(Foto: Matheus Vieira/Zero)

A queda de Cancellier

Os últimos dias a caminho de um suicídio

Matheus de Moura
Matheus de Moura
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9 min readJan 17, 2018

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Por João Paulo Mallmann e Matheus Vieira

Essa reportagem especial, em conjunto com Os vícios crônicos das Fundações de Apoio, recebeu os prêmios Expocom Sul e Expocom Nacional de melhor reportagem publicada em veículo impresso. Estes são os principais prêmios para estudantes de jornalismo no Brasil.

O dia 14 de setembro mal havia amanhecido quando policiais federais bateram na porta da casa de Luiz Carlos Cancellier de Olivo, reitor da UFSC. Levaram-no preso temporariamente por tentativa de obstrução de justiça, com base nos depoimentos do procurador Rodolfo Hickel e da professora Taisa Dias, ambos servidores da universidade. O ato marcou a deflagração da Ouvidos Moucos, operação que investiga desvios de recursos do programa Universidade Aberta do Brasil (UAB) na universidade.

Dos 12 investigados, sete foram presos temporariamente e cinco conduzidos para prestar depoimento. Érika Marena, delegada no comando da operação, não só levou às ruas da capital catarinense mais de 100 agentes federais, mas também o modus operandi da Lava-Jato. Em 2014, ela fez parte do time que fundou a investigação de desvios de dinheiro na Petrobras, sendo inclusive responsável pelo nome da operação na qual trabalhou até 2016, quando foi realocada para o posto da PF em Florianópolis.

Cancellier e os demais presos foram liberados no dia seguinte por ordem de Marjôrie Cristina Freiberger, juíza substituta na 6ª Vara Federal de Florianópolis. No entanto, a ordem de proibir a entrada dos investigados na universidade não foi revogada. Cancellier se viu exilado do lugar onde estudou e trabalhou nos últimos 12 anos.

Sessão solene no Auditório Guarapuvu (Foto: Matheus Vieira/Zero)

Últimos dias
Ele, que havia parado de fumar algum tempo antes, retomou o hábito após deixar a prisão. Iniciou tratamento psicológico com antidepressivos, na tentativa de superar os danos que atribuía aos procedimentos prisionais, incluindo a vexatória revista íntima, e ao julgamento público a que fora submetido.

Houve manifestações em torno do suposto desvio de R$ 80 milhões — valor erroneamente divulgado pelo portal G1, mas que correspondia ao valor global dedicado ao programa de ensino a distância entre os anos 2006 e 2017. O rombo real que gerou a investigação seria de R$ 106.104,02. No dia da prisão, estudantes organizaram um happy hour, tipo de festa que Cancellier havia proibido por motivos de segurança. O reitor reagiu com declarações de inocência nos jornais.

Para piorar, o número de visitas que recebia era pífio. Colegas da universidade temiam que eventuais visitas levantassem suspeita da PF. Na última semana de setembro, o reitor almoçou com o ex-senador e amigo Nelson Wedekin, de quem fora assessor em Brasília. Ele disse que o reitor parecia estar reagindo com lucidez à situação. Acioli de Olivo viajou para Florianópolis para mostrar apoio ao irmão mais novo.

No dia 30 de setembro, uma decisão da Justiça Federal autorizou Cancellier a passar três horas na universidade no dia 5 de outubro. Assim, poderia orientar seus pós-graduandos em Direito. Sua liberdade de ir e vir, entretanto, se manteria limitada ao CCJ, sem poder voltar ao prédio da Reitoria, que era seu local de trabalho desde maio de 2016.

Carreira política de Cancellier
Cancellier dedicou parte de sua vida à construção de uma carreira política sólida. Durante seu mandato, procurou manter a imagem de conciliador que construiu com o passar dos anos. Não se envolveu diretamente em nenhuma grande polêmica. Nem a proibição dos happy hours, uma das únicas fontes de renda para centros acadêmicos, gerou grande repercussão. Também evitou atritos no caso do processo de exoneração do servidor Daniel Dambrowski, que Zero contou em sua última edição.

Após vencer o segundo turno das eleições para Reitor da UFSC em novembro de 2015, Cancellier largou o cargo de diretor do CCJ, o qual ocupava desde 2012. Antes disso, em 2009, foi presidente da Fundação José Boiteux (Funjab), uma das citadas na Ouvidos Moucos. Desde 2006, era conselheiro do CUn, onde discursava a favor das Fundações, dando pareceres favoráveis ao recredenciamento da Fapeu, com o argumento de que esta prestava serviços à universidade havia muito tempo. Nesse período, criou uma base política que o manteve forte em debates acadwêmicos e que, mais tarde, viria a ocupar cargos em pró-reitorias durante sua gestão. Na campanha para reitor, chamou atenção por ser a favor da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (EBSERH), lutar pela presença da Polícia Militar no campus, e dificultar a realização de festas universitárias. Ações contrastantes com o passado de militante do Partido Comunista Brasileiro (PCB), rememorado por amigos e colegas após sua morte.

Segundo ex-colegas de trabalho, Cancelier teria entrado no jogo da política universitária para construir sua imagem e concorrer a cargos municipais até, por fim, atingir seu suposto sonho de se tornar prefeito de Florianópolis. Depois da prisão, a candidatura parecia um futuro improvável. No velório, corria o boato de que até a maçonaria — da qual ele e a maioria de seus pró-reitores faziam parte — teria virado as costas para ele. A reportagem procurou o advogado Waltoir Menegotto, padrinho de Cancellier na loja maçônica Acácia do Continente, mas este se recusou a dar qualquer informação sobre as tensões de Cau com o movimento, afirmando não ter permissão para abordar o assunto. “Nós da Maçonaria não damos informação nenhuma sobre coisas internas”, afirmou.

Mesmo após a morte, Cancelier mantém influências políticas, sendo homenageado em dois projetos de lei. A nível municipal, o vereador Tiago Silva (PMDB) propôs a PL 17339/2017, que tenta mudar o nome da praça Santos Dumont, localizada ao lado da UFSC, para Praça Reitor Luiz Carlos Cancellier de Olivo. E, na esfera federal, o senador Roberto Requião (PMDB-PR) sugeriu o nome “Lei Cancellier” para o Projeto de Lei 7596/17, que pune abusos de autoridade praticados pelos três poderes, Ministério Público e servidores públicos em geral, e que também visa acabar com o foro privilegiado. O projeto tramita desde maio na Câmara dos Deputados.

Velório e repercussão
O corpo de Cancellier foi velado em caixão fechado no hall do prédio da Reitoria. Lá estavam amigos, familiares, aliados políticos e boa parte da comunidade acadêmica. Na construção do clima fúnebre, velas e coroas de flores enviadas dos mais diversos lugares. A universidade entrou em luto.

O ato de Cancellier não foi apenas mais um suicídio no shopping center da avenida mais famosa da cidade. Amigos, aliados políticos do reitor e entidades nacionais levantaram bandeira contra o abuso policial e de como as investigações viraram espetáculo. Na sessão solene fúnebre do Conselho Universitário (CUn), os discursos de Nelson Wedekin e do desembargador e amigo de infância Lédio Rosa de Andrade repercutiram em todo país, pois inflamavam as críticas à Operação Lava-Jato. Nos cartazes na mesa principal da reunião dizeres como “uma dor assim pungente não há de ser inutilmente” .

Figurões como o prefeito Gean Loureiro deram as caras no enterro, que ocorreu no cemitério Jardim da Paz, localizado a 7 km da UFSC. Estava presente também o discreto mas não invisível Marcos Baptista Lopez Dalmau, secretário do ensino à distância entre 2016 e 2017, um dos sete presos temporariamente na deflagração da Ouvidos Moucos. Abordado por nossa equipe, disse que estava com medo da PF e que teria sido aconselhado por seu advogado e pela própria polícia a não ceder entrevistas. “Tô evitando até passar perto da UFSC”, disse.

Após morte do reitor, inicia caça às bruxas

Gabinete diverge sobre exoneração do corregedor da UFSC, Rodolfo Hickel

Por João Paulo Mallmann e Matheus Vieira

Tão logo a última coroa de flores foi colocada sobre o túmulo de Cancellier, as articulações sobre o futuro da UFSC se iniciaram. Um ex-líder do Diretório Central dos Estudantes (DCE) próximo ao reitor informou que, “baixada a poeira”, uma reunião do Conselho Universitário (CUn) seria feita com o intuito de afastar Rodolfo Hickel do cargo de corregedor. Hickel foi um dos responsáveis pela acusação de obstrução de justiça por parte de Cancellier, e é tido pelos aliados do reitor como seu grande algoz.

Entretanto, a manobra não aconteceu no CUn. A primeira reunião após o falecimento, no dia 10 de outubro, teve como pauta a sucessão no cargo de reitor . Os conselheiros aprovaram por unanimidade a permanência de Alacoque Lorenzini Erdmann, vice da chapa de Cancellier, no cargo. Discutiram apenas como fariam para amparar juridicamente a decisão, tendo em vista o Decreto Presidencial 1.916/1996, que determina, no caso de vacância no cargo de reitor ou vice-reitor, que seja enviada uma lista tríplice elaborada pelo conselho máximo da instituição para escolha final do presidente da República.

Se o CUn não derrubou o corregedor, o mesmo não se pode dizer de Áureo Mafra de Moraes, chefe de gabinete, na época, e amigo de Cancellier há 30 anos. No dia 20 de outubro, ele publicou a Portaria 2356/2017, que reabriu o processo administrativo (PAD) contra Hickel, destituindo-o de seu cargo por 60 dias. Segundo Áureo, o trabalho do corregedor estava afetando diretamente algumas ações na UFSC. “As pessoas estão temendo assinar papéis, tomar decisões, enfrentar reuniões”. O processo já havia sido aberto em 5 de junho a pedido professor Gerson Rizzatti Junior, que relatou abusos de autoridade cometidos pelo corregedor contra a professora Mónica Salomón González. Consta no processo que “o professor narra, ademais, que em 07/06/2017 a professora Mónica passou por sessão de interrogatório por três horas, acusada de crimes não especificados, reduzida a termo que foi forçada a assinar, entretanto, sem direito a verificar os fatos descritos.”

Alacoque Erdmann, vice de Cancellier, assumiu a Reitoria por 45 dias até pedir licença para tratamento de saúde (Foto: Matheus Vieira/Zero)

A contragosto do chefe de gabinete, Alacoque anulou a portaria. Áureo deixou seu cargo dizendo que não poderia continuar na função sem a confiança da reitora. Ele acredita que visitas de Orlando Vieira de Castro Júnior, superintendente da Corregedoria Geral da União em SC e de André Bertol, procurador do Ministério Público Federal (MPF) teriam feito a vice-reitora se sentir ameaçada, culminando na anulação da portaria.

Apesar das tensões, Áureo se mantém convicto de que tomou as decisões corretas, afirmando não ter medo de ser preso. Na sua avaliação as ações do corregedor são nocivas para a sociedade e criam “um clima de terror”. Ele afirma que Hickel tem “um jeito arrogante, como quem é acima do bem e do mal”. O ex-chefe de gabinete pretende processar o corregedor por conta de uma entrevista concedida ao Diário Catarinense, no dia 25 de outubro, na qual ele diz que, “o Áureo faz parte da lista de servidores que eu pedi afastamento da universidade para órgãos que estão envolvidos na investigação da Ouvidos Moucos. Ele recebeu bolsas do ensino a distância que ainda precisam ser analisadas. Esse pode ter sido o motivo da retaliação.”

De fato, o nome do Áureo é citado e destacado duas vezes no inquérito da Ouvidos Moucos. Na primeira ele está numa lista junto a sete professores e entidades que “historicamente atuam na UAB” e também receberam bolsas pelo projeto “Desenvolvimento de modelo de governança aplicado a redes de políticas públicas de promoção a igualdade social”, gerido pela Fapeu e coordenado por Marcos Dalmau, preso na deflagração da operação. A segunda citação está em uma lista quase idêntica, repete-se cinco dos oito professores e entidades. Muda apenas que este projeto, também gerido pela Fapeu, se chamava “Aperfeiçoamento em Promoção da Saúde” e era coordenado pelo também preso temporariamente na deflagração Eduardo Lobo”. Junto a Áureo está citado no projeto de Dalmau o professor Gerson Rizzatti Junior, que solicitou abertura de PAD contra o corregedor.

Áureo afirma não haver algo de errado com o recebimento de bolsas. Para ele todo mundo já recebeu bolsa em algum momento e nem por isso estariam fazendo algo ilegal.

Em uma nova reunião do CUn, os aliados de Cancellier fizeram duras críticas à decisão da reitora em exercício e ao modo de trabalhar de Hickel. Em 31 de outubro, Alacoque pediu afastamento de suas atividades na universidade por 60 dias por motivos de saúde. Com a saída dos pró-reitores, que seriam os sucessores no cargo, Ubaldo Cesar Balthazar, diretor do Centro de Ciências Jurídicas (CCJ) e aliado de Cancellier, tornou-se reitor em exercício por ser decano entre os conselheiros. O CUn aprovou por unanimidade o pedido de nomeação de Ubaldo como reitor pro tempore, a ser enviada para o Ministério da Educação (MEC).

Tão logo assumiu o mandato, restabeleceu a equipe de pró-reitores de Cancellier e disse que espera contar com Alacoque, assim que ela voltar de sua licença. O futuro ainda está indefinido: uma resolução do MEC diz que uma lista tríplice escolhida pelo CUn deve ser enviada a Brasília para a escolha do sucessor, mas Ubaldo espera conseguir um prazo de até seis meses para a escolha do novo reitor. Atualmente, o corregedor da UFSC, Rodolfo Hickel do Prado, está afastado da função por 60 dias, por motivo de saúde.

#Esta matéria foi publicada originalmente no em 16 de novembro de 2017

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Matheus de Moura
Matheus de Moura

Jornalista. Escritor. Neguinho. Catarinense no Rio. Co-criador de: N.E.U.R.A Magazine e Não Há Respostas Quando Morre uma Pobre