6 dias sem tomar banho? Um pouco da luta contra a pobreza.

Mateus Bernardes
6 min readAug 9, 2017

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Há poucos dias voltei de uma das experiências mais intensas da minha vida. Pra mim é fácil medir a intensidade de algo porque são raras as vezes em que choro, consigo enumerar esses poucos momentos ao longo dos anos de minha existência. Nesse caso, no sexto dia chorei em duas oportunidades e vou contar aqui o porquê.

Participei, com a ONG TETO Brasil, da construção de 14 casas de emergência no Acampamento Valdir Macedo em Jandaíra - Bahia, junto com mais 100 voluntários/as (por volta disso, não sei o número exato).

As casas são de painéis de madeira pré-fabricados e tem até 18 m² de área. Os maiores benefícios para as famílias que passam a morar nelas são o conforto térmico proporcionado (o telhado possui manta térmica), o fim de goteiras e alagamentos (o telhado é todo vedado e a casa está acima do nível da terra por sistema de pilotis), além de uma maior tranquilidade ao saber que a casa não vai desabar durante uma grande ventania e nem bichos selvagens irão entrar.

O acampamento em questão era vinculado ao MST. No entanto, nesse texto não vou falar sobre o movimento e a questão das terras no Brasil, talvez em uma oportunidade futura. Aqui o foco será outro.

As casas do acampamento eram em sua maioria de palha, com remendos de papelão e demais materiais que claramente não são os ideais para a estrutura de uma casa, um lar. O tamanho das casas então, nem se fala, como escrevi anteriormente, as casas do Teto chegam a 18 m² e são desse tamanho porque devem ser construídas no terreno onde ficava a antiga casa da família (as pessoas derrubam sua antiga casa para que a casa do Teto seja construída no mesmo local e elas devem ter um tempo de residência mínimo estabelecido naquele local), as casas de comunidades carentes não passam muito desse tamanho de 18 m², os lotes são bastante apertados. Agora compara isso com o tamanho do seu quarto e reflita um pouco. E eu estou falando de famílias que podem chegar a 8 ou até mais integrantes, dividindo um espaço tão pequeno. Em certos casos eu não conseguia nem visualizar como todo mundo dormia junto ali, em diversos casos não há cama para todo mundo.

Bom, agora que já dei uma contextualizada, vou voltar ao assunto inicial do texto, as duas vezes em que chorei e porque:

1- Uma das famílias com a qual tive oportunidade de construir a casa junto (digo junto porque a família também ajuda na construção, inclusive pagam uma parte da casa, não é um presente, é uma conquista), era constituída por Roberta (nome falso) e seus 7 filhos, oriundos de 3 casamentos diferentes (3 ex-companheiros que a abandonaram) e tendo como maior vitória: “mesmo nunca tendo tido dinheiro, nunca deixei ninguém levar um filho meu embora”. Infelizmente, a vida carregou um dos filhos dessa guerreira, tendo morrido ainda criança por ocasião de uma doença.

Durante a construção da casa tivemos bastante contato com os filhos de Roberta, os mais velhos ajudaram bastante na construção e os mais próximos ficavam brincando fora do canteiro de obra. Um deles em especial chamou muito a atenção de toda a equipe por diversos motivos, além de gostar muito de conversar, ele toda hora queria que alguém largasse a obra e brincasse com ele de bolinha de gude ou de futebol. Vou chamar esse Sergipano de 8/9 anos de Caio Daniel Souza de Andrade, mas seu nome verdadeiro eu vou demorar muito tempo pra esquecer. Foram 3 dias de convivência e ao final, Caio já havia encantado a todos. E me fez perder o chão pelos seguintes motivos: Fizemos juntos uma casa para aquela família, aquela família ganhou um pouco de dignidade, o mínimo que todos deveriam ter, mas a luta ainda é muito grande. Infelizmente Caio está no terceiro ano do ensino fundamental e não sabe ler direito, mesmo tendo notas boas (“a professora lê as questões e explica pra turma, aí eu consigo fazer”). Caio dificilmente vai conseguir sair daquela realidade, sem muitas informações e instruções, o comum em sua família é logo perceber que não se aprende nada naquela escola pública de um povoado na divisa da Bahia com Sergipe, seus irmãos mais velhos já sabem disso. O comum em sua comunidade é ter filhos cedo, o comum em sua comunidade é ter muitos filhos. Seria isso culpa de Caio? Seria burrice? Ignorância? Falta de instrução? Falta de informação? Não dá pra saber ao certo. Mas aquele sistema parece estar igual a gerações e assim a pobreza vai se perpetuando. Assim os filhos de Caio serão brilhantes como ele é e acabarão num sofrimento e batalha interminável como a mãe dele, Roberta, vive. E é isso que me entristece, porque eles não mereciam isso. Por mera questão de nascimento, esses brasileiros não tiveram a oportunidade de estudar em escolas particulares, frequentar universidades federais, alguns lá nem devem saber o que é isso. É duro pensar que existem outros milhões de Caios espalhados pelo Brasil, ou pior, pelo mundo e não saber ao certo o que fazer para transformar essa situação.

2- Após o fim das construções tivemos uma atividade final que envolvia, para não dar muito spoiler, olhar nos olhos um do outro, voluntários/as e moradores do acampamento, sem falar nada, só olhar era permitido. E nesse momento a esperança renasceu, renasceu porque lá pude ver pessoas que tinham saído de sua atmosfera de conforto para lutar por uma causa que, a princípio, nem era delas, pessoas que não precisavam estar ali, pessoas que dedicaram 3 meses para que tudo aquilo acontecesse, pessoas que arrecadaram dinheiro por essa causa, pessoas que doaram seu tempo por essa causa e ainda, pessoas que viram sua batalha de uma vida inteira resultar em alguma coisa, pessoas que finalmente não precisariam mais se preocupar com chuva, vento, frio. Pessoas que agora tinham um Teto para morar.

Isso tudo me deu a certeza de que, por mais difícil que possa parecer, enquanto todos estiverem dispostos a lutar, seremos mais fortes que todas as adversidades da nossa vida e sociedade.

Sobre o título do texto. Ele é uma meia verdade, no quarto dia pude usar 2,5 litros de água em um galão para “tomar banho”. Esse controle todo é porque dentre os inúmeros problemas das comunidades, um deles é a falta de água. Não conseguimos nem lavar a louça direito em alguns dias.

Mas, sendo sincero, isso pouco fez diferença no final, a causa ali era muito maior do que alguns dias sem tomar banho e não é por isso que a luta de todos vai parar.

Falando nisso, infelizmente houve um incêndio em uma comunidade na qual o Teto trabalha em Campinas e mais de 40 famílias perderam quase tudo. Haverá uma construção de emergência nos dias 2 e 3 de setembro e você pode contribuir de diversas formas.

Aqui vai o link do evento com mais informações, ajude essa causa!

Por um novo Itatiaia

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PS1: Esse texto é contido de reflexões e opiniões pessoais independentes, não necessariamente elas correspondem com a forma de pensar da Ong TETO Brasil.

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