E se fosse eu?

Matheus Salatiel
6 min readMay 13, 2020

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O dia 13 de maio é marcado por ser a data em que se recorda a Lei Áurea, que “aboliu legalmente” a escravidão no Brasil, sendo assim o último país a aderir o abolicionismo, após um processo complexo e cheio de capítulos durante décadas no século XIX. Com figuras importantes sendo subnotificadas na história brasileira como Luís Gama, José do Patrocínio, André Rebouças e toda uma série de revoltas protagonizadas, em suma, por quilombos. Atribuindo na consciência popular que somente a Princesa Isabel teve protagonismo no movimento abolicionista, como se em um ato branco de caridade uma simples canetada apagasse todas as máculas da escravidão, mas o que vemos na realidade é um legado do racismo que se perpetua até os dias de hoje. Obrigado por nada.

Toda uma construção de pensamento que visa resgatar a memória do negro no Brasil está sendo posta em cheque e atacadas veementemente pelo governo Bolsonaro. Na lamentável figura de Sérgio Camargo, presidente da Fundação Palmares, negacionista do racismo e contrário a todas as políticas de auto-afirmação e redução da desigualdade. Corroborando para a obra inacabada da escravidão que reflete em uma estrutura racista que compõe a sociedade brasileira desde sua criação.

É impossível desassociar o Brasil do racismo, está fincada em suas raízes o preconceito contra o povo negro. Trago a vocês relatos acerca de como a estrutura racista brasileira impõe sua opressão e propaga o genocídio do negro brasileiro (indico esta grande obra de Abdias Nascimento). Passados 132 anos de abolição, nós negros temos algo a comemorar?

Eu tinha 13 ou 14 anos quando levei um enquadro pela primeira vez. Viatura na calçada, arma na cabeça, policial gritando com muita brutalidade. Eu não tinha idade suficiente para compreender o que estava acontecendo. Assustado, eu só conseguia pensar em minha mãe.

Era um ritual ao sair de casa: “Leva a blusa. Volta que horas? pegou o RG?”. Minha querida mãe sempre reforçava que preto tem que tá com o RG no bolso “a original para que eles não pensem que é falsa”. Eles, eles… mas quem são eles?

Eles são os que querem nos pegar no erro para dizer enfim “NÃO FALEI!?” (citando o gigante Emicida). Eles são os mesmos que servem a uma estrutura que, desde o início, foi orientada que homem negro — por ser negro — e que não estiver trabalhando, é de imediato suspeito. Eles querem que você reaja e vão utilizar de todas as armas para tal. Se responder com palavrão, eles só vão ouvir o seu palavrão. E tudo isso para no fim dizer, “EU DISSE QUE ELE NÃO SERVIA PARA ISSO!”

E aqui o trabalho é sempre de prestação de serviço, viu? Vassoura, enxada, carro (do patrão, claro), chave do prédio (que você mora), tudo na mão e com o uniforme bem explícito. Caso contrário, eles podem cometer um erro humano (claro, erro né rs) e confundir com uma arma, tá?

Divulgação/Alma Preta

A PM se orienta por uma série de signos, sinais e pensamentos que visam o homem negro como suspeito só por ser homem negro e, assim, justificam toda a forma de repressão e o genocídio deste mesmo povo. Essas orientações são advindas do pensamento da teoria eugenista que teve como seus principais intelectuais Renato Kehl, Monteiro Lobato, Belisário Penna e Roquette-Pinto, que respondem ao anseio dos escravagistas que viram seus escravos libertos e queriam de qualquer forma hierarquizar a sociedade e embranquecer a população. Porque, para eles, o negro era o atraso e antagonista do desenvolvimento Euro-Cristão.

Acervo / Alê Santos

E o governo apoiou estas teorias, criando nas primeiras décadas do século XX as seguintes linhas:

  • Fundando a comissão central brasileira de eugenia;
  • Tendo na constituição de 34 a eugenia como pilares fundantes;
  • Universidades de medicina usando a obra de Renato Kehl largamente,
  • E todo o esforço de trazer imigrantes com o intuito de embranquecer a população;
  • Decretos no Governo Vargas que limitavam o acesso da população negra ao sistema de saúde.

Tudo isso com o intuito de eliminar os negros em até 60 anos próximos, como o próprio Renato Kehl escreveu:

Acervo / Alê Santos

O governo e os intelectuais eugenistas brasileiros contribuíram para a cultura do genocidio negro. O triplo de negros morrem por ações policiais em comparação aos brancos. A polícia brasileira é a que mais mata no mundo. 16% dos homicídios tem mãos policiais envolvidas. Ela é orientada e visa muito bem seus alvos. Qual a explicação para abordar um aluno vindo da escola da forma que fui abordado? Uniforme do colégio e mochila nas costas, qual o perigo que eu oferecia naquele momento?

Você até pode tentar usar o argumento que errar é humano e que eles não tem culpa. Mas cara gente branca, deixa te contar uma coisa; Este é o legado da escravidão que permance presente nas favelas, periferias e em todo o povo negro. As correntes que hoje nos prende é fruto do seu racismo, o senhor do engenho se torna agora o senhor policial

Portanto, não me surpreende as orientações de minha mãe desde quando eu era pequeno, são todas uma cartilha para sobreviver sendo homem negro.

  1. Corte o cabelo;
  2. Não use boné;
  3. Ande sempre com RG e carteira de trabalho;
  4. Nunca corra na rua;
  5. Mostre sempre o uniforme ou mochila da escola;
  6. Sempre diga: “sim senhor”

imagina se um dia eu estiver com pressa para chegar no escritório, andando com o passo acelerado e alguém dizer em alta voz la na Vila Olímpia (local que trabalho): “Pega neguinho”, “Foi ele”, “Era um negro”, “Não sei, tinha cabelo de preto”. Façam esse exercicio e pensem o que pode acontecer…

Ao final desta leitura, convido que vocês conheçam a história da Barbara Querino, uma amiga de infância que foi presa injustamente, simplesmente por ter “características” acusatórias, um cabelo afro e a pele alvo que sempre é a negra. https://www.facebook.com/todosporbabiy/

Todos por Baby / Divulgação

Indico também a série “Olhos que Condenam” no Netflix, que conta como 5 jovens negros foram incriminados injustamente por um crime que aconteceu no Central Park, NY. Eles só estavam passeando no parque e a orientação da polícia era que todo negro de certa faixa etária fossem tido como suspeito. A polícia, o governo e a mídia alteraram fatos para que esses jovens fossem presos.

Olhos que Condenam / Netflix

Meu povo nunca foi verdadeiramente livre. Sairam das mãos dos senhores de engenho diretamente para as mãos dos governantes racistas. São 330 anos de escravidão contra 140 de liberdade regada a repressão, genocidio, falta de paz. Por isso dizemos: obrigado por nada.

Os efeitos do peso do ser negro pós abolição são duros e sentidos até hoje. Bárbara, João Victor, Pedro, Michel, Maria, entre tantos outros que são vítimas dessa estrutura racista. As orientações da minha mãe são para a minha proteção, mas no fim das contas eles sempre darão um jeito de nos incriminar.

É chegado o dia 13 de maio, data que se recorda a Lei Áurea. Mas, o que temos de celebrar mesmo? Não basta abolir a escravidão, precisamos enfrentar seu legado, a luta antirracista é presente e a questão não é o 13 de maio e sim o 14 de maio, 15 de maio, 16 de maio…

E se fosse eu? #ObrigadoPorNada

Matheus Salatiel

Fontes:

https://www.almapreta.com/editorias/realidade/conheca-6-objetos-que-a-policia-achou-ser-uma-arma-na-mao-de-um-negro

https://almapreta.com/editorias/realidade/eugenia-por-um-brasil-mais-branco

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Matheus Salatiel

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