamentação ridícula e repugnante. A palavra “ridícula” retorna com frequência nas correspondências e livros de memórias. Mães, sogras e parteiras desaconselham a jovem mãe a amamentar, pois a tarefa não é nobre o bastante para uma dama superior. Não ficava bem tirar o seio a cada instante para alimentar o bebê. Além de dar uma imagem animalizada da mulher “vaca leiteira”, é um gesto despudorado. […] Se a mãe amamentasse, devia esconder-se para isso, o que interrompia por um longo período a sua vida social e a de seu marido. […] Para os homens “aleitamento é sinônimo de sujeira. Um verdadeiro antídoto contra o amor”. (BADINTER, 1985, p. 96).
É importante pontuar também que, naquele período, a aristocracia e a burguesia podiam usufruir de amas de leite, que se ocupavam dos cuidados com os bebês e deixavam as mulheres mais abastadas livres para outras atividades. A partir do século XVIII, famílias de outras classes sociais passaram a fazer uso desse tipo de serviço também. Em geral, a ama era contratada antes mesmo de a criança nascer ou em seus primeiros dias de vida. A prática era tão comum que, de acordo com Badinter (1985, p. 120), em 1780, de 21 mil bebês nascidos na França, mil foram amamentados a domicílio por amas de leite.
O sofrimento das crianças, naquele momento, se instalava já no instante em que eram transportadas para a morada das amas, normalmente na zona rural:
As crianças que sobrevivem à prova da viagem (em que morrem entre 5 e 15%, segundo a estação do ano) não chegam com isso ao termo do seu sofrimento. A primeira razão é a situação catastrófica das próprias amas. Médicos e moralistas do século XVIII as acusarão de todos os pecados: ambição do ganho, preguiça, ignorância, preconceitos, vícios e doenças. Mas, pelo que sabemos, poucos refletirão sobre as causas desses pecados. Um deles, porém, o médico lionês Gilibert, reconhecerá em 1770 que a razão de tantos erros, frequentemente mortais, é a pobreza indescritível dessas amas: “mulheres atoleimadas pela miséria, vivendo em pardieiros” […]. (BADINTER, 1985, p. 122).
Em seus estudos, o médico apontou que as amas eram obrigadas a trabalhar na lavoura, passando o dia longe de casa e deixando a criança abandonada:
[…] afogada em seus excrementos, estrangulada como um criminoso, devorada pelos mosquitos… O leite que mama é um leite aquecido por um exercício violento, um leite ácido, seroso, amarelado. Assim os acidentes mais terríveis as põem a um passo do túmulo. (BADINTER, 1985, p. 122).
Em média, ainda segundo Badinter, as crianças viviam com as amas por quatro anos. Depois de retornar ao lar, o filho logo era enviado a um convento ou internato — já a filha ficava aos cuidados de uma governanta, convivendo pouco com a família de origem. Toda essa prática levou a um cenário dramático: na França, nos séculos XVII e XVIII, até um ano de idade, mais de 25% das crianças morriam — só nos asilos de Paris, que recebiam crianças abandonadas por fatores econômicos e sociais, 84% das crianças com até um ano de idade vinham a óbito (BADINTER, 1985, p. 137).
Tem-se, nesse contexto histórico, o que a autora Elisabeth Badinter chama de “quase um infanticídio disfarçado” (BADINTER, 1985, p. 143). Para ela, as práticas da época, aliadas ao alto índice da mortalidade infantil, levam a um desprendimento materno, uma resignação diante das forças da natureza que vitimavam tantas crianças. Tal postura, se confrontada com a ideia de que o amor materno é um fenômeno instintivo, natural, pode soar incoerente, portanto Badinter sinaliza:
É mais justo concluir por uma conivência entre pai e mãe, marido e mulher, para adotar os comportamentos que acabamos de examinar. Simplesmente, ficamos menos chocados com a atitude masculina porque ninguém, até hoje, erigiu o amor paterno em lei universal da natureza. É preciso, acreditamos, resignarmo-nos a relativizar igualmente o amor materno e constatar que “o grito da natureza” pode não se fazer ouvir. Veremos que se tornará necessário, no final do século XVIII, lançar mão de muitos argumentos para convocar a mãe para sua atividade “instintiva”. Será preciso apelar ao seu senso do dever, culpá-la e até ameaçá-la para reconduzi-la à sua função nutritícia e maternante, dita natural e espontânea. (BADINTER, 1985, p. 143).
A mortalidade infantil preocupa o Estado
Dessa maneira, surge, entre os séculos XVII e XVIII, uma preocupação por parte das gestões públicas e órgãos de saúde diante da alarmante taxa de mortalidade infantil e dos descuidos perpetrados contra a infância nos primeiros anos de vida. É possível relacionar essa preocupação com a alta taxa de mortalidade a uma ameaça da diminuição da mão de obra agrícola e industrial — e com ela, como aponta Foucault, surge o conceito de “população” para os aparelhos públicos:
Uma das grandes novidades nas técnicas de poder, no século XVIII, foi o surgimento da “população”, como problema econômico e político: população-riqueza, população mão de obra ou capacidade de trabalho, população em equilíbrio entre seu crescimento próprio e as fontes de que dispõe. Os governos percebem que não têm de lidar simplesmente com sujeitos, nem mesmo com um “povo”, porém com uma população, com seus fenômenos específicos e suas variáveis próprias: natalidade, morbidade, esperança de vida, fecundidade, estado de saúde, incidência das doenças, forma de alimentação e de habitat. Todas essas variáveis situam-se no ponto de interseção entre os movimentos próprios à vida e os efeitos particulares das instituições. (FOUCAULT, 2015, p. 28).
Para o autor, no centro desse problema econômico e político, está o sexo, uma vez que se faz necessário analisar o número de casamentos, as idades dos noivos e noivas, os efeitos do celibato, os nascimentos legítimos e ilegítimos, as práticas contraceptivas, a frequência de relações sexuais, bem como a proporção de encontros fecundos e estéreis. Tem-se, então, uma intervenção institucional na vida íntima dos casais e das famílias, não só no que diz respeito à sua procriação ou não procriação, mas também na forma como criam e educam sua prole — e, como aquela que carrega a criança no ventre e que tem capacidade de nutri-la em seus primeiros anos de vida, a mãe será alvo principal dessas estratégias.
De acordo com Foucault (2015), o controle sobre a vida, que se instala a partir do século XVII, é fundamentado em dois polos: o primeiro deles está centrado no corpo como máquina, capaz de ser adestrado, de se fazer útil e ter suas aptidões ampliadas, o que se dá por meio de mecanismos que o autor nomeia “disciplinas anátomo-políticas do corpo humano” (FOUCAULT, 2015, p. 150). Já o segundo polo se relaciona com o corpo como espécie, que é visto como suporte para os processos biológicos: o nascimento, a longevidade, o nível de saúde e a mortalidade — esses processos são norteados por controles reguladores que Foucault chama de “biopolítica da população”, e comenta:
A instalação — durante a época clássica, dessa grande tecnologia de duas faces — anatômica e biológica, individualizante e especificante, voltada para os desempenhos do corpo e encarando os processos da vida — caracteriza um poder cuja função mais elevada já não é mais matar, mas investir sobre a vida, de cima a baixo. (FOUCAULT, 2015, p. 150).
Tem-se, então, ainda segundo o autor (FOUCAULT, 2015), a era do biopoder, elemento indispensável ao desenvolvimento do capitalismo, uma vez que era preciso ter mecanismos de controle e disciplina sobre os corpos nas indústrias e espaços produtivos, assim como foi necessário ajustar a população e seu comportamento aos processos e cenários econômicos. Essas técnicas de biopoder foram e são utilizadas por instituições como escolas, o exército, a política, a medicina e a própria família, formulando um enorme investimento social e político sobre o corpo humano, impulsionando ações e uma melhoria de nossas capacidades, além de delimitar hierarquias, relações de dominação e fatores de segregação. Pode-se afirmar, portanto, que é uma estrutura que revoluciona a forma como as sociedades se organizam e a maneira como o indivíduo se vê — e o surgimento do discurso materno parece ter papel central nesta etapa.
(Esse texto continua aqui.)
Referências:
BADINTER, Elisabeth. Um amor conquistado: o mito do amor materno. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1985.
FOUCAULT, Michel. História da sexualidade: a vontade de saber: vol. 1. São Paulo: Paz e Terra, 2015.