Uma relação entre Ciência e Religião

Estudo feito para o grupo local da Associação Brasileira de Cristãos na Ciência em Campinas/SP.

Matheus Nóbrega
58 min readApr 11, 2023

Esse é um esboço do primeiro estudo do ano da ABC² Campinas, iniciando o ciclo formativo 1: Introdução à filosofia da ciência e religião. Disponível em nosso canal no YouTube.

Recorte da obra A Criação de Adão, Michelangelo, 1510

Introdução

Tentativas de explicar a realidade e dar sentido às coisas a nossa volta sempre fizeram parte da natureza humana. Esse anseio por conhecer faz parte da nossa criação. De fato, o ser humano tende a uma busca por entendimento, ele é curioso por natureza.

Assim como toda a realidade, a ciência também nasceu na Criação. Mas calma, ela não é fruto direto da obra divina, mas indireto. No ato da Criação, Deus é intencional ao criar um jardim que anseia por ser cultivado, por ser explorado, por ser cuidado. No sexto dia da Criação, após criar o ser humano, o Senhor instituiu uma lei, um mandato, a toda humanidade: cultive a minha criação, a conheça, cuide dela. E ao mesmo tempo que Deus estabelece um mandato, Ele compartilha com o ser humano uma das suas características mais marcantes: sua criatividade. Agora, somos seres capazes de explorar e conhecer a realidade criada. E através dessa criatividade, somado com o mandato cultural, somos capazes de fazer ciência.

Então disse Deus: “Façamos o homem à nossa imagem, conforme a nossa semelhança. Domine ele sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu, sobre os animais grandes de toda a terra e sobre todos os pequenos animais que se movem rente ao chão”. Criou Deus o homem à sua imagem, à imagem de Deus o criou; homem e mulher os criou. Deus os abençoou, e lhes disse: “Sejam férteis e multipliquem-se! Encham e subjuguem a terra! Dominem sobre os peixes do mar, sobre as aves do céu e sobre todos os animais que se movem pela terra”. Disse Deus: “Eis que lhes dou todas as plantas que nascem em toda a terra e produzem sementes, e todas as árvores que dão frutos com sementes. Elas servirão de alimento para vocês. E dou todos os vegetais como alimento a tudo o que tem em si fôlego de vida: a todos os grandes animais da terra, a todas as aves do céu e a todas as criaturas que se movem rente ao chão”. E assim foi. E Deus viu tudo o que havia feito, e tudo havia ficado muito bom. Passaram-se a tarde e a manhã; esse foi o sexto dia. […] Então o Senhor Deus colocou o homem no jardim do Éden para cuidar dele e cultivá-lo. — Gênesis 1:26–31, 2:15

Por definição, o mandato cultural é a vice-gerência do homem sobre o cosmos. Dessa forma, o ser humano deve exercer domínio, envolvimento, cuidado e influência sobre toda a Criação. E mais do que isso: sobre toda a cultura; mas falaremos um pouco disso depois. Por isso, o trabalho do ser humano referente à Criação é conhecer, desenvolver e manter tudo aquilo que o Senhor havia criado. Através desse mandato, Deus colocou a humanidade em um relacionamento singular, único e excepcional com a Criação: dominar e sujeitar (Gn 1:28), cuidar e cultivar (Gn 2:15).

Além de exercer domínio sobre a Criação, o mandato cultural também estabelece o nosso dever de influenciar a cultura através do Evangelho. Sendo assim, o mandato se estende para além da natureza e alcança também a cultura. Elevar o mandato cultural às suas últimas consequências significa influenciar as pessoas a nossa volta através do Evangelho de Jesus Cristo, e levá-las a obediência a Cristo. Logo, o mandato cultural, em seu último nível, mescla-se com o mandato do Evangelho, ou a Grande Comissão, e aponta, como em sua origem, ao seu Criador.

Contudo, nós quebramos o mandato cultural e destruímos a natureza. A ordem do Senhor Deus para nós era para dominarmos a Criação sem destruí-la, para cultivarmos sem explora-la, para desenvolvermos protegendo-a, como um rei que protege seu reino, mas falhamos e destruímos a natureza ao nosso redor. Agora, temos um sério problema ecológico, e antes dele ser de fato um problema ecológico ele é um problema teológico, uma vez que o ser humano rompeu a ordem estabelecida por Deus, e fez do seu domínio sobre a natureza, uma completa exploração dela.

Para Agostinho, o coração humano é como uma flecha atirada a um alvo. Ele é a fonte primária de nossos desejos, sonhos e ambições. E mais do que isso, o coração humano é a fonte de todos os nossos amores, e foi feito originalmente para amar a Deus e ter cada um dos seus aspectos governados por Ele. Contudo, a Queda corrompeu toda a Criação e atingiu o coração humano, deturpando não somente o nosso intelecto, mas toda a direção dos nossos amores. Segundo João Calvino, nosso coração agora é uma perpétua fábrica de ídolos. Agora, olhamos para a natureza com o desejo de dominá-la para explorá-la por completo a fim de satisfazer as nossas ambições. Agora o nosso coração é como uma flecha que traça um caminho errado, distante do único alvo possível, isto é, Deus.

Por causa disso, há inimizade entre o ser humano e a Criação. Nosso coração tem a intenção de se sobrepor a realidade criada para dominá-la e explorá-la. Para Paulo, a Criação está agora sujeita à vaidade e a futilidade, mas não de forma voluntária e sim por causa daquele que a sujeitou.

A natureza criada aguarda, com grande expectativa, que os filhos de Deus sejam revelados. Pois ela foi submetida à futilidade, não pela sua própria escolha, mas por causa da vontade daquele que a sujeitou, na esperança de que a própria natureza criada será libertada da escravidão da decadência em que se encontra para a gloriosa liberdade dos filhos de Deus. Sabemos que toda a natureza criada geme até agora, como em dores de parto. — Romanos 8:19–22

A Queda não só foi uma alteração da direção correta do coração, mas um evento tão devastador que teve um efeito cósmico, deturpando não apenas o ser humano, mas todos os aspectos da realidade. Agora, toda a Criação geme, como em dores de parto, aguardando a sua própria redenção.

Mas há uma boa notícia.

Ainda que a Queda tenha distorcido toda a Criação, a Redenção obtida por Cristo em sua morte e ressurreição alcançou todos os domínios da realidade criada por Deus. Um problema tão grande exigiria uma redenção igualmente grande.

Assim, a obra de Cristo é tão absoluta, profunda e insondável, de tal forma que penetra o íntimo de toda a realidade. Da mesma maneira que todas as coisas foram criadas nEle, por Ele e para Ele (Cl 1:16), o seu sangue redime todas as coisas que são dele por direito. A partir de então, sua extraordinária obra de Redenção visou a reconciliação não somente de almas, mas de tudo aquilo que está sobre os céus e sobre a terra. Cristo agora é Rei soberano sobre toda a Criação, seu domínio não tem fronteiras e deve governar sobre absolutamente tudo; toda a realidade criada, toda existência, tudo que há muito além do que podemos ver ou pensar, está agora debaixo de apenas um Senhor.

Portanto, pela Redenção em Cristo Jesus, olhamos para a natureza com o olhar Dele. Refeitos pela sua morte e ressurreição, procuramos obedecer o mandato outrora quebrado por nossa velha criatura. Nesse novo tempo, ainda cabe a nós, reorientar cada centímetro da nossa visão de mundo com intuito de cultivar a Criação de Deus, tudo agora deve ser redimido e reorientado para o completo e absoluto senhorio de Cristo.

Por sua vez, a ciência também deve ser reorientada para o completo e absoluto senhorio de Cristo. Como dito, ela também faz parte da Criação e é resultado do mandato cultural. Todavia, os efeitos da Queda também atingiram o que entendemos como ciência. Devido a isso, a humanidade caída olha para a ciência com a intenção de alcançar Deus, como uma espécie de segunda Babel, a fim de colocar o ser humano no centro do universo e estabelecer um controle sobre todas as coisas. Tudo isso apenas para satisfazer nossas vaidades. A ciência então é vista como uma arma, ou como um escape, para colocar Deus em segundo plano e o ser humano, ou sua racionalidade, no centro de todas as coisas.

Mas isso não é ciência.

A propósito, acredito que etimologia não é a melhor forma de se iniciar uma discussão teológica. Por isso as definições para alguns termos foram deixados intencionalmente para agora.

Uma das definições mais comuns para ciência, e possivelmente a que encontraremos no dicionário, é que ciência é um processo sistemático de investigação e descoberta baseado na observação, experimentação e análise crítica dos fenômenos naturais e do mundo ao nosso redor. Essa é uma definição moderna e basicamente segue as etapas do método científico: observação, questionamento, hipótese, experimentação e conclusão. Por isso a ciência na maioria das vezes é definida como um processo de investigação, porque é exatamente isso que ela faz: investiga.

Contudo essa não é a única definição de ciência, que por sinal não é nada fácil de definir. Para Tomás de Aquino (1225–1274) por exemplo, a ciência é uma virtude pessoal de resolver problemas relacionados a realidade. Já para Francis Collins, a ciência é uma dádiva do Criador.

A curiosidade que nos foi incutida para entender como o universo funciona pode inspirar ainda mais admiração ao Criador. De forma alguma, esta dádiva poderia ser uma ameaça para Deus, o autor de tudo. Celebre o que a ciência pode nos ensinar. Pense na ciência como uma forma de adoração. — Francis Collins [1]

A ciência tem por objetivo entender como o universo funciona, e desse entendimento, resultar em mais admiração ao Criador. Nesse sentido, a ciência é como a arte, ou a tarefa, de conhecer a Criação de Deus. A virtude pessoal de resolver problemas de Aquino reflete do fato de que os seres humanos receberam de Deus a criatividade para fazer ciência e cultivar a natureza, e assim, contemplar a realidade criada, e a partir disso admirar ainda mais o seu Criador. De fato, uma forma de adoração. E tudo que fazemos pode ser qualificado como ato de adoração, uma vez que somos adoradores por natureza. O nosso maior obstáculo está em reorientar o coração a correta adoração, uma adoração a Deus, através de tudo que fazemos. Uma adoração que vai além do culto; não apenas um dia de adoração, mas uma vida de adoração.

E para aqueles que se interessam ou trabalham com ciência: a adoração por meio da ciência.

É nesse momento que temos a intersecção entre ciência e religião. Quando ela encontra o coração humano, nossa fonte de adoração.

Assim como a ciência, o termo religião também não é facilmente definido. Uma das explicações mais usadas para religião é que ela pode ser definida como um sistema de crenças, valores e práticas que trazem sentido à existência humana e as relacionam com o sagrado, com o divino ou com o transcendente. Nas palavras de Rudolf Otto, a religião nos relaciona com o totalmente outro.

Um dos problemas desse termo é que ele é facilmente confundido com outros. É comum ouvirmos que religião nada tem a ver com o sagrado, ou até mesmo que ela é apenas uma forma de prisão humana. Contudo o termo religião é muito mais profundo que interpretações equivocadas.

Na antiguidade, religião trazia consigo o significado de por em ligação, de unir. Nesse sentido, a religião seria o elo entre o ser humano e o divino, a ligação entre Deus e os homens. Interessante destacar que o termo não refere-se a um conjunto de doutrinas ou de dogmas, mas a um modo de vida. Na antiguidade, religião era o que unia o mundo natural com o sobrenatural, o comum com o sagrado.

Além disso, a religião carrega em si uma característica distintiva, ela fornece uma estrutura para a compreensão da vida, da morte e do propósito da existência humana. De fato, essa era a grande questão dos filósofos pré-socráticos: entender a realidade. Originalmente, filósofos eram apenas pessoas que faziam perguntas sobre todas as coisas. Mas as perguntas, uma vez feitas, pareciam nunca ser respondidas. Ao passar dos anos, a filosofia começou a ser classificada com mais rigor e as perguntas a respeito da realidade, tempo, espaço, causa e transcendência começaram a ser classificadas como Metafísica.

Essa nova disciplina abrangia um entendimento sobre a totalidade da realidade, enquanto a ciência aspectos particulares dela. No momento em que o conhecimento se tornava a ambição mais completa do ser humano, este parecia sempre precisar de mais. E as perguntas, nem sempre eram respondidas. Para conseguir ilustra-las e assim fornecer algum tipo de resposta, muitos aderiram ao mito, uma nova forma de linguagem para explicar a realidade, mas essa é outra história. Aqui, a busca por sentido não encontra seu fim pelo fato de que não somos apenas seres pensantes, somos seres que amam. Dessa forma, o centro do nosso ser não é o cérebro, mas o coração. Por causa disso, o simples fato de obtermos uma quantidade de informação não nos satisfaz, precisamos sempre de mais.

As perguntas que ainda pairam sobre a cabeça de estudiosos ao longo dos anos encontraram respostas na religião, e não uma simples resposta para preencher uma lacuna, mas um significado e um sentido.

A intersecção entre ciência e religião faz com que esse processo sistemático para explicar a realidade encontre um encaixe que forneça uma melhor e maior compreensão. É nesse ponto que o ser humano volta mais uma vez ao seu Criador e encontra mais do respostas, encontra também um sentido.

Isso ocorre porque não há um ser humano que não não seja religioso. Nós somos seres que creem, somos homum religious, em um termo mais caprichado. Faz parte da nossa criação.

De fato, o ser humano crê. Isso é intrínseco a nossa natureza. E mais do que isso, Deus colocou em nosso coração um anseio pela eternidade (Ec 3:11), um desejo natural para compreender o divino. Portanto, uma vez que recebemos de Deus a ordenança de cultivar o natural, também recebemos um anseio por conhecer o sobrenatural. Aqui, tentativas de explicar e dar sentido a realidade criada encontram em Deus seu fim e propósito, sua arché e telos.

Por fim, resumir esses dois aspectos aos termos “ciência” e “religião” é reduzir a sua profundidade, por isso partimos de uma problemática e uma breve análise teológica antes de seu significado. Mas para fins de compreensão, usamos essas duas ferramentas para conhecer a Criação e o Criador.

Para concluir essa parte, vimos que ambos conceitos provém de uma mesma fonte, e usá-los como dádivas de Deus faz com que finalmente sejam utilizados conforme Ele estabeleceu. De fato, ciência e religião não são antagônicos. De forma nenhuma. Aliás, esse conflito é invenção de uma mentalidade moderna, mas veremos sobre isso em outra parte.

Deus pode ser adorado tanto por meio do culto como por meio do seu trabalho em um laboratório ou na universidade. Deus é revelado por meio das Escrituras Sagradas e plenamente revelado por meio de seu Filho Unigênito Jesus Cristo, e também revelado por meio de sua Criação. Importante ressaltar que não há igualdade entre revelação geral e especial, mas com certeza não há contrariedade.

Sua Criação é tão impressionante, complexa e extraordinária que não pode estar em guerra consigo mesma. Se a Bíblia e a ciência parecem estar se contradizendo, certamente estamos cometemos um erro ao interpretar uma ou outra.

Agora que compreendemos que ciência e religião não são antagônicas e provém de uma mesma Fonte, partiremos para entender como essa relação se deu ao longo dos séculos. Essa é a primeira de três partes onde abordaremos a relação entre ciência e religião no passado, no presente e no futuro. Primeiro, como ocorreu ao longo dos anos.

Parte I: Uma relação na história.

Os termos “ciência” e “religião” nem sempre existiram. Esses dois objetos atravessaram a história, onde seus conceitos surgiram e se desenvolveram ao longo dos anos, e assim não são os mesmos de tempos atrás.

Da mesma forma, a própria interpretação do que é ciência e do que é religião também mudou. Nem sempre as pessoas pensaram nesses termos ou dividiram as coisas entre ciência e religião, essa ideia é moderna. Na antiguidade, não há separação entre esses conceitos. Essa dicotomia moderna não existia. Desde o princípio, todo ato humano tem consequências religiosas e partem de um entendimento religioso da realidade. O ser humano é integral, e seu entendimento da realidade também é.

Seu olhar para o passado, a fim de entendê-lo, deve partir de um esvaziamento de pressupostos e conceitos estritamente modernos, uma vez que usar ferramentas do presente para explicar coisas do passado não dá certo. Para isso, os historiadores têm uma palavra interessante: anacronismo. Anacronismo é olhar o passado com os olhos do presente, e inserir, a força, conceitos contemporâneos em realidades passadas. Ilustrando, é como colocar um smartphone na mão de Moisés, como escutei uma vez de um professor do seminário. Devemos ler o passado com os olhos do passado, e sermos mais compreensivos enquanto a história é escrita.

Ao longo do tempo, a ciência pode ser vista como um grande edifício fora da individualidade do ser humano, o qual apenas contribuí para sua construção. Dessa forma, a resposta para a pergunta “o que é ciência?” Depende. Depende para quem, quando e onde.

Há muitos casos interessantes sobre a relação entre ciência e religião na história. Mas focarei em alguns deles. O primeiro, conta as relações entre as reformas religiosas do século XVI e a revolução científica a partir da obra de Francis Bacon.

Capítulo 1: Francis Bacon e a Reforma Científica

O século XVI foi um período de grandes mudanças e transformações na história mundial, sendo marcado por eventos importantes como a Reforma Protestante, as grandes navegações, a expansão territorial europeia, o surgimento do humanismo e o renascimento cultural.

Na Europa, eclodiu o que viria a ser conhecido anos mais tarde como a Reforma Protestante, liderada por Martinho Lutero, a partir de 1517, ocasionando em um ponto de inflexão na história do cristianismo. Ao mesmo tempo, a expansão marítima europeia resultou em um aumento do comércio global e do contato entre diferentes culturas, mas também causou a escravização e a exploração de povos colonizados.

Nesse mesmo cenário, o Renascimento Cultural trouxe um florescimento das artes, ciência e filosofia, com o surgimento de artistas como Leonardo da Vinci e Michelangelo e pensadores como Galileu Galilei e Francis Bacon. Vamos focar nesse último.

Francis Bacon (1561–1626) foi um filósofo cristão, estadista e cientista inglês, nascido em Londres em uma família aristocrática. É conhecido como um dos pensadores mais influentes da história da filosofia ocidental e considerado o “pai da ciência moderna” ou “pai do método científico”, embora essa paternidade possa ser compartilhada com algumas figuras como Galileu e Isaac Newton.

Bacon estudou na Universidade de Cambridge, uma das universidades mais prestigiadas do Reino Unido, onde se formou em Direito e Filosofia.

Muito importante ressaltar que até então tudo que hoje podemos olhar para o passado e colocar o selo de “ciência” era tratado como filosofia natural, ou apenas conhecimento, seja ele “natural” ou “sobrenatural”, uma vez que o termo ciência não nasceu de uma hora para outra, muito menos era algo colocado em caixinhas como nossa mente grega faz, mas se desenvolveu ao longo dos anos e incorporou em si as interpretações ao longo do tempo. Nesse cenário, pode-se dizer que em Bacon o termo ciência recebe um ponto de inflexão em sua história. Mas ainda não recebe o significado que conhecemos hoje.

Embora Francis Bacon tenha sido um político de carreira, sua contribuição para a filosofia natural da época e a nascente ciência moderna colocou o seu nome na história. E o principal motivo foi seu programa de reforma do conhecimento, que causou uma revolução científica na Europa nos anos seguintes.

Francis Bacon desenvolveu um grande projeto de reforma do conhecimento chamado de a grande instauração. O termo original em que Bacon batiza seu programa de reforma é instauratio magna, e ele trouxe esse termo do Antigo Testamento da Bíblia Sagrada, em sua versão em latim, no trecho que narra a reconstrução do Templo de Jerusalém, destruído após a invasão babilônica em 586 a.C. Para ele, o conhecimento precisava de uma reforma para ser reconstruído sobre fundamentos adequados para oferecer um novo lugar para a filosofia natural e religião.

O nascente projeto de conhecimento de Bacon caracterizava-se principalmente pelo seu método de estudo baseado no indutivismo e no empirismo. De forma resumida, o indutivismo é uma corrente filosófica que sustenta que o conhecimento científico deve ser obtido através da observação de casos particulares que permitem estabelecer uma lei geral, ou seja, um caminho para o conhecimento que parte de particularidades para o conhecimento geral; como uma grande coleta de informações, e a partir desse grande volume de informações chegar a conclusões verificadas e testadas. Já o empirismo defende que todo o conhecimento deve ser baseado na experiência, onde há a necessidade de observação e experimentação até chegar às conclusões finais. Em resumo: observação, questionamento, hipótese, experimentação e conclusão. O método científico como conhecemos. Dessa forma, Bacon inaugurou uma nova forma de produzir conhecimento sob novos fundamentos que se opunham ao dedutivismo e racionalismo da época.

Nessa empreitada de Bacon, sua obra mais famosa é Novum Organum Scientiarum, publicada em 1620, onde ele fundamenta toda sua defesa do método científico baseado na observação sistemática dos fenômenos naturais, na formulação de hipóteses e na experimentação para validação das hipóteses. Além disso, Bacon acreditava que a ciência deveria ser usada para melhorar a vida humana, através da criação de novas tecnologias e práticas.

Frontispício da obra Novum Organum Scientiarum, 1620, de Francis Bacon

O termo Organum refere-se a coleção de obras de Aristóteles sobre lógica, o padrão de conhecimento da época. Bacon se coloca aqui como uma nova base de conhecimento, contra-aristotélica é claro, ou seja, uma nova forma de fazer ciência diferente do método tradicional. Isso se caracteriza como o primeiro elemento de ruptura da nova reforma científica de Bacon para com o padrão de conhecimento tradicional.

Outro elemento característico da obra de Bacon são os dois pilares na capa de sua obra que simbolizam as Colunas de Hércules. Esse termo refere-se ao estreito de Gibraltar, o qual separa o Mar Mediterrâneo do Oceano Atlântico, o conhecido do desconhecido. As Colunas de Hércules eram um alerta para não avançar a partir daquele ponto, non plus ultra, ou “não mais além disso”, ou seja, colocando essa representação em seu livro, Bacon se coloca como um novo caminho para o desconhecido, uma vez que as grandes navegações proporcionaram o descobrimento do Novo Mundo, Bacon faz um paralelo com a descoberta de uma nova ciência.

Mas o símbolo que mais nos interessa nessa capa é o versículo 4 do capítulo 12 do livro de Daniel: multi pertransibunt et augebitur scientia, ou quando muitos perambularão e o conhecimento aumentará. É claro que essa profecia não se refere ao nosso conhecimento sobre ciência ou ao contexto do século XVI, mas Bacon adotou essa profecia como algo para seu próprio tempo e inseriu em seu livro como uma nova perspectiva para o conhecimento e um forte embasamento teológico para sua reforma científica.

Nesse sentido, há um elemento religioso muito forte no contexto em que Bacon está inserido: uma mentalidade cristã. Não é a toa os termos para sua obra e consequente reforma do conhecimento. Bacon não é um cientista de jaleco do século XXI, mas uma figura de seu tempo, com a mentalidade de seu tempo. E como tal, um dos pontos que mais influenciaram Bacon em sua reforma do conhecimento foi a Queda.

No século XVI, um dos pressupostos teológicos mais importantes nesse contexto era de que os seres humanos tiveram os seus sentidos corrompidos com a Queda. Adão e Eva eram seres perfeitos, que detinham o conhecimento perfeito sobre a totalidade da realidade, visto que estavam ligados diretamente com a fonte de todo o conhecimento, com a fonte de toda a verdade, isto é, Deus. A partir da Queda, não somente seus corpos foram corrompidos e expulsos fisicamente do Paraíso, mas suas mentes também foram corrompidas e desligadas da fonte da verdade. Dessa forma, a humanidade tinha seus sentidos corrompidos e assim, seu conhecimento também era corrompido.

Nesse cenário, Bacon usa de sua reforma do conhecimento como uma ideia de retorno à perfeição, de reparar a Queda e reconquistar o conhecimento que provinha de Deus. A grande instauração configura-se aqui como uma esperança escatológica de restauração de nossas mentes à soberania e ao poder que o ser humano tinha no primeiro estágio da Criação. Para Bacon, o fim do conhecimento é de restituição e de domínio sobre toda a Criação.

Por causa disso, havia um forte apelo a um retorno ao passado de domínio outrora perdido pela Queda. A reforma de Bacon inaugurou um movimento de retorno à Natureza, não comentários ou resumos dela, mas um retorno à fonte com uma leitura da Natureza, e uma leitura literal, não mais alegórica. Esse elemento de retorno às fontes foi muito influenciado por outro movimento de reforma do século XVI: a Reforma Protestante, onde um dos seus principais pilares era o retorno às Escrituras, ou Sola Scriptura, como os teólogos gostam de chamar. Assim, da mesma forma que essa reforma religiosa trouxe um retorno às Escrituras, a reforma científica de Francis Bacon trouxe um retorno à Natureza, ou Sola Natura. Além disso, temos aqui o conceito que ficaria conhecido como Os Dois Livros de Deus: o livro das obras de Deus, a Natureza, e o livro das palavras de Deus, as Escrituras. Os quais poderiam ser interpretados livremente a partir dessas reformas.

Vede portanto que vossas riquezas estão nas mãos de poucos e que as esperanças e as fortunas de todos os homens estão colocadas talvez em seis cérebros. Deus não vos dotou de almas racionais para que presteis aos homens o tributo que deveis ao vosso Autor (vale dizer, a fé que deveis a Deus e às coisas divinas), nem vos concedeu os escritos de poucos homens, mas para estudar o céu e a terra que são obra de Deus. — Francis Bacon, 1608

Para Bacon, os seres humanos tem uma mente suficientemente capaz de ler a Natureza com seus próprios olhos e não por meio de terceiros. Da mesma forma forma que o reformadores também defendiam que os cristãos poderiam ler as Escrituras de forma livre.

Com isso, Bacon rompeu definitivamente com o padrão de conhecimento da época e promove uma revolução na ciência.

Agora há um novo lugar para a ciência e a religião. Não apenas no monastério para os religiosos ou fora da vida comum para o filósofo natural. Assim, a reforma científica de Bacon proporcionou um novo lugar social para filósofos e teólogos, onde eles poderiam oferecer mais a sociedade com seus trabalhos, tendo a ciência como algo para adorar a Deus e atender as necessidades humanas.

Dessa forma, ciência e religião têm um novo lugar na sociedade: não mais contemplativa apenas, mas ativa. Um edifício, em que cada um contribuí para o crescimento da ciência e do conhecimento. Não mais individual, mas coletiva. Uma ciência que encontra o seu lugar no novo, no desconhecido, e oferece não apenas contemplação da natureza criada por Deus, mas um entendimento dela, e em conjunto com a religião, traz um relacionamento mais próximo com o Criador.

Agora que vimos o início da ciência como a conhecemos, partiremos para o caso mais emblemático quando falamos da relação entre ciência e religião ao longo da história: o caso Galileu.

Capítulo 2: Galileu Galilei e a Controvérsia Copernicana

Galileu Galilei (1564–1642) foi um físico cristão, matemático, astrônomo e filósofo italiano, nascido em Pisa, considerado uma das figuras mais importantes da revolução científica do século XVII. Galileu frequentou a Universidade de Pisa, uma das mais antigas da Itália, e estudou matemática e física, não se formando pois deixou a universidade antes de concluir seus estudos e não obteve um diploma universitário formal. Galileu também era uma figura importante da sua época, trabalhando para a corte de Medici em Florença, capital da região Toscana.

O caso Galileu é um dos mais famosos nesse campo e serve tanto para o entendimento da relação entre ciência e religião ao longo da história como para a criação de um imaginário conflituoso entre essas duas coisas.

O trabalho de Galileu envolvia estudos principalmente sobre física e astronomia, e contribuiu com grandes teorias científicas, incluindo a lei da inércia, a lei da queda dos corpos e a lei dos movimentos dos projéteis, além de ter sido um dos primeiros a utilizar o telescópio para observar o céu noturno.

Galileu também é considerado como um dos pais da ciência moderna, e sua abordagem experimental e empírica da ciência foi fundamental para o desenvolvimento da metodologia científica, utilizada até hoje.

A obra mais famosa de Galileu é Diálogo Entre os dois Sistemas Principais de Mundo: Ptolemaico e Copernicano, publicado em 1632, onde Galileu vai fundamentar toda sua defesa da teoria heliocêntrica de Copérnico, que afirmava que a Terra e os outros planetas orbitavam o sol.

Entretanto, antes de chegarmos nessa obra muitas coisas antecederam Galileu, e serviram para construir todo o contexto de um dos casos mais importantes da história da relação entre ciência e religião.

Assim, antes de entrarmos no caso Galileu, precisamos falar de outra figura importante nesse cenário: Nicolau Copérnico. Nicolau Copérnico (1473–1543) foi um astrônomo e matemático polonês que ficou conhecido por ter proposto uma nova teoria astronômica. Copérnico afirmava que a Terra e os outros planetas orbitavam o sol, ao contrário do que o modelo tradicional propunha (ptolomaico) de que a Terra era o centro do universo.

Esses dois sistemas de mundo divergiam principalmente sobre qual astro estava no centro do universo e qual se movimentava em torno dele. Mais do que isso, a posição e movimento de astros configurava todo um esquema astronômico rigorosamente estabelecido, que ao ser questionado, mexeu com toda a cosmologia da época. E além de mexer com todo o sistema astronômico da época, alterar a posição dos astros também desmontava toda uma estrutura física e cosmológica, e que também servia de base para reflexões teológicas e filosóficas.

Eram de fato dois sistemas de mundo e que traziam consigo toda uma concepção e entendimento da realidade.

Por sua vez, o sistema ptolomaico, também conhecido como sistema geocêntrico, foi uma teoria astronômica defendida pelo astrônomo grego Ptolomeu no século II d.C e que perdurou como consenso na astronomia por muitos séculos. Ptolomeu aprimorou a teoria astronômica formulada por Aristóteles no século IV a.C. e estruturou um robusto sistema de mundo para a época. Segundo essa teoria, a Terra era o centro do universo e todos os outros astros orbitavam em torno dela. Havia uma forte dicotomia entre Céu e Terra nesse sistema, onde a Terra era onde todos os seres humanos estavam e tudo que era além era chamado de Céu.

Essa teoria era baseado na observação do movimento dos planetas e estrelas, mas acabou sendo questionada com a descoberta da teoria heliocêntrica de Copérnico, que afirmava que a Terra e os outros astros orbitavam o sol. No entanto, o sistema ptolomaico foi aceito pela Igreja Católica Romana e manteve-se como teoria dominante na astronomia até o século XVI.

Com o avanço de diversos estudos, o sistema aristotélico-ptolomaico precisou ser constantemente revisado e aprimorado para sustentar-se frente às novas descobertas, o que não era bem visto, uma vez que um sistema que descrevia o sistema de mundo não o descrevia muito bem. E uma dessas revisões foi feita por Nicolau Copérnico, que propôs então uma nova formulação do sistema astronômico tradicional.

Copérnico apresentou sua teoria em sua obra De Revolutionibus Orbium Coelestium, Sobre as Revoluções das Esferas Celestes, publicada em 1543, pouco antes de sua morte. Nessa obra, Copérnico defendeu que os planetas orbitavam o sol em órbitas circulares, e que a Terra também se movia em torno do Sol.

A teoria de Copérnico gerou controvérsias com a Igreja Católica Romana, que sustentava a visão geocêntrica de que a Terra era o centro do universo. Esse assunto ficou no esquecimento por um tempo, e a Igreja Católica acreditou ter abafado mais um caso que questionava sua autoridade. Entretanto, sua obra influenciou profundamente a astronomia e é considerado um marco na história da ciência. Tanto que esse assunto voltou a tona anos mais tarde com a obra Diálogo Entre os dois Sistemas Principais de Mundo: Ptolemaico e Copernicano, de Galileu Galilei.

Galileu conseguiu comprovar a teoria de Copérnico e validou o sistema heliocêntrico como modelo que melhor descrevia o movimento de corpos celestes e teoria dominante na astronomia e na ciência em geral.

Mas isso não foi tão simples.

Galileu Galilei entra nessa controvérsia em 1610, e antes disso ele não estava muito preocupado com essas discussões. Embora ele tenha sido um aristotélico, Galileu era muito crítico da física de Aristóteles, e dessa forma, crítico de sua cosmologia, o que o levou a estudar o sistema astronômico desenvolvido por ele e aprimorado por Ptolomeu e o rejeitar, adotando o modelo apresentado por Nicolau Copérnico.

Em 1610 Galileu tem acesso ao telescópio holandês, desenvolvido para grandes navegações, e o aprimora, utilizando-o também para observar o espaço, e isso vai permitir que ele observe uma série de fenômenos celestes que a teoria copernicana defendia, mas não conseguia provar. A partir dessas observações, Galileu vai apresentar uma nova visão dos astros celestes, conforme apresentado pela teoria de Copérnico, como a lua e o sol. Para o sistema ptolomaica, os astros do Céu deveriam ser perfeitos, muito diferente da Terra. Galileu então observa que a lua apresentava uma topografia, parecida com a Terra, e que o sol apresentava manchas (solares), e isso fez com que as evidências a favor do sistema copernicano e contra o ptolomaico aumentassem consideravelmente. Galileu apresentou essas observações em duas obras: Mensageiro Sideral, em 1610, e História e Demonstração acerca da Máquina Solar, 1613.

No entanto, Galileu vai apresentar essas ideias em uma sociedade contra copernicana, italiana e de maioria católica, com domínio e autoridade da Igreja Católica Romana, onde a teoria apresentada por Nicolau Copérnico foi rejeitada e descartada.

Estão falando de um novo astrólogo [Copérnico] que quer provar que a terra se move e gira em vez do céu, do sol, da lua, […] O tolo quer virar toda a arte da astronomia de cabeça para baixo. No entanto, como a Sagrada Escritura diz, Josué ordenou que o sol parasse e não a terra. — Lutero, 1539

Há, nesse trecho, um argumento astronômico e um argumento teológico, além dos textos de Josué 10:12–13, temos Salmos 104:5 e Eclesiastes 1:5, na defesa do sistema ptolomaico. Nesse sentido, há uma série de publicações e relatos de textos contra as publicações de Galileu. A partir de então, as obras de Galileu Galilei não são vistas apenas como um ataque ao aristotelismo e a teoria ptolomaica, mas também um ataque contra a ortodoxia e a teologia de sua época.

Dessa forma, nesse contexto, ciência e religião não são conceitos separados, mas uma rede de conhecimento com essas duas coisas profundamente unidas. O efeito que Galileu causa ao abalar as estruturas da astronomia, ao refutar o sistema aristotélico-ptolomaico, é sentido também na religião.

Galileu então se defende muito bem das críticas astrológicas ao sistema mundo que ele adota. Nesse sentido, ele também se vê no direito de se defender das críticas teológicas que recebia. Afinal, assim como Francis Bacon, Galileu Galilei era profundamente católico e fazia questão de ser visto como cristão, que de fato ele era. Sendo assim, ele escreve uma carta a Grã-duquesa Cristina de Lorena, em 1615, apresentando sua defesa às críticas teológicas e respondendo como poderia relacionar as ideias copernicanas com as Escrituras Sagradas.

Discutirei, portanto, os argumentos que esses homens produzem para tornar essa opinião [copernicanismo] detestada e condená-la não apenas como falsa, mas também como herética. Para esse fim, eles se colocam sob o escudo de seu zelo hipócrita pela religião. Eles invocam a Bíblia, que eles distorcem para seus propósitos enganosos. Contra o sentido da Bíblia e a intenção dos santos Padres, se não estou enganado, eles usam tais autoridades até mesmo em questões puramente físicas — onde a fé não está envolvida — Galileu, 1615

Para ele, a correta interpretação da Bíblia, baseado também nas interpretações dos pais da igreja, não rejeitaria o sistema copernicano de mundo, mas o adotaria, rejeitando sim, o sistema ptolomaico, que só é aceito com base nas Escrituras Sagradas quando a distorcem para seus propósitos enganosos. Além disso, Galilei ressalta que a Bíblia não se interessa por questões puramente físicas, onde a fé não está envolvida.

Como podemos imaginar, isso não foi bem visto pela autoridade católica.

Um ponto a se destacar é que a controvérsia no caso Galileu não foi um simples dilema de ciência contra religião, mas de ciência contra ciência e de religião contra religião, com essas duas coisas profundamente unidas.

A interpretação teológica de Galileu, que servia de subsídio para sua defesa do modelo copernicano, apresentava um princípio de acomodação das Escrituras Sagradas, onde a Bíblia havia sido escrita de uma forma que seus leitores, e principalmente os seus primeiros leitores entenderiam. Além disso, a intenção da Bíblia é apresentar os fundamentos da fé e não os fundamentos da ciência. Muito bem exemplificado pela frase do Cardeal Cesare Baronio, em 1615, defensor das ideias copernicanas juntamente com Galileu: A Bíblia ensina como se vai ao céu, e não como os céus vão.

Nesse sentido, o teólogo é alguém mais capacitado para ler o livro das palavras de Deus, isto é, a Bíblia, enquanto o filósofo natural é mais capacitado para ler o livro das obras de Deus, isto é a Natureza.

Após a publicação de seus livros com observações sobre os fenômenos astronômicos e de suas cartas de Galileu Galilei defendendo o sistema copernicano e apresentando sua defesa tanto contra os argumentos astronômicos como contra os argumentos teológicos, Galileu será denunciado a inquisição em fevereiro de 1615. O que antes eram apenas livros e textos contra as ideias defendidas de Galileu, se tornam aqui um processo inquisitorial. Temos aqui os primeiros atritos com a Inquisição.

Em dezembro do mesmo ano, Galileu vai livremente a Roma descobrir o que a inquisição tem contra ele, e um primeiro tribunal não vê indícios de crimes contra a autoridade católica em nenhuma das obras de Galileu. Contudo, um segundo comitê, em fevereiro de 1616, declara o copernicanismo falso e herético, condenando Galileu Galilei. Esse segundo tribunal convoca uma reunião da inquisição, nessa mesma data, com a presença do Papa Paulo V, para decidir o que fariam sobre o caso Galileu.

O tribunal decide então que Galileu deveria receber uma advertência informal de não tocar mais nesse assunto, não ensinar, não publicar mais nenhuma obra sobre, isso em fevereiro de 1616, caso ele desobedecesse essa advertência, ele seria formalmente comunicado a sujeitar-se a sentença, e caso descumprisse-a, abriria então não mais uma advertência, mas um processo inquisitorial, e ele seria preso.

Galileu concorda e, por muitos anos, não tocou mais nesse assunto.

Mas muitas coisas aconteceram nesse período: Belarmino, um de seus acusadores, e o Paulo V, papa que promulgou a sentença, morrem, e é eleito o papa Urbano VIII, amigo pessoal de Galileu, em 1623, o que parece um cenário bem mais favorável para Galileu voltar a publicar e falar de astronomia livremente. Além disso, nesse período, aconteceu a Guerra dos 30 anos, um conflito com raízes religiosas e, nesse sentido, o papa precisou se afirmar como uma figura de autoridade, e isso vai gerar algumas consequências no caso Galileu, e o que poderia parecer uma figura mais acolhedora vai se tornar uma figura bem mais rigorosa. Mas essa questão não é nem de fato uma questão religiosa, nem científica, mas política. Veremos isso com mais detalhes depois.

Então em 1632 Galileu publica sua obra Diálogo Entre os dois Sistemas Principais de Mundo: Ptolemaico e Copernicano, desobedecendo a advertência informal que recebera da inquisição em fevereiro de 1616.

Na obra, Galileu vai apresentar três personagem que conversam sobre a natureza do universo. O diálogo é realizado por Salviati, um defensor do sistema heliocêntrico, Sagredo, um personagem neutro que faz perguntas para ambos os lados, e Simplício, um defensor do sistema geocêntrico. Ao longo do livro, Salviati apresenta argumentos e evidências científicas que defendem o modelo heliocêntrico de Copérnico, enquanto Simplício tenta refutar esses argumentos e defender o modelo geocêntrico de Ptolomeu. O problema, é que o personagem Simplício, que defende o modelo tradicional, é retratado como um bobo, em uma chacota de Galileu, o que faz com que a Igreja Católica tome isso como uma chacota e uma afronta a sua autoridade.

Com isso, vai se formar um comitê especial acerca de sua obra, em setembro do mesmo ano, para além de condenar mais uma vez o modelo copernicano, averiguar a obra de Galileu. Nesse novo tribunal, Galileu então é oficialmente processado pela Inquisição em janeiro de 1633.

Começa aqui de fato o processo inquisitorial de Galileu.

Em todo o processo o governo da Toscana vai apoiar Galileu, e até mesmo abriga-lo na Embaixada Toscana em Roma, onde ele vai, mais uma vez, mas dessa vez para ser julgado. Importante destacar que esse é um caso local, centralizado na Itália e mais precisamente em Roma. Outras pessoas ao redor do mundo, como John Wilkins (1614–1672) na Inglaterra, também vai defender as ideias de Copérnico e Galileu, mas receberá um destino muito diferente.

Então, em abril de 1633, acontece os primeiros interrogatórios, principalmente pelo fato dele ter desobedecido aquela primeira advertência de anos atrás. Galileu alega que aquela advertência era informal, sem peso para condenação, sem muitas provas concretas, o tribunal não consegue contra argumentar Galileu sobre essa suposta violação. Contudo as acusações seguem, e por entenderem que sua obra Diálogo era uma defesa do copernicanismo, condenado como falso e herético, o tribunal da inquisição condena Galileu, e, em abril do mesmo ano, o transferem da Embaixada da Toscana para o Palácio da Inquisição, precisamente no apartamento do promotor-chefe, onde Galileu é preso por três dias antes de ser julgado em definitivo.

Por ser da corte Toscana, Galileu não é preso em uma masmorra, ou em uma prisão qualquer, mas no Palácio da Inquisição.

Galileu então é interrogado definitivamente, dessa vez, sob ameaça de tortura, em junho do mesmo ano. Vale ressaltar que Galileu provavelmente não foi torturado, uma vez que o interrogatório tinha a possibilidade de tortura e pela idade já bem avançada de Galileu, há indícios de que ele não tenha sido em hipótese alguma torturado — não que isso faça a Inquisição ser bondosa, de forma nenhuma, mas é uma questão muito debatida a suposta tortura de Galileu nesse processo.

Seguindo com o interrogatório, e como uma forma de defesa, Galileu admite a transgressão de ter defendido as ideias do copernicanismo por pura vaidade e ambições acadêmicas, e por fim é condenado por suspeita veemente de heresia, não que eles apenas suspeitassem de Galileu, esta é apenas a categoria técnica de sua condenação, ele recita a abjuração formal de que não vai mais falar sobre esse assunto de fato e é punido com prisão domiciliar por tempo indeterminado em junho de 1633.

A proposição de que o sol é o centro do mundo e não se move de seu lugar é absurda e falsa filosoficamente e formalmente herética, pois é expressamente contrária às Sagradas Escrituras. A proposição de que a Terra não é o centro do mundo e imóvel, mas que se move, e também com um movimento diurno, é igualmente absurda e falsa filosoficamente e, teologicamente, considerada ao menos errônea na fé. — Inquisição, 1633

Por fim, suas ideias são consideradas heréticas e Galileu é preso em prisão domiciliar até sua morte em 1642. Após sua condenação, a Igreja Católica proibiu a publicação e leitura das obras de Galileu por mais de 200 anos, contudo, no período em que está preso em prisão domiciliar, Galileu não fala publicamente do copernicanismo, mas continua escrevendo muitos materiais com ideias copernicanas, que de fato ele não vai levar a público, mas que serão publicados após a sua morte.

Além de proibir a publicação e leitura das obras de Galileu por mais de 200 anos, a Igreja Católica apenas permitiu a publicação das obras de Galileu em 1757, 115 anos após a sua morte, desde que fossem feitas correções para evitar qualquer ofensa à Igreja. Foi apenas em 1980, 43 anos atrás, que o papa João Paulo II pediu desculpas em nome da Igreja Católica pelo tratamento dado a Galileu, e reconheceu suas contribuições para a ciência. E, finalmente, em 1992, 31 anos atrás, a Igreja Católica reconheceu que Galileu estava correto em sua afirmação de que a Terra girava em torno do Sol, encerrando formalmente a questão e concedendo a Galileu uma reabilitação póstuma.

Como dito anteriormente, o caso Galileu não é um simples caso de ciência versus religião, mas de Ciência versus Ciência e Religião versus Religião. Nessa controvérsia, estava sendo discutida uma nova concepção de ciência (copernicanismo) contra uma tradicional concepção de ciência (aristotelismo) e uma interpretação bíblica (alegórica/acomodacionista) contra uma tradicional interpretação bíblica (literal/literalista).

Nesse sentido, reduzir o caso a um embate de ciência versus religião perde sua complexidade e dimensão, e contribui para criação de um imaginário criativo de que essas duas coisas sempre estiveram em disputa por território.

O grande Galileu, aos oitenta anos, gemeu ao final de seus dias nas masmorras da Inquisição porque havia provado o movimento da Terra com provas irrefutáveis — Voltaire apud Numbers, 1728

O celebrado Galileu foi colocado na Inquisição por seis anos, e torturado, por dizer que a Terra se movia. — Giuseppe Baretti apud Numbers, 1757

Essas são apenas algumas citações que apresentam falas baseadas na ideia ficcional de que Galileu foi preso em uma prisão comum da época e torturado, o que não há nenhum indício disso. O que se pode compreender do caso Galileu é que havia fortes argumentos astronômicos entre os filósofos naturais de sua época e fortes argumentos teológicos entre os religiosos de sua época. Havia uma discussão entre filósofos e entre teólogos, com Galileu sendo o centro de toda essa controvérsia.

Por fim, Galileu Galilei fundamentou o modelo que seria, ao longo de muitos anos, aceito como sistema de mundo que melhor representava a astronomia geral e também ofereceu novas perspectivas para consolidação do método científico baseado na observação empírica e da experimentação. Além disso, Galileu é considerado o pai da física moderna e foi o primeiro a demonstra que todos os corpos caem com a mesma aceleração, independente de seu peso, ele também desenvolveu leis importantes que descrevem o movimento dos corpos. A construção do telescópio também é creditada a Galileu, não por inventa-las, mas por aprimora-lo e com isso, conseguir realizar observações astronômicas que mudaram a compreensão da natureza do universo.

O caso Galileu é importantíssimo, emblemático e possivelmente o mais famoso na história das relações entre ciência e religião. E nos fornece uma compreensão imprescindível na relação entre essas duas coisas ao longo dos anos.

Agora que abordamos a reforma científica a partir da obra de Francis Bacon e a controvérsia copernicana no caso Galileu, partiremos para a questão mais sensível quando falamos da relação entre ciência e religião: a teoria da evolução.

Capítulo 3: Charles Darwin, Evolução e Teologia Natural

Charles Darwin (1809–1882) foi um naturalista e biólogo britânico que se tornou famoso por sua teoria da evolução por seleção natural. Darwin é provavelmente o “vilão” número 1 na imaginação de muitos religiosos que compreendem a relação entre ciência e religião como duas coisas antagônicas e conflituosos em sua origem e essência.

Darwin nasceu em Shreswsbury, na Inglaterra, em uma família rica e bem estabelecida na sociedade inglesa. Curiosamente, Darwin foi para a universidade para estudar teologia e ser ministro anglicano, uma carreira comum para quem queria estudar a natureza na época, mas se formou em biologia e após se formar na Universidade de Cambridge, embarcou em uma viagem de cinco anos ao redor do mundo, durante a qual coletou amostras de plantas e animais e estudou a geologia e a biologia dos lugares que visitou.

Ao longo de sua vida, Darwin publicou vários livros importantes, incluindo “A Origem das Espécies”, em 1859, que apresentava sua teoria da evolução por seleção natural. Essa obra desencadeou uma série de repercussões na sociedade inglesa do século XIX, e suas contribuições e controvérsias são discutidas até hoje.

Nessa obra, Darwin argumenta que as espécies evoluem gradualmente ao longo do tempo através da seleção natural de características vantajosas, e que a diversidade de formas de vida que vemos hoje é resultado desse processo.

O contexto da Inglaterra do século XIX, onde Darwin publicará sua obra, era muito influenciado pelo Teologia Natural, e mais precisamente a Teologia Natural a partir da obra de William Paley (1743–1805).

De forma geral, Teologia Natural é uma área da teologia que busca conhecer Deus através da observação do mundo natural, isto é, da natureza. Em poucas palavras, a Teologia Natural é a tentativa de encontrar Deus em e por meio da natureza, sem se basear em revelações divinas. Ela integra Filosofia Natural e acrescenta argumentos teológicos para observações do mundo natural que possam levar ao conhecimento do divino. Nesse sentido, o prestígio que a Filosofia Natural tinha para a época, com seus estudos da natureza, fez com que teólogos utilizassem argumentos da Filosofia Natural para fazer teologia, a fim de elevar seu prestígio. Mas isso foi uma via de mão dupla, pois assim como a Filosofia Natural “emprestou” seu prestígio para a Teologia, e consequentemente, a Teologia Natural, a Teologia por si, também “empresta” seu prestígio para a Filosofia Natural.

A Teologia Natural tem uma longa história, remontando a filósofos gregos como Platão e Aristóteles, e posteriormente por Tomás de Aquino (1225–1274), que argumentou que a razão humana pode chegar a certas verdades sobre Deus, mesmo sem a ajuda da revelação divina. A partir da virada do século XVIII para o XIX a Teologia Natural receberá uma nova perspectiva através da obra de William Paley.

Paley, em 1802, vai publicar uma obra intitulada Natural Theology, onde vai argumentar que a complexidade e a adaptação dos organismos vivos do mundo natural apontam para a existência de um Criador inteligente. Nesse sentido, Paley usa exemplos como o olho humano e o relógio de bolso para ilustrar a complexidade e a harmonia das partes de um objeto que foi projetado com um propósito específico. O argumento do relógio é famoso, e se baseia no pressuposto de que assim como um relógio de bolso, encontrado de forma aleatória no chão, harmoniosamente complexo, não poderia ter surgido por acaso, mas deve ter sido criado por um relojoeiro inteligente, a complexidade e harmonia, muito mais elevadas, das partes do olho humano também indicam que ele foi projetado por um Criador inteligente. Paley também usa exemplos da natureza, como o voo dos pássaros e a estrutura das conchas dos moluscos, para mostrar que esses organismos têm características que os tornam altamente adaptados a seus ambientes, o que também sugere um Criador inteligente.

Para efeito didático, não é possível falar de Teologia Natural sem falar de Alister McGrath. Esse é apenas um adento a Teologia Natural por meio da perspectiva de Mcgrath. Voltaremos a Paley e Charles Darwin daqui a pouco.

Alister McGrath é teólogo, historiador e escritor britânico nascido na antiga cidade de Belfast, na Irlanda do Norte, em 1953. Pastor Anglicano, apologista e professor de Teologia na Universidade de Oxford, na Inglaterra. É também diretor do Centro de Teologia, Religião e Cultura da mesma universidade. McGrath é autor de diversas obras como Ciência e Religião: Fundamentos Para o Diálogo, O Ajuste Fino do Universo e Teologia Sistemática, Histórica e Filosófica, dentre outras. Em suas obras, McGrath argumenta que a Teologia Natural é uma abordagem legítima e útil para a compreensão de Deus, mas que deve ser usada em conjunto com a revelação divina contida nas Escrituras. Para ele, a Teologia Natural é um esforço humano para entender Deus a partir das pistas deixadas por Ele na natureza e na razão humana. Contudo, ela não pode substituir a revelação divina contida na Bíblia. Em suas palavras, a Teologia Natural é como uma ressonância entre a maneira cristã de se olhar para as coisas e a maneira que o mundo é. Dessa forma, a Teologia Natural é algo que aponta para além que si mesmo, a Criação que aponta para o Criador. É uma forma de propor uma maneira de olhar para a natureza que o ajuda a dar sentido a ela ao mesmo tempo que oferece maior coerência, e que de forma nenhuma substituiu a revelação divina, uma vez que a esta veio primeiro, assim a Teologia Natural utiliza a nova visão fornecida através da revelação e a usa para olhar o mundo, e quando faz isso, encontra maior nitidez naquilo que observa; uma nova, e melhor, visão de mundo. Portanto, Teologia Natural e a revelação divina devem ser usadas juntas, em um diálogo construtivo que busca uma compreensão mais completa e profunda de Deus e de sua Criação.

Agora voltando para Inglaterra do século XIX…

Para Paley, a Teologia Natural é uma evidência racional para a existência de Deus. A partir da observação do mundo natural, pode-se inferir que há um Criador inteligente e que a ordem e a harmonia do universo apontam para seu propósito e design. Esse era o contexto em que Darwin publicará sua obra.

Entretanto, os argumentos de Paley para a Teologia Natural, utilizando-se de observações da natureza, não se sustentava frente outras observações da natureza, como os argumentos geológicos da idade da Terra, a própria cosmologia da época e a teoria da evolução, de Charles Darwin, publicada anos mais tarde da obra de Paley, já consolidada na época.

Além da Filosofia Natural, havia também os estudos envolvendo História Natural, e diferentemente do primeiro termo, esse segundo é um estudo mais descritivo e catalográfico, uma coleção de fatos naturais, enquanto a Filosofia Natural estava mais interessada em dar explicações e causas unificadoras para a natureza, a História Natural está mais interessada em descrever os fatos observados na natureza.

Contudo isso está mudando no contexto de Darwin, e a História Natural começa a ficar interessada em dar explicações às causas primárias acerca da natureza, como, por exemplo, a origem das espécies.

A partir disso, Darwin, em sua obra, vai descrever a partir de suas observações catalogadas em sua viagem, a grande variedades de espécies, a biodiversidade, de sua época, e busca explicar a origem das espécies por meio da seleção natural.

De forma resumida, para Darwin, a variedade de espécies se dava por meio da hereditariedade, a qual a nova espécie herdava características da anterior, e assim sucessivamente. A partir desse pressuposto, Darwin vai argumentar que não há espaço suficiente para todas as espécies, e apenas as que se adaptarem ao ambiente sobreviveriam, apenas as espécies que tivessem as características que melhor se adapta a este ambiente, mais favoráveis ao ambiente, e assim, passariam suas características adiante, o que ele chamou de seleção natural. Como exemplo os clássicos centilhões de Darwin, pássaros que se desenvolveram de formas diferentes dependendo do ambiente que estão inseridos.

A controvérsia nesse caso se dá pelo fato de que, ao publicar sua obra, Darwin causou uma controvérsia tanto para a Filosofia Natural de sua época, quando para a Teologia Natural de sua época, principalmente com essa última.

A Seleção Natural de Darwin era incompatível com a Teologia Natural de Paley, e isso causou uma certa confusão na época. Uma das principais diferentes era que, enquanto a Teologia Natural de Paley baseava-se em um planejamento de um Criador inteligente, a Seleção Natural acontecia por acasos. Outro fator que distanciava completamente essas duas abordagens era que a Seleção Natural acontecia muito mais com “impiedade”, no sentido de que o mais adaptável sobreviveria e os demais morreriam, enquanto a Teologia Natural pregava que as espécies nasceram e desenvolveram de forma mais “amorosa”, mais harmônica com base na Criação. Com relação a Criação, a História Natural apresentava uma sequência de aparecimento de espécies contrárias aos dias da Criação, o que mais uma vez, causou uma grande confusão com a visão tradicional da época.

Contudo, Darwin não tinha interesse em causar uma controvérsia, tampouco em invalidar argumentos teológicos ou provar a não existência de um Criador, como é dito popularmente. Curiosamente, Darwin cita Deus várias vezes em seu livro, inclusive na epígrafe e no último parágrafo do livro.

Há uma grandiosidade inerente a esta visão da vida: o Criador concentrou os diversos poderes da vida num pequeno número de formas, ou apenas numa; e enquanto este planeta girava de acordo com a lei da gravitação universal, a partir de um princípio tão simples, foram desenvolvidas, e continuam a desenvolver-se, infinitas formas do mais belo e maravilhoso que há. — Charles Darwin, 1859

Nesse sentido, Darwin via a seleção natural como a lei que Deus teria usado para criar. Assim como Isaac Newton descobriu que Deus criava e regia o mundo por leis, ele achava que estava descobrindo essas leis para a biologia. Sua intenção era mostrar como Deus cria por leis também na biologia. Nesse cenário, Darwin não entendia porque alguém poderia pensar que sua teoria seria uma ameaça a fé cristã.

Eu não tive intenção nenhuma de escrever de forma ateísta. […] Não vejo motivo algum pelo qual o homem, ou outro animal, não possa ter sido originalmente produzido por outras leis; e que todas essas leis tenham sido expressamente concebidas por um Criador onisciente, capaz de prever cada evento futuro e cada consequência. — Charles Darwin, 1859

Para ele, sua descoberta poderia ser facilmente entendida como a maneira que Deus usou para criar.

Embora Darwin não se interessando pela confusão, essa controvérsia, causada pela publicação de sua obra, foi o estopim para “emancipação” da ciência para com a religião. Esse caso poderia ser só mais um na história da relação entre ciência e religião, mas se tornou símbolo da secularização da ciência pelo fato de que o contexto em que essa controvérsia ocorreu havia um intenso movimento de profissionalização da ciência, em curso desde o século XVIII com o fim da revolução científica iniciada com Francis Bacon, Galileu, Isaac Newton e outros.

A obra de Darwin coincidiu como um elemento dentro de um processo muito maior de profissionalização da ciência. Isso deve ser ressaltado.

Portanto, nesse cenário, a ciência passava por uma crise, e não uma crise de conhecimento, mas uma crise de identidade.

A ciência na Inglaterra não é uma profissão: seus cultivadores não são reconhecidos nem mesmo como uma classe. Nossa própria língua não contém um único termo pelo qual sua ocupação possa ser expressa. — Charles Babbage, 1851

Agora, a partir da virada do século XIX para o XX, o termo ciência recebe o significado que conhecemos e, mais do que isso, o termo cientista começa a aparecer e trazer consigo uma profissionalização da ciência nunca antes vista. Até então as pessoas que se dedicavam ao estudo da natureza eram chamados de naturalistas, filósofos naturais ou sábios. Foi apenas com William Whewell (1794–1886), matemático cristão, historiador, teólogo e filósofo inglês que o termo “cientista” foi cunhado, em 1833, para descrever aqueles que se dedicavam ao estudo sistemático e metódico da natureza.

Então a partir do século XIX, o termo ciência começa a receber o significado que conhecemos. Agora a ciência é de fato Ciência, não mais entre aspas, ou como Filosofia ou História Natural, mas ciência.

Além disso, um dos fatores mais importantes para essa emancipação da ciência foi a Primeira Revolução Industrial, ocorrida no século XVIII. Desde esse movimento, a necessidade de progresso tecnológico aumentou e a profissão de cientista começa a surgir para atender essa necessidade. Contudo, a criação do cargo de cientista como uma profissão reconhecida levou algum tempo para se consolidar. Foi apenas no final do século XIX que os cientistas começaram a se organizar em associações profissionais e a buscar apoio financeiro para suas pesquisas.

Entretanto, a profissão de cientista não vai ocupar um vácuo, mas um espaço já ocupado pelo clero, onde eram feitas as observações e estudos da natureza. Nesse ponto, é importante ressaltar que a maior financiadora de estudos “científicos” até o século XIX foi a igreja, e antes disso a própria Igreja Católica Apostólica Romana, onde concentrava-se os maiores volumes de estudiosos. Todavia, mesmo nesse período as atividades científicas não eram apenas reduzidas ao clero, mas as “atividades profissionais” de pesquisa, eram feitas por clérigos. Lembrando que até então nomes como Francis Bacon, Galileu e Newton tinham outras ocupações “profissionais” e faziam pesquisas com recursos de financiadores ou com seus próprios ganhos de seu trabalho principal.

Portanto, o cientista vai buscar lugar em um espaço já ocupado pelo clero e, por óbvio, isso vai gerar um intenso atrito com a Igreja, colocando de vez, a ciência como antagônica a religião. Ressaltando mais uma vez que isso ocorreu apenas no fim do século XIX, podendo ser muito bem exemplificada pela obra de Andrew Dickson White (1832–1918): A History Of The Warface Of Science With Theology In Christendom (1896). O problema é que esse imaginário de guerra é projetado em todos os períodos da história, sendo apenas real a partir do final do século XIX e começo do século XX, e não em todos os períodos da história. Logo, o conflito entre ciência e religião é anacrônico.

Por fim, esse período demonstrou que havia uma forte concepção de que a Filosofia Natural poderia caminhar em conjunto com a Teologia de forma harmoniosa, como Francis Bacon, William Paley e outros defendiam, como também havia ali um movimento de ruptura, simbolizado pela obra de Darwin, que embora não participando dessa controvérsia, foi tomado como símbolo de ruptura, onde a Filosofia Natural se desvincula da Teologia, e ambas não caminham mais de forma harmoniosa, mas antagônica, com duas visões, Seleção Natural e Teologia Natural, conflitando entre si. Embora essa não tenha sido a razão muito menos o intuito de Darwin ao publicar sua principal obra.

Além disso, o movimento de profissionalização da ciência, vindo de alguns séculos atrás, encontra nesse período a possibilidade de se desvincular totalmente da autoridade religiosa, e agora, ciência e religião estão separadas. Há aqui nesse instante a secularização da ciência.

Após o movimento de profissionalização da ciência no final do século XIX, o século XX iniciou-se com um profundo sentimento de emancipação. O cientista encontrou seu novo lugar social, e dessa vez, totalmente desvinculado das autoridades religiosas.

Nesse período, os cientistas começaram a se organizar em associações profissionais e a buscar apoio financeiro para suas pesquisas. Também começaram a ocupar mais cargos em universidades, centros de pesquisa e escolas.

Com a emancipação da ciência já bem definida no século XX, houve nesse período além de um movimento de ruptura, também um movimento de afastamento da religião, gerando um ambiente de conflito. É nesse ambiente de conflito que foram criados vários grupos com conceitos científicos e religiosos diferentes. Dois desses grupos antagônicos, e possivelmente os mais famosos deste período, eram os fundamentalistas e os modernistas.

A controvérsia fundamentalista-modernista foi um conflito teológico e cultural que ocorreu no início do século XX dentro das denominações protestantes dos Estados Unidos. A controvérsia girou em torno de uma série de questões, incluindo a interpretação da Bíblia, a natureza de Deus, a criação do mundo e a evolução.

Os fundamentalistas eram aqueles que defendiam uma interpretação literal e inflexível da Bíblia, acreditando que cada palavra era a verdade absoluta e que todas as histórias e doutrinas da Bíblia deveriam ser entendidas literalmente. Eles também enfatizavam a importância da salvação individual e da evangelização para a expansão do cristianismo.

O nome “fundamentalismo” foi adotado em 1920 por um grupo de líderes religiosos que publicaram uma série de panfletos intitulados “Os Fundamentos” que defendiam a doutrina cristã básica e literalmente interpretada. Esses líderes contrariavam a crescente secularização da ciência e da sociedade americana, com o enfraquecimento do que eles consideravam como ortodoxia cristã. Nesse sentido, eles se opunham a mudanças sociais, políticas e culturais, como o ensino de evolução nas escolas e a participação feminina na política.

O movimento fundamentalista também se expandiu para outras religiões, como o islamismo, o judaísmo e o hinduísmo, e em outras partes do mundo. Hoje em dia, o termo é frequentemente usado de forma equivocada para descrever movimentos religiosos conservadores que, embora sendo raros nos nossos dias, diferem-se do movimento fundamentalista em essência e propósito. O termo também pode ser confundido com sectarismo, que é outro assunto.

Por sua vez, os modernistas, eram aqueles que enfatizavam a importância da razão e da ciência no cristianismo, e viam a Bíblia como um livro que poderia ser interpretado de maneira mais flexível e contextualizada. Eles também estavam mais abertos a ideias evolucionistas e rejeitavam a ideia de que a salvação estava ligada a uma crença literal na Bíblia.

Os fundamentalistas viam os modernistas como uma ameaça à integridade da fé cristã. Enquanto os modernistas consideravam os fundamentalistas como retrógrados e inflexíveis. A controvérsia se intensificou quando os fundamentalistas começaram a pressionar as escolas e universidades cristãs a demitirem professores considerados modernistas.

A controvérsia fundamentalista-modernista atingiu o auge na década de 1920, com o julgamento do professor de biologia John Scopes por ensinar a teoria da evolução em uma escola pública. O julgamento tornou-se conhecido como o “Julgamento do Macaco” e chamou a atenção nacional e internacional para a controvérsia.

Este foi o primeiro julgamento transmitido em rádio e levou a pequena cidade do Tennessee milhares de jornalistas, entusiastas e curiosos. O julgamento envolveu a acusação do professor de biologia John Scopes por ensinar a teoria da evolução humana em uma escola pública, o que era ilegal de acordo com as leis do estado que proibiam o ensino de qualquer teoria que negasse a criação divina do homem.

O julgamento atraiu a atenção nacional e internacional e foi visto como um conflito entre as ideias tradicionais religiosas e o pensamento científico moderno. O caso foi amplamente divulgado pela imprensa da época e se transformou em um evento midiático, com grandes nomes do jornalismo e da política acompanhando as audiências.

O julgamento contou com a participação de grandes advogados, incluindo William Jennings Bryan, um proeminente líder religioso que defendeu a acusação, e Clarence Darrow, um famoso advogado de defesa. Que tomaram sobre si todos os holofotes e fizeram com que Scopes fosse apenas um coadjuvante em seu próprio julgamento. Durante o julgamento, Darrow tentou desacreditar a Bíblia e apresentou argumentos científicos em defesa da teoria da evolução, enquanto Bryan afirmava que a Bíblia era a palavra de Deus e deveria ser lida de forma literal.

No fim das contas, Scopes foi considerado culpado e multado em 100 dólares, mas a sentença foi anulada posteriormente por uma questão técnica. Embora o “julgamento do macaco” tenha tido poucas consequências jurídicas, ele é visto como um importante episódio dentro da relação entre o ciência e religião, mas precisamente entre teoria da evolução e criacionismo. Esse sim é um episódio de conflito entre essas duas coisas, e de forma breve, explicado como ocorreu em um determinado período da história.

Embora a controvérsia tenha diminuído em intensidade após o julgamento, ela continuou a influenciar o pensamento e a prática religiosa nas denominações protestantes americanas até os dias de hoje. E anos depois, como tudo que acontece nos Estados Unidos vem parar no Brasil, esse episódio de conflito vem norteando a suposta relação entre ciência e religião ao longo da história, influenciando um imaginário de conflito.

Por fim, esse movimento de ruptura com a emancipação e profissionalização da ciência, simbolizado pela obra de Darwin ocasionalmente publicada neste período, causou o ambiente de conflito que por vezes vemos na relação entre ciência e religião, e que é projetado, de forma anacrônica, em todos os períodos da história, proporcionando um imaginário ficcional de que essas duas coisas sempre estiveram em conflito. Veremos isso com mais detalhes da segunda parte desse estudo.

Parte II: Uma relação na imaginação.

Como vimos, o ser humano é um ser criativo. Desde nossa criação recebemos de Deus a dádiva da criatividade. Mas de fato algo aconteceu no meio do caminho e hoje nossa imaginação muitas vezes tende a atender um desejo por uma realidade que só existe em nossa imaginação.

A imaginação humana, junto com nossa criatividade, foi dada por Deus para desenvolver e cultivar a Sua Criação. A imaginação é fundamental para a criatividade. A imaginação é a nossa capacidade mental de criar imagens, ideias, formas, conceitos e sensações que não estão presentes na realidade objetiva. Dessa forma, ela seria usada para conhecer e evidenciar a beleza da criação divina. Mas, contudo, nós quebramos o mandato cultural e fizemos do nosso cultivo e domínio sobre a criação, uma completa exploração dela.

Dessa forma, ao longo dos anos, o imaginário cristão formulou uma concepção de que ciência e religião sempre estiveram em conflito, tendo uma rivalizando com a outra por território e influência.

Esse mito do eterno conflito pode ter várias origens, mas a principal delas ocorre em decorrência da secularização da ciência e da controvérsia fundamentalista modernista do século passado que, em um grande exercício de anacronismo, é projetada em toda a história.

Além disso, essa controvérsia faz com que muitos cristãos hoje em dia olhem para o fundamentalismo norte americano do século passado e chame isso de “tradição cristã”. Rejeitando séculos de desenvolvimento de um cristianismo fundamentado nas Escrituras Sagradas bem longe das ideias fundamentalistas modernistas de poucos anos atrás.

Para desfazer essa imaginário cristão, Numbers, em sua obra Terra Plana, Galileu na Prisão e Outros Mitos Sobre Ciência e Religião, faz uma análise histórica e crítica das ideias mais comuns sobre a relação ciência e religião, examinando uma série de mitos e ideias falsas sobre uma suposta tensão entre ciência e religião. Para ele, muitos desses mitos são baseados em versões simplificadas ou distorcidas da história, que não levam em conta a complexidade e a variedade das relações entre ciência e religião ao longo da história. Nesse sentido, Numbers mostra que muitos cientistas eram profundamente religiosos e que muitos líderes religiosos apoiaram a ciência de seu tempo em vez de se oporem a ela.

A obra de Numbers oferece uma perspectiva crítica e esclarecedora sobre a relação entre ciência e religião, rejeitando muitos mitos e ideias falsas porém comuns sobre o assunto. Nesse sentido, a única relação possível entre ciência e religião, fundamentando-se na historiografia e com base na análise do autor, é o diálogo entre essas duas coisas.

Ciência e religião são de fato áreas distintas do conhecimento e operam em diferentes domínios. Entretanto, o suposto conflito entre essas áreas é exagerado e uma abordagem mais equilibrada e contextualizada faz com que possamos utilizar ambos conceitos para compreender mais de Deus e de sua Criação.

Nesse cenário, com um espírito bélico, cria-se uma visão de que ciência é inimiga da fé cristã, e antagonista principal da religião, em um teatro que só existe no imaginário criativo de parte da cristandade.

Some isso agora a uma visão dualista de que Cristo é Senhor apenas das “coisas religiosas”, enquanto o “de fora” não pertence a Ele. Essa é uma visão distorcida do Evangelho que não reconhece a soberania de Deus sobre todas as coisas. Novamente, fruto de um imaginário cristão.

Como dito, a ideia de que ciência e religião são coisas antagônicas per si pode ser atribuída a uma série de fatores históricos, culturais e filosóficos. De fato, em muitos momentos da história, a religião exerceu um papel dominante na explicação do mundo e da natureza. As religiões mais tradicionais forneciam uma visão de mundo e de moralidade que não deixava espaços para questionamentos ou interpretações divergentes, vide o caso Galileu. Da mesma forma, que ao longo de muitos séculos essas duas coisas dialogaram de forma profundamente íntima e harmoniosa, promovendo tanto avanços na área do conhecimento natural, quanto para a área do conhecimento teológico.

A controvérsia, e o movimento de ruptura entre essas duas coisas e que causou toda a separação de fato entre ciência e religião é recente, e remonta ao final do século XIX, como vimos na parte anterior. Projetar esse cenário de conflito recente para toda a história configura-se um grave caso de anacronismo, além de perder toda a complexidade e dimensão desses dois conceitos. Mais do que isso, carrega em si um olhar errado do passado, influenciado pelo presente, que projeta uma visão atual, para um evento de séculos atrás. Uma relação da imaginação, uma vez que só existe na mente de quem a projeta.

Outro resultado negativo desse imaginário é a criação de espantalhos. Esse termo ficou famoso recentemente para descrever a invenção de um inimigo imaginário, o qual deposita-se tamanha força para combatê-lo, mas que no fim é apenas fruto de uma imaginação criativa e fantasiosa. Aplicando esse conceito aqui, temos a criação de vários “inimigos” da fé cristã, como a ciência, o conhecimento, as instituições, entre outros. Cria-se então uma série de espantalhos, inimigos imaginários, enquanto os verdadeiros problemas continuam sem solução, tampouco é desprendido tempo e recursos para soluciona-los. Falaremos sobre os reais problemas de uma relação ficcional entre ciência e religião daqui a pouco.

Além disso, parte da imaginação cristã, possivelmente mais fundamentalista, rejeita a ciência como algo que não parte de Deus, algo que não se configura como uma possibilidade de entendimento da Criação de Deus e algo que promova mais admiração do Criador, tampouco um resultado do mandato cultural de Deus ao ser humano. Ao contrário disso, veem a ciência como uma ferramenta de esfriamento espiritual e afastamento da fé cristã, uma vez que ela não provém de Deus e não aponta para Ele.

Há uma série de razões que levam as pessoas a acreditarem em um eterno conflito entre ciência e religião, vou focar em três motivos que vejo como principais:

  1. Histórico de conflitos passados: como vimos, nem sempre a relação entre ciência e religião foi amigável, todavia, projetam em toda a história casos de conflitos ou controvérsias mais intensas, além de acreditarem em aspectos falsos do passado, como a tortura de Galileu Galilei entre outros.
  2. Dificuldade em compreender diferentes áreas do conhecimento: enquanto a ciência se baseia na observação empírica e verificação experimental, a religião se baseia na fé e no entendimento da relação do divino com o mundo natural. Esses diferentes métodos de busca de conhecimento pode levar a conclusões divergente sobre assuntos específicos, e ser visto como conflitante. Embora a fé não esteja isenta de forma alguma da razão, ela não está submetida a experimentos empíricos e laboratoriais, o que pode dificultar a compreensão de suas relações.
  3. Anti-intelectualismo: o mais grave dos três. O anti-intelectualismo é uma aversão ou desprezo ao conhecimento que se manifesta como hostilidade à educação, à ciência e às instituições de ensino. Pode ser causado por uma série de fatores como por exemplo a falta de confiança nas instituições, dificuldade em compreender eventos complexos e viés de confirmação.

Esses três motivos, principalmente o último, podem ter consequências negativas tanto para o indivíduo como para a sociedade, incluindo a promoção de desinformação, a falta de respeito pelas autoridades e especialistas em suas áreas, como também uma onda de ignorância coletiva, a falta de conhecimento, tanto da Criação, como de seu Criador.

Aqui vou focar um pouco mais no terceiro motivo pois acredito ser extremamente danoso para a igreja cristã.

Como dito, o anti-intelectualismo é uma completa aversão ou desprezo ao conhecimento como um todo, que se manifesta de diversas formas como a hostilidade à educação, à ciência e às instituições de ensino. Para o cristão, o anti-intelectualismo é uma antítese da própria Escritura, em especial ao com relação aos Livros Poéticos, contidos na Palavra de Deus. Livros estes também chamados de Sapienciais, isto é, para conhecimento. Conhecimento, ironicamente, tudo o que o “cristão anti-intelectual” tem aversão.

O anti-intelectualismo também pode ser caracterizado como uma tendência a desvalorizar a razão humana, a lógica, as evidências empíricas e a reflexão crítica em favor de outras formas de conhecimento ou opiniões pessoais que o agradem. Dessa forma, é muito evidenciado como uma necessidade de controle e viés de confirmação, ou seja, apenas aquilo que ele entende e/ou concorda é tomado como verdadeiro. Religiosamente falando, seitas comportam-se exatamente com esse mesmo modelo fideísta e sectário.

Por fim, o anti-intelectualismo pode assumir diversas formas, desde a rejeição completa da educação e do conhecimento como também da aprendizagem acadêmica até a desconfiança generalizada das instituições educacionais e autoridades intelectuais. Dessa forma, caracterizam-se como uma clara e total rejeição da ciência, da evolução por seleção natural, do aquecimento global tomando-as como “apenas teorias” que não merecem ser levadas a sério. Nesse cenário, há uma intensa desvalorização da expertise e do conhecimento especializado em favor da “sabedoria do grupo” ou da opinião popular. Movimento este também chamado de Câmaras de Eco. No contexto acadêmico, o termo “câmaras de eco” refere-se a um fenômeno em que um grupo de pessoas, muitas vezes com visões semelhantes, tende a se comunicar e interagir em um ambiente fechado onde suas opiniões são confirmadas e reforçadas, sem serem desafiadas por pontos de vista alternativos. Essas pessoas ficam restritas a um círculo social ou a uma comunidade acadêmica específica que compartilha de suas crenças, teorias e perspectivas. Como dito, seitas funcionam dessa forma também. Além disso, isso pode levar a um ambiente onde as opiniões e ideias são reforçadas e amplificadas, enquanto visões divergentes são ignoradas ou rejeitadas.

Os resultados do anti-intelectualismo e das câmeras de eco no meio cristão trazem consequências extremamente negativas no que tange a qualidade do debate intelectual na busca por conhecimento. Isso pode levar à uma intensa polarização política, social e cultural, à intolerância em relação a opiniões diferentes e à falta de diversidade de ideias, o que pode prejudicar a compreensão aprofundada e a análise crítica de questões complexas nas diversas áreas de conhecimento.

É dever do cristão, e principalmente do acadêmico cristão, fornecer um ambiente que contribua para uma abordagem mais completa e equilibrada da relação entre ciência e religião através da história, e promover um espaço que valoriza o conhecimento, e não o despreza. Recebemos do Criador a dádiva de conhecer, de conhecer as suas coisas e, principalmente, de O conhecer. Que não desprezemos tamanha dádiva.

No mais, o imaginário ficcional que tende em acreditar que há um constante conflito entre ciência e religião configura-se como uma intensa tentativa de controle, seja ele revestido de uma roupagem cristã ou não. Assim, a falta de confiança nas instituições cientificas, bem como a dificuldade em compreender eventos um pouco mais complexos faz com quem as pessoas sejam mais propensas em criar um imaginário conspiratório, onde as autoridades científicas são desonestas e corruptas, e que é mais correto acreditar em explicações alternativas para eventos importantes, muitas vezes, sem base alguma, o que é comumente chamado de Teoria da Conspiração, infelizmente muito propagada por cristãos nos últimos quatro anos — mas isso é um assunto para outro texto.

Da mesma forma, um imaginário de um eterno conflito entre ciência e religião baseia-se em explicações simplistas para eventos históricos profundos e complexos, reduzindo toda a sua dimensão e importância para o desenvolvimento da ciência e da religião ao longo dos anos. Isso até pode ser atraente em um primeiro momento para pessoas que estão se deparando com o assunto pela primeira vez, mas adotar tal postura faz com que os fatos históricos nunca sejam de fato compreendidos. Essas teorias podem fornecer uma narrativa simples e fácil de entender para explicar eventos completos, mas são equivocadas, quando não, mentirosas.

Portanto, a abordagem cristã mais coerente para a relação entre ciência e religião configura-se como uma abordagem dialogal, que busca conhecer as relações, profundas e complexas, entre essas duas coisas ao longo da história e as suas ressonâncias e consequências para os dias de hoje. Valorizando o conhecimento de pessoas engajadas no assunto e evitando falácias anacrônicas e um imaginário ficcional de um eterno conflito entre ciência e religião, que de fato, nunca existiu como modelo padrão, mas ocorreu em cenários específicos em determinados períodos da história como podemos ler. Assim sendo, a relação entre ciência e religião que devemos ter em nossa “imaginação”, isto é, em nossa capacidade dada por Deus de criar imagens, ideias, formas, conceitos e sensações que não estão presentes na realidade objetiva não é para criar um imaginário ficcional baseado em interpretações anacrônicas da história e que promove desinformação e intolerância, mas para conhecer e evidenciar a beleza, coerência e majestade da criação divina.

Por fim, a terceira e última parte apresentará uma perspectiva de que ciência e religião possam se conversar mais e, dessa forma, oferecer muito mais para o conhecimento do Criador e de Sua Criação.

Parte III: Uma relação no futuro.

Ciência e religião ainda possuem muito a contribuir. O edifício, em que homens e mulheres ao longo da história construíram para a ciência, pode chegar mais alto. A concepção de realidade, não apenas com significado, mas também com sentido que a religião oferece, pode ir além. Dessa forma, a abordagem dialogal entre ciência e religião pode fazer com que ambas as coisas alcancem o seu propósito final: levar ao conhecimento do Criador e de sua Criação.

Dessa forma, evita-se essa visão dualista de que ciência e religião estão em um eterno conflito, visão essa que é fruto de um episódio específico e não retrata toda a história entre essas duas coisas, aliás, se uma abordagem retrata com mais exatidão a relação entre ciência e religião ao longo da história é a abordagem do diálogo.

Logo, constitui-se dever do cristão oferecer um ambiente em que a relação entre ciência e religião pode ser explorada. Uma vez que ambas as coisas provém de uma mesma Fonte, não é possível que estejam em conflito consigo mesma. Dessa forma, como fruto do mandato cultural estabelecido por Deus, devemos exercer o domínio e a influência sobre a criação a fim de cultivar, cuidar e desenvolver.

É importante que acadêmicos e principalmente acadêmicos cristãos busquem uma ampla gama de perspectivas e opiniões a respeito da relação entre ciência e religião através da história, a fim de que possam compreender a profundidade e complexidade da dimensão dessa relação e possam compreende-las de forma mais completa, sem cair em espantalhos e falácias anacrônicas que nada contribuem para o desenvolvimento intelectual cristão.

Além disso, devemos exercer também o domínio e a influência sobre a cultura, com objetivo de levar as pessoas a fé e a obediência a Cristo, e isso se faz por meio do testemunho cristão. Em outras palavras, de um verdadeiro testemunho cristão, que fundamenta-se sobre os princípios das Escrituras Sagradas e não adota visões distorcidas que podem parecer atraentes em um primeiro momento. Mais do que isso, esse testemunho não baseia em um imaginário de um eterno conflito entre ciência e religião, ao contrário, reconhece a complexidade da relação entre essas duas coisas e busca compreende-la sem o olhar do presente sobre o passado, evitando projetar um episódio recente em toda a história e adotar versões simplificadas ou distorcidas da história entre ciência e religião.

O testemunho cristão que influenciará a cultura é amoroso, não é imposto, e isso mostrará ao mundo que somos discípulos de Cristo.

Nesse sentido, também faz necessário, no intuito de fornecer um bom testemunho cristão, despir-se de um espírito bélico, imaginando que a ciência é inimiga da fé cristã. Ao deixar de lado essa prisão, podemos olhar para ciência e religião sem qualquer tipo de pressuposto ou preconceito, e nesse momento, compreendê-las pelo que elas de fato são: ferramentas para compreender mais da Criação e do Criador. Como dito, tentativas de explicar a realidade e dar sentido as coisas a nossa volta sempre fizeram parte da natureza humana, somos curiosos em essência. Nesse sentido, ao reorientarmos a nossa visão a visão de Cristo, encontramos nessas duas coisas um encaixe que fornece uma melhor e maior compreensão da realidade criada. É aqui que encontramos não apenas uma resposta melhor, mas um sentido maior. Nosso testemunho se torna completo quando mostramos que ciência e religião provém de uma mesma fonte, e podemos adorar a Deus com tudo que fazemos.

Se recebemos do Criador a dádiva de conhecer as suas coisas e principalmente de o conhecer, que não desprezemos essa dádiva.

No mais, publicações de materiais com conteúdos preciosos e fundamentais para a compreensão da relação entre ciência e religião vêm sendo produzidos por diversas instituições cristãs interdenominacionais com intuito de fornecer um alicerce robusto e teologicamente edificante que ofereça à igreja cristã uma base sólida para o diálogo entre ciência e religião, como é o caso da Associação Brasileira de Cristãos na Ciência (ABC²) em parceria com a Editora Ultimato na série Ciência e Fé Cristã e em parceria com a Editora Thomas Nelson, na coleção Fé, Ciência & Cultura. Disponíveis no site das editoras e lojas virtuais. Fica aqui a recomendação.

Conclusão

Para concluir nosso estudo, um breve resumo das partes apresentadas:

Na Introdução, abordamos uma visão cristã da ciência que a fundamenta como um resultado indireto da Criação divina e como resultado direto do mandato cultural de Deus, somado com a dádiva divina da criatividade ao ser humano. Dessa forma, o ser humano foi incumbido de fazer ciência desde o Éden. E mais do que exercer domínio sobre a Criação, o mandato estabelecido por Deus também determina o nosso dever se influenciar a cultura através do Evangelho. Logo, o mandato se estende para além da natureza e alcança também a cultura. Elevar o mandato cultural às suas últimas consequências significa influenciar as pessoas a nossa volta através do Evangelho e levá-las a obediência a Cristo. Contudo, algo ocorreu no meio do caminho e o ser humano caiu. Essa Queda fez com que toda nossa relação com Deus, com o outro e consigo mesmo fora corrompida, e não foi diferente com a natureza. Nós quebramos o mandato cultural. Agora, olhamos para a natureza com intuito de satisfazer nossos desejos e domina-la, não para o cultivo e proteção, mas para uma completa exploração dela. A boa notícia é que se Queda foi uma alteração da direção correta do coração, a Redenção é um redirecionamento dele. Ao morrermos e ressuscitarmos com Cristo, temos os nossos amores reordenados e a flecha pode novamente acertar o alvo. Dessa forma, a transformação que o Evangelho proporciona não é uma mera mudança de hábitos, mas é a nossa passagem da morte para a vida. E é assim que tudo muda dentro de nós. Nossa relação com Deus, com o próximo e conosco foi novamente restaurada, assim como nosso olhar para a natureza. Agora, a visão de mundo que Cristo oferece nos faz olhar para a natureza com os olhos dele, a fim de compreende-la de forma mais nítida, coerente e que apresente ressonâncias com o Criador, apontando para algo muito além de si mesma.

Na Parte I: Uma relação na história, vimos uma definição para os complexos termos “ciência” e “religião”, a fim de adentrar na primeira parte do estudo, onde tratamos da relação entre ciência e religião através da história por meio de três casos: Francis Bacon e a Reforma Científica, Galileu Galilei e a controvérsia copernicana e Charles Darwin, Evolução e Teologia Natural, a fim de apresentar um pouco da profunda relação entre ciência e religião ao longo de tempo, suas particularidades e consequências até os dias atuais, mostrando que nem sempre ciência e religião estiveram em um conflito, que é o que muitos pensam hoje em dia, mas também nem sempre estiveram unidas, embora este tenha sido a relação mais comum ao longo dos séculos. Sendo assim, reduzir a relação entre ciência e religião como um eterno conflito perde-se totalmente a profundidade dessa relação e importância desses dois conceitos para o desenvolvimento humano ao longo dos anos. Dessa forma, os três capítulos dialogam entre si mostrando três personalidades fundamentais, inseridas em seus próprios contextos e períodos específicos da história, mas que proporcionaram construções significativas e importantes para o edifício da ciência e sua relação com a religião. Além disso, reduzir ciência e religião a nossa visão moderna de ciência e religião perde toda a sua dimensão, e se fizermos isso, corremos o risco de estarmos fazendo dela apenas um recorde do nosso imaginário.

Nesse sentido, na Parte II: Uma relação na imaginação, abordamos a relação ficcional de um suposto eterno conflito entre ciência e religião, presente em parte do imaginário cristão. Nessa parte, tentamos mostrar a profundidade da relação entre ciência e religião, suas divergências modernas e a tentativa falha de projetar um conflito recente em todos os períodos históricos, onde esses dois conceitos estiveram profundamente unidos e caminhando em conjunto.

Por fim, na Parte III: Uma relação no futuro, a terceira e última parte desse estudo, apresentamos um apelo para uma maior comunicação entre ciência e religião, apresentando e defendendo a melhor das interações entre essas duas coisas: o diálogo. Nesse sentido, tentamos mostrar que ciência e religião ainda têm muito a oferecer, e ainda muito mais se caminharem juntas.

Termino lembrando que agora que a nossa relação com Deus, com o outro e conosco foi totalmente restaurada por Cristo podemos olhar para todas as coisas com a perspectiva dele. Dessa forma, nossa visão sobre o mundo, a cultura, a ciência e a religião pode mais uma vez apontar para o Criador de todas as coisas, ser redimida e redirecionada para o completo senhorio de Cristo. Assim, não mais escravos de uma visão dualista, mas libertos, completos e aptos para glorificar a Deus com tudo o que somos e com tudo que fazemos.

Pois dele, por ele e para ele são todas as coisas. A ele seja a glória para sempre! Amém. — Romanos 11:36

Referências

Todos os textos bíblicos seguem a NVI. In: Bíblia Sagrada: Antigo e Novo Testamentos. Nova Versão Internacional (NVI). Tradução de Sociedade Bíblica Internacional. São Paulo: Editora Vida, 2001.

A parte I é baseada no curso Ciência e Religião através da História, disponível em: <https://www.youtube.com/@henriquecaldeira/>. In: CALDEIRA, Henrique Rodrigues. Curso Ciência e Religião Através da História. Universidade Federal de Minas Gerais, 2021.

Segue como recomendação também o curso Basics: Fundamentos para o Diálogo entre a Ciência e a Religião, disponível em: <https://basics.cristaosnaciencia.org.br>. In: Associação Brasileira de Cristãos na Ciência, Curso Basics: Fundamentos para o Diálogo. Academia ABC², 2021.

[1] Francis Collins é um geneticista cristão, chefe do Projeto Genoma Humano e laureado com o prêmio Templeton. É referência nos assuntos relacionados a fé cristã e ciência. Leia mais sobre ele em: https://www.cristaosnaciencia.org.br

Edições Vida Nova. O que é Teologia Natural. YouTube, 5 de julho de 2019. Disponível em: <https://youtu.be/NceRj9oOs4I>. Acesso em: mar de 2023.

Escola do Discípulo. As Grandes Questões da Vida. YouTube, 9 de setembro de 2022. Disponível em: <https://www.youtube.com/playlist?list=PLZ4pKq9EIdzx5YCI8ln1KBm5Aaa8-s_1w>. Acesso em: fev de 2023.

MCGRATH, Alister. Ciência e Religião: Fundamentos Para o Diálogo. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2021.

NUMBERS, Robert. Terra Plana, Galileu na Prisão e Outros Mitos Sobre Ciência e Religião. Rio de Janeiro: Thomas Nelson Brasil, 2020.

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