O Mito da Baixa Predação da Renda: Aspectos Comparativos

Comparação internacional das médias nominais da carga fiscal sobre a renda das pessoas e empresas

Mateus Bernardino
Economia e Filosofia
7 min readFeb 16, 2018

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Uma das convenções mais consagradas no debate fiscal brasileiro indica que os impostos diretos sobre a renda são baixos, insuficientemente progressivos e acabam representando uma fatia pouco importante do total recolhido pelo fisco, limitando o poder de arrecadação do governo e o propósito redistributivo inerente à tributação[i].

Esse diagnóstico sugere naturalmente que qualquer reforma fiscal que pretenda alinhar interesses de justiça social e objetivos político-orçamentários deve passar pela discussão do aumento da progressividade e, eventualmente, aplicação daquele esquecido e constitucional Impostos sobre as Grandes Fortunas.

Alguns especialistas acreditam que as alíquotas marginais são baixas, outros acrescentam que a atual organização tributária prevê muitos mecanismos de isenções ou subvenções cruzadas que limitam o impacto da progressividade dos impostos diretos e do sistema tributário como um todo, fazendo que a distribuição final da renda não seja alterada o suficiente — em favor dos mais pobres — depois da incidência dos esquemas de predação sobre a renda, o que colocaria o Brasil na retaguarda dos modelos de tributação mais justos e equalizadores de riqueza adotados ao redor do mundo.

Temos então esses dois aspectos e argumentos que devem ser levados em consideração no debate sobre a questão da progressividade do Imposto de Renda (IR).

1. O argumento apontando que as alíquotas marginais destoam quando tomamos em consideração, comparativamente, as alíquotas internacionais, e por causa disso o IR no Brasil é baixo ou insuficientemente progressivo.

2. O argumento levando em consideração uma análise mais rigorosa dos sistemas tributários como um todo, algo levando em conta os diversos mecanismos de transferências e avaliando os efeitos da fiscalidade direta sobre a distribuição final da renda.

Embora ambos argumentos possam servir para ajudar a descrever de forma complementar o mesmo diagnóstico ou problema comum, é necessário entender que para aceita-los, respectivamente, não precisamos recorrer forçosamente aos mesmos métodos de estudo.

Isso quer dizer, para decretar se a predação da renda ou a progressividade das alíquotas brasileiras são marginalmente altas ou baixas — em termos comparativos internacionais — basta simplesmente um estudo das diversas alíquotas em um plano estatístico discreto. Ou seja, uma média matemática simples permite elucidar ou pelo menos esclarecer um pouco melhor o problema.

Já o segundo argumento, em uma análise econômica, faz apelo a métodos mais rigorosos e estudos estatísticos mais cuidadosos dos dados e das diversas regras prevalecendo nos sistemas fiscais que serão objetos de análise.

Esse pequeno artigo tentará jogar uma luz sobre esses argumentos e verificar se é verdadeira a premissa de que os impostos brasileiros sobre a renda são baixos ou insuficientemente progressivos. Tomaremos aqui apenas a questão comparativa, ignorando nesse instante a questão redistributiva.

As Alíquotas Brasileiras são Excessivamente Baixas?

A questão de saber se as alíquotas brasileiras são altas ou baixas pode ser esclarecida através de um simples estudo comparativo dos dados disponíveis para os diversos países do mundo[ii]. Sugerimos uma análise levando em consideração as alíquotas totais sobre a predação da renda para empresas e pessoas, e no caso das empresas um índice que combina os principais impostos recaindo sobre a renda da produção.

Façamos uma leitura dos dados repartidos em função dos espaços geográficos — continentes — onde se aplicam os diversos impostos e as diversas alíquotas e, depois, selecionemos grupos específicos de países conforme isso possa servir para analisar a progressividade entre realidades socioeconômicas que consideramos parecidas com as do Brasil.

Uma comparação dos impostos sobre a renda para pessoa física entre os continentes aponta que a alíquota marginal superior brasileira (27,5%) está atrás da média da Europa e da África, mas sua carga é superior à média das alíquotas praticadas na América, Oceania e Ásia. Para pessoa jurídica, o Brasil possui uma alíquota média (34%) superior à média do que é praticado em todo o mundo (21,7%).

Se tomarmos então os dados referentes à todas as economias mundiais, a média das alíquotas marginais superiores brasileiras (30,8%) para ambos os impostos é superior ao que é praticado ao redor do mundo (24,1%).

Dito de outra forma, se nosso intuito for simplesmente tomar uma ilustração levando em conta ao mesmo tempo os dados para pessoas jurídicas e físicas — uma média das duas, permanece ainda que a média da alíquota brasileira será superior à média de todos os demais, assim como ocorreu para pessoa jurídica.

Essas informações nos conduzem, de antemão, a invalidar aquele sentimento inicial que prevalece mesmo entre muitos especialistas, algo apontando que as alíquotas brasileiras estariam em patamares inferiores ou seriam insuficientemente altas em termos comparativos internacionais.

Na verdade, se levarmos em conta esse simples estudo discreto, o Brasil hoje em dia pratica alíquotas marginais altas, e superiores à média mundial, sobretudo por causa da parte que incide sobre as pessoas jurídicas.

Conclusão: Comparando Bananas com Maçãs?

O problema dessas comparações de dados discretos ignora praticamente todas as demais diferenças entre os países da amostra.

Por isso, nessa mesma perspectiva comparativa e puramente descritiva, olhemos um pouco mais de perto os dados disponibilizados para os nossos vizinhos da América do Sul que apresentam características socioeconômicas relativamente comparáveis às nossas.

Se empreendermos a mesma inciativa buscando avaliar a média das alíquotas máximas incidindo sobre as pessoas jurídicas e físicas, percebemos que as taxas marginais brasileiras não estão também entre as mais baixas — e competitivas — da região. Aliás, a alíquota média brasileira (30,8%) é ligeiramente superior à média dessa amostra e universo de 10 países (entre 25% e 28,5%, conforme eliminemos ou não a Guiana).

Se estendermos um pouco mais nossos horizontes, e observarmos os dados de alguns dos principais países da América Latina, as conclusões são essencialmente as mesmas, mas dessa vez a alíquota média brasileira para a faixa marginal superior de renda é comparativamente ainda menos competitiva — a média das alíquotas para pessoas físicas e jurídicas do grupo é de 26%.

Outro grupo de países que chama particularmente nossa atenção é aquele dos países da Europa do Leste e dos Balcãs, que apresentam semelhanças pronunciadas em termos socioeconômicos relativamente ao Brasil. Aliás, alguns desses países em desenvolvimento apresentam níveis de renda (PIB por cabeça) e de vida (IDH) bastante próximos dos índices brasileiros — como veremos mais abaixo.

Em termos comparativos, os resultados são praticamente os mesmos, a média das alíquotas brasileiras é superior à média das alíquotas do grupo. Dessa vez os resultados são ainda mais contrastantes, a média da alíquota marginal sobre pessoas físicas e jurídicas do grupo se situa em torno dos 16,5% (ainda mais longe dos 30,8% brasileiros).

Uma análise comparativa que pode ser igualmente ilustrativa avalia exatamente os países apresentando níveis equivalentes de renda (P.I.B. por cabeça).

Nesse caso, o país também não se sai melhor, a média das alíquotas superiores brasileiras é substancialmente maior que a média da maioria dos países da amostra, ou da própria média do grupo (22,5%).

A mesma constatação decorre de uma análise dos países apresentando níveis de vida equivalentes. Se tomarmos o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) como referência para os dados, eles revelam que apenas 5 nações com nível de vida comparável aplicam alíquotas marginais superiores às do Brasil, a média do grupo de 30 países se situa entre 22 e 23%.

Resumidamente, quando comparamos realidades socioeconômicas mais equiparáveis percebemos que o sistema tributário brasileiro já apresenta alíquotas altas para a predação da renda, e sua progressividade aparece então perfeitamente pronunciada, diferentemente da conclusão que a maioria dos analistas apresenta.

Na verdade, as comparações internacionais colocando o sistema tributário brasileiro em relativo “atraso” em termos de progressividade na taxação da renda se baseiam em dados relativos ao grupo da OCDE, os países mais ricos do planeta.

No entanto, um economista sabe perfeitamente que, para que possamos estabelecer pilares confiáveis para nossos estudos e, efetivamente, isolar aqueles aspectos que pretendemos enfatizar com mais clareza, esse tipo de comparação não se faz sem o devido recuo.

Não é desejável mobilizar políticas e defender determinadas reformas fiscais ao mesmo tempo em que se ignora as diferenças de estágio de desenvolvimento dos países, os efeitos da fiscalidade e da progressividade sobre os incentivos e o crescimento econômico, ou as consequências da predação exagerada da renda sobre a estrutura produtiva e sobre a própria arrecadação e as diretivas orçamentárias.

Para considerar essa comparação entre países ricos e pobres como totem de referência em termos de organização fiscal, (1) os defensores da progressividade levam em consideração unicamente questões de justiça — e tomam por referência em matéria de justiça tributária os valores, moldes e objetivos socialistas; (2) e/ou eles desconsideram aquelas questões econômicas elementares, a saber, a prudência em comparar realidades “incomparáveis”, o impacto econômico da fiscalidade e da progressividade; em suma, o que ensina a teoria econômica e o que confirma a empiria.

Notas

[i] De acordo com o modelo ideal de sistema fiscal consagrado hoje em dia na perspectiva estatista moderna de valores socialdemocratas.

[ii] Tomamos aqui exclusivamente os dados disponíveis no site Trading Economics e da OCDE, que recolhem informações sobre as principais economias mundiais.

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