Mais um desabafo qualquer pós Bolsonaro

Raiva e melancolia definem meu sentimento com a virada dos fascistas

Matheus de Moura
4 min readOct 28, 2018
Houve um tempo que a bandeira do Brasil significava Brasil, hoje é sinônimo de perigo. Foto: Matheus Vieira

Faz tempo que não escrevo algo que não seja uma reportagem. Faz tempo.

Tenho 22 anos, e esse é facilmente um dos piores dias da minha vida. É um dia que tanto faz se choveu ou se deu sol, se os pássaros cantaram ou se foram comidos por lagartos, se nasceram mais pessoas do que morreram; hoje todo mundo morreu. Eu acordei preparado para o resultado vermelho nas telas, mas não o vermelho que eu tanto quis — não sentei nessa cadeira para escrever textos isentos, sou comunista e com orgulho. Hoje o vermelho é de sangue, da diarreia coletiva que infectou o rio Amazonas, que bombeia a vida e agora só verá os olhares tristes das tribos que deverão sentir o cheiro putrefato de um país politicamente lúgubre.

Sou só um preto sulista, um mestiço café-com-leite da terra dos barrigas verdes. De origem pobre, mas que subiu na vida no período em que um nordestino operário com experiência de paulista subiu no palanque e cumpriu menos da metade do que prometeu, e mesmo assim foi muito mais do que a população brasileira estava acostumada. Sou um ninguém, uma penumbra que caminha anotando o que vê, ouvindo quem fala e lendo aqueles que só sabem gesticular. Tenho só 22 anos e já senti as paredes se fecharem e me engolirem no breu do luto; perdi meu irmão, apenas um ano mais novo do que eu, um jovem sarará, que sofria autismo severo, morto por falha generalizada dos órgãos, começando pelo rim. Eu o vi morrer, eu estava na UTI, eu ouvi a máquina apitar, preocupada, como quem suplica pela vida de uma criança, que, de alguma forma, não deixa de ser verdade.

Sou só um preto sulista, um mestiço café-com-leite da terra dos barrigas verdes.

Hoje, senti algo parecido. Estava num bar que no primeiro turno foi reduto dos “elenãos”, salvo a exceção de dois bolsonaristas, sendo um rapaz barbudo, padrão, do tipo que passa despercebido em qualquer lugar, e o outro um jovem que parecia um pão de queijo gigante, e que no lugar de gordura tinha apenas um excedente de músculo que ao primeiro cutucão explodiria. Esse mesmo bar, hoje, foi infectado pela peste que assombrou a Europa dos anos 40, a América Latina dos anos 60 a 90, e que sobe pelos bueiros de diferentes partes do ocidente contemporâneo. O clima já estava tenso por natureza, claro.

A bebida foi entrando goela abaixo, entorpecendo a angústia que, sabidamente, estava por vir.

E veio.

Primeiro, Santa Catarina elege um mini-Bolsonaro com 70% dos votos. Provando que saí de um ninho de cidadãos de bem que querem tudo, menos contato com preto, pobre, favelado, e que têm orgulho de ter colonização majoritariamente europeia, pois creem que isso os impede de atingirem níveis de violência como os do RJ, um lugar infectado pela praga africanóide. Pois bem, minha mãe (preta), sofre ao ter que se manter convivendo com aqueles que finalmente deixaram cair as máscaras de Veneza, meus amigos que tanto militam — antifascismo, causa ambiental, causa LGBT, etc — , também.

Em seguida, a votação presidencial. Todos sabiam, lá no fundo, que não daria para virar, mas tentamos, independente de tudo, tentamos. Os urros dos gorilas de penugem no lugar de pele faziam a minha cerveja tremer. Não aguentei, abracei minha namorada e chorei, contido, mas chorei. Os votos foram subindo, Santa Catarina continuou a decepcionar, Rio de Janeiro quase tanto quanto, quando percebi, já não conseguia mais enxergar, meu para-brisa já estava embaçado demais para continuar nesta estrada. Pagamos a conta e, cautelosos, tentamos seguir.

Elegeram um homem que me odeia, que odeia os favelados com quem cresci, que odeia meu falecido irmão portador de deficiência — Bolsonaro foi contra a cota para deficientes — , que odeia minha mãe, minha namorada e meus amigos à esquerda.

A cidade era um grande grito de horror disfarçado de sorriso. Os focos alaranjados afunilavam a luz, meio à escuridão da noite carioca; do alto dos prédios da elite niteroiense, o mantra FORA PT, SEUS FILHOS DA PUTA; motos buzinavam, tiros e fogos se confundiam numa alegria efusiva, do tipo que mata seu labrador do coração — ou de desgosto — ; taquicardia atingia a todos nós, que tentávamos chegar em casa sem se deixar levar pela paranoia, amedrontados pela invasão, pelas caras simpáticas que poderiam muito bem esconder a verdade monstruosa dos dois dígitos que condenaram a própria existência de muitos brasileiros; por fim, o hino nacional, subindo, subindo e subindo, como trilha sonora da minha Hora do Pesadelo. Se fui engolido pela paredes com a morte de meu irmão, hoje os prédios se desabaram sobre meus 65 quilos de puro osso, achados e deprimidos, num ser que busca nas memórias felizes os motivos para resistir…

Resistirei.

Esse texto é um fluxo de pensamento, não há pretensão de qualidade literária, nem de perfeição ortográfica.

Mesmo autor de Poesia Vadia

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Matheus de Moura

Jornalista. Escritor. Neguinho. Catarinense no Rio. Co-criador de: N.E.U.R.A Magazine e Não Há Respostas Quando Morre uma Pobre