Os melhores jogos de 2023

Um top 10 afetivo sobre o meu ano

Magno
25 min readDec 27, 2023

Tem algo muito especial em fazer listas de final de ano para mim. Eu amo celebrar coisas que me apaixonaram e me acompanharam durante o ano de formas diferentes. Por isso resolvi escrever um pouco sobre… bem, videogames. Tenho muitas razões para isso, muitas delas extremamente pessoais que não vou entrar no mérito nesse texto. Mas principalmente veio de uma decisão bastante consciente minha de tentar me aproximar um pouco mais criticamente de uma mídia que sempre esteve na minha vida, direta ou indiretamente.

Falar sobre jogos em textos (e num texto relativamente longo), não necessariamente é ser a opção mais popular ou que congrega mais pessoas. Mas tive vontade e aqui estou, no dia 26/12/2023 fazendo as últimas alterações nesse texto.

Pensei muito se deveria falar aqui do meu ano, pois queria falar de mim e o que passei. Mas decidi que não, isso é só uma lista de 10 recomendações, de 10 jogos que me chamaram atenção e me cativaram em 2023. Nesse momento, é talvez a forma mais direta e sincera de eu abrir um pouco..

Primeiro porque depois de muitos anos distante de videogames, por uma série de questões, me reaproximei definitivamente da mídia em 2023. Sou profundamente grato de recuperar esse laço com um aspecto da minha vida que é tão importante para mim. Por isso, acho que os jogos dessa lista carregam lugares muito especiais para mim e dificilmente vou esquecer deles.

Então, por mais que você, leitora ou leitor, não se interesse por videogames, eu gostaria de pedir carinhosamente que desse uma chance ao que tenho a dizer sobre esses 10 jogos aqui. Não porque eu vá falar algo transformador sobre cada um desses jogos ou nada do tipo, esse texto é essencialmente um conjunto de 10 pequenas críticas, bastante sintéticas. Mas acho que mesmo que jogos não sejam sua praia, tem algo interessante a se aprender com eles aqui ao dar uma chance para o que videogames podem ser, sobretudo em um ano tão espacial para produção de jogos quanto foi 2023.

Saído da pandemia (que parece quase outra vida nesse momento) falar e estudar arte e mídias digitais se tornou algo fundamental para mim. Acho que cada vez que penso sobre mundos digitais, sobre as telas que cativam os sentidos e os jogos que nela se projetam, mais me sinto contente e mais próximo de mim mesmo. Pode soar tudo meio papo de análise, mas meio que é isso também.

Mas antes de começar!

Mais significativo do que apenas falar alguma obviedades sobre jogos que são relativamente populares, aproveito o espaço para recomendar uma mini lista introdutória.

Se meu retorno à mídia, em grande parte, foi mediado por jogos independentes, alternativos e mais curtos, não poderia deixar de recomendar mais produções assim. Por isso abro um parêntese para citar alguns aqui de cabeça que (por MUITO, MUITO pouco) ficaram de fora da lista, mas merecem igualmente sua atenção como:

Dito isso, vamos ao meu top 10!

10. I Did Not Buy This Ticket (Time Galleon; Tiago Rech)

I Did Not Buy This Ticket é uma visual novel brasileira, com toques de surrealismo e existencialismo, sobre Candelária, uma carpideira (pessoa paga para chorar em funerais) e as suas viagens de ônibus entre uma cerimônia e outra.

Esse jogo brasileiro com título gringo é uma das coisas mais belas e interessantes que já joguei de nossa produção nacional. Tem um aspecto bastante único em como ele se apresenta e como ele dialoga com a literatura brasileira e nossa produção artística. Faz isso sem ser uma caricatura de elementos ditos “nacionais”, ou usar uma imagética do que se chama de “folclore brasileiro” para trazer a si este elemento de conexão.

Pelo contrário, as relações estão na escrita da história, nos temas e na forma. O trabalho remete ao melhor da nossa literatura e dos vícios imagéticos latino-americanos, como o realismo fantástico de Garcia Márquez, ou a autorreflexão irônica e quase psicanalítica das histórias mais soturnas de Clarice Lispector. Ao mesmo tempo, se propõe a ser uma produção diferente que, para mim, aponta pro futuro e uma possibilidade de interpretar nossa tradição de jogos no Brasil para além dos limites mais formalistas do que deve ser um jogo com “elementos brasileiros”.

Os visuais são um deleite a parte. E aqui eu tenho que elogiar a belíssima arte da talentosíssima Lírio Ninotchka. A mescla de colagens e desenhos digitais, as cores quentes contrastadas com um cinza onipresente, produzem uma atmosfera surreal e onírica que, ao mesmo tempo, é familiar e profundamente inquietante.

Uma das gratas surpresas desse ano e um jogo imperdível de nossa produção nacional de videogames.

9. Humanity (Enhance)

Humanity é um jogo curiosíssimo, que só poderia vir dos mesmos criadores do maravilhoso Tetris Effect. O resultado não poderia ser outro, a linha de raciocínio dessa equipe de como fazer um jogo de puzzle é verdadeiramente especial e vale a pena ser jogada. Seja pela “vibe” única e excêntrica, pela trilha sonora ou simplesmente pela chance de ver e (tentar) entender o que as mentes criativas da desenvolvedora Enhance pensam sobre o que deve ser um jogo de puzzle em 2023.

Humanity faz algo singular com os elementos que conjuga, desde uma forma narrativa vaga e quase exotérica até o momento a momento do jogo. Aspectos que proporcionam espaço suficiente para o jogador inferir, extrair e enxertar o significado que for para a marcha contínua da humanidade projetada na tela.

Ao mesmo tempo, é nesse espaço em branco que o jogo acontece, e ele que é preenchido também pela noção particular dos criadores sobre o que significa a “humanidade”. Cômico, esperto, excêntrico e instigante, Humanity é um jogo especial e uma surpresa de 2023 em termos de profundidade para mim. Bons jogos de puzzle são especialmente difíceis de se desenvolver e raramente “clicam” para todas as pessoas da mesma forma, mas esse aqui é uma joia rara do nosso ano e destacou-se pela sua qualidade mais do que qualquer outro lançamento.

Sim, talvez seja o melhor jogo de 2023, mas nem é só disso que se faz algo inesquecível. E, infelizmente, num ano que houveram TANTOS outros jogos que não saíram da minha cabeça, Humanity, apesar de ser O MELHOR jogo de 2023, não chegou perto de ser o meu jogo favorito do ano, depois de uma avaliação mais pessoal. O que não diminui seu impacto, obviamente, por isso joguem Humanity, se possível!

8. Lunacid (KIRA)

Dungeon crawlers são uma coisa que nunca pensei que iria gostar de cara, e de fato são um gosto adquirido. Mas, nossa! Realmente eles são exatamente o meu tipo de jogo, mexem justo com o tipo de esquisitice “velha”, “burocrática” e com as mecânicas e mapas obtusos que me fascinam tanto em videogames. Esses jogos de exploração de calabouços são meu novo hiperfoco nesse final de ano, com certeza. E aqui, Lunacid foi uma porta de entrada e tanto para mim nesse gênero.

Tem algo único na sensação de explorar um calabouço tão extenso e estranho como o de Lunacid. Existe um senso de vastidão e dessossego, que é alimentado a cada passo, não necessariamente porque seja um daqueles jogos infinitos de mundo aberto, como Elden Ring, mas justamente porque essa dungeon e seus desdobramentos importam enquanto mundo digital.

Definitivamente Lunacid é uma experiência muito mais curta, melhor decida e melhor executada do que a maioria dos jogos de grande orçamento de mundo aberto — os ditos triplo A ou AAA. Faz isso justamente por esculpir um mundo nos seus detalhes, idiossincrasias e inconsistências. Não se desloca da realidade numa tentativa de fugir do mundo e da mídia que é produzido, Lunacid é por excelência um jogo que vive dentro da obsessão da era digital em referenciar e emular o “analógico” e seus visuais, tão característica da cultura da internet com a “estética” anos 90 ou 80.

Ao unir visuais e mecânicas que direta e deliberadamente citam e remetem aos clássicos de PS1 da FromSoftware, como Kings Field ou Shadow Tower, projeta neles uma sensibilidade contemporânea, maculada pelo excesso da internet, do “lo-fi” e da nostalgia digital. De um tempo perdido em um calabouço gravado em um VHS ou esquecido em uma curva da história recente.

É uma aventura especial, soturna e diferente de muito do que se vê produzido hoje em termos de RPGs de grande orçamento. Uma homenagem apaixonada pelas esquisitices de um gênero tão curioso e intrigante e, definitivamente, uma das joias de 2023.

7. El Paso, Elsewhere (Strange Scaffold)

Ainda sobre simular o passado.

Esse aqui é FÁCIL, mas TÃO FÁCIL, o jogo mais estiloso e cheio de si de 2023. El Paso, Elsewhere chegou para mim no finzinho da penúltima semana de 2023 e bagunçou um bocado minha cabeça com seu tom e narrativa bem particulares. Mais do que uma homenagem à Max Payne e histórias pulp e noir, de alguma forma, os elementos da estética de PS1 (olha ele aí de novo) e da narração verborrágica do protagonista soam novos e suficientemente originais em contraste com as influências que tenta tão claramente homenagear.

Apesar das mecânicas de tiro, as fases labirínticas e a ação intensa do jogo, para mim, as decisões estéticas e narrativas da história são o ponto alto aqui, na medida que conversam justamente com o todo da obra. A mistura dos tais visuais retrô e analógico, os capítulos estruturados como um boomer shooter, à la DOOM (1993), conversam de igual para igual com a natureza incompleta e duvidosa do relato da vida do casal (James e Draculae) que protagoniza a história.

Jogar El Paso, Elsewhere era como olhar para um filme de câmera corroído pelo tempo. Um registro parcial perdido pela intempérie pela própria natureza de sua mídia de reprodução. E por meio dessas mídias tão suscetíveis a ação deletéria do tempo, de baixa qualidade de resolução e baixa capacidade de reproduzir fielmente a realidade gravada, temos igual dificuldade de perceber os verdadeiros tons dessas duas personagens.

Me encantei inúmeras vezes com o trabalho impecável de dublagem de
Emme Montgomery e Xalavier Nelson Jr. e a composição de cenas durante o gameplay e em cutscenes. Para mim, ver como a relação dos personagens centrais evoluía, desabrochava e, eventualmente, se destruía — ainda carregando o peso do amor e do passado — foi arrasador. De forma até simples, porém muito emotiva, enquanto progredimos em direção as profundezas do vazio daquele mundo, também acessamos muito diretamente as profundezas desses dois.

Perceber que o registro de um tempo em nossa memória também é parcialmente uma mentira é um tema que, há muito, as artes já se debruçam sobre. Porém, o aporte audiovisual, pela sua própria característica de imitar o olho humano, da câmera ser um “voyeur” na vida dos personagens, permite outro passo nessa direção: uma aproximação muito mais visceral e física com essa realidade, a memória como uma ilha de edição, como diz Waly Salomão.

Nesse sentido, o que seria melhor do que um jogo de 2023, que reconstrói outro dos anos 90, que por sua vez reconstrói obras pulp dos anos 40, para contar uma das histórias de término mais interessantes, absurdas e pessoais do nosso ano?

6. Alan Wake II (Remedy Entertainment)

Control (2019) é maravilhoso, provavelmente um dos meus jogos favoritos da vida. Mas eu preciso dizer que fui tardio no bonde da desenvolvedora desses jogos, a Remedy, e do mundo escrito por Sam Lake. Descobri o primeiro Alan Wake (2010) por meio de amigos que tinham Xbox 360 na época, mas nunca tive dinheiro para ter um console da geração, então o jogo ficou no fundo da minha memória.

Acontece que, anos depois, com acesso pela primeira vez a um hardware da geração, pude tirar o atraso de alguns clássicos da última década. Entre eles estava Control — e foi a partir dele que entrei em contato com Alan Wake e o mais recente Alan Wake II.

Realmente, esse é o jogo clicou todos os botões necessários na minha cabeça para me fazer amá-lo instantaneamente.

O que é Alan Wake II? Um meta-comentário sobre relação autor-obra? Sim. Uma experimentação narrativa e visual sobre o que pode ser criado em um mundo digital? Também. Obra audiovisual apaixonada por literatura e sobre o exercício criativo? Sim!! Um olhar especial da história dos videogames (principalmente no meio Triplo A) sobre como um jogo reflete seu desenvolvimento, tanto enquanto uma conversa com o jogador, mas sobretudo como um relato pessoal e coletivo de seus desenvolvedores sobre sua própria existência? Mil vezes sim!!!

Fonte: Alan Wake 2 Review | New Game Network

Alan Wake II é simultaneamente é obra e “espetáculo” — tem autoconsciência de sua forma e brinca com ela, a fim de se “exibir” para o público. A extrapolação desse conceito cinematográfico, posto à prova no momento que dá agência ao jogador — esse que é o sujeito ativo na interação com a obra — é tão importante aqui quanto qualquer personagem desse mundo.

É por isso que Alan Wake II parece ter sido feito sobre encomenda para mim. Tem provavelmente os momentos mais icônicos do ano de 2023, seja com a utilização de FMV junto com gameplay em tempo real, seja com feito narrativo de um jogo desse orçamento com essa qualidade e coragem. É uma obra que se preocupa em pensar a si mesmo e seus autores, designers e trabalhadoras e trabalhadores em geral como partes de sua própria narrativa e personagens dessa história.

Um jogo difícil de algum dia ser superado e talvez uma das maiores e mais importantes obras do nosso tempo.

5. Tchia (Awaceb)

Como é bom jogar um jogo que NÃO é feito por estadunidenses e como é bom jogar um jogo tão entusiasmado sobre a cultura popular de seu povo como é Tchia. Produzido pelo estúdio independente Awaceb, da Nova Caledônia — pequeno território situado em um arquipélago da Melanésia, na Oceania — Tchia carrega fortes inspirações nos costumes, música, comidas e cultura local de suas e seus criadores. O jogo é completamente dublado nos idiomas da Nova Caledônia, como o drehu e o francês, mas está localizado com legendas em português.

O ano de 2023 foi o ano que mais joguei jogos brasileiros ou fora do circuito “Japão-EUA”, que domina a maior parte dos lançamentos. Por isso o extremo carisma e personalidade de Tchia me interessaram de pronto, destacando-se tanto em meio aos outros lançamentos do ano.

O que mais me impressiona em termos de gameplay é como Tchia representa uma perspectiva de design pouco ortodoxa e tão polida para o escopo e orçamento desse jogo. Ao invés de mirar em uma única mecânica polida a exaustão, como fazem alguns jogos indies de médio porte para se destacar no mercado, a equipe da Awaceb parece ter assumido uma postura diametralmente contrária e mais interessante.

O jogo experimenta com conceitos diretamente retirados de outros jogos diferentes e os reutiliza de forma bastante elegante, coesa e única. Vemos o Tchia unindo mecânicas como a possessão de objetos de Prey (2017), com a exploração não linear do mundo aberto de Breath of the Wild (2017), mecânicas de jogos de ritmo em momentos musicais BELÍSSIMOS e emocionantes, além de elementos clássicos de collectathons como Banjo-Kazooie (1997), ou os jogos 3D de Mario e, mais recentemente, Hat in Time (2017).

Como se não bastasse, faz tudo isso amarrando cada centímetro dessas inspirações com elementos narrativos, culturais e estéticos da Nova Caledônia, transformando todas essas influências em algo completamente novo.

Esse processo criativo de assimilar influências, digeri-las e costurar mecânicas de obras seminais em algo próprio e novo, reflete quem são e onde vem os desenvolvedores. Isso também é algo bastante reconhecível para jogos produzidos no Brasil — que fica ainda mais claro quando olhamos para produções mobile populares, que dialogam muito com a cultura periférica brasileira, seja urbana ou rural, como os jogos Vaquejada Gamer, Mestres do Relo — Pipa e Rebaixados Elite Brasil.

A comparação até pode parecer estranha em uma primeira vista. Mas faz sentido quando percebemos que, aqui no terceiro mundo, nossa experiência com o famigerado “game design” parte muito mais de uma absorção e tentativa de replicar elementos e mecânicas de jogos formativos (como o caso de GTA para o Brasil, sobretudo) e, posteriormente, unir isso a uma forma de narrar a nossa realidade local. Quando percebemos que dizemos muito mais sobre nós com um jogo de vaquejada do Ceará ou um simulador de batalha de pipa, Tchia e sua polissemia mecânica e de influências passa a transmitir muitos outros significados.

Por isso considero esse um dos jogos que mais recomendo dessa lista. É um ar fresco em meio a tantas produções indies que apenas atendem a mais uma expectativa de mercado sobre o que é ser independente (a ver o que foi a premiação da VGA 2023). Como disse, pode não ser o meu jogo do ano, mas provavelmente, junto com o próximo jogo da minha lista, é a minha maior recomendação de 2023.

4. Pentiment (Obsidian Entertainment)

Estou roubando nesse aqui, tecnicamente Pentiment foi lançado no finzinho de 2022, mas para efeitos de “premiação”, foi solenemente ignorado pela maior parte da dita indústria de jogos. Por isso me vejo na obrigação de colocar ele aqui, pois foi só em 2023 que pude ter contato com um dos jogos mais impressionantes dos últimos anos. É preciso dizer que, depois do maravilhoso vídeo de Henrique, no canal Nautilus, sobre Pentiment, fica até difícil não soar redundante. Mas não consigo deixar de dedicar algumas linhas para celebrar a profundidade e a escrita desse que se tornou um dos meus jogos favoritos da vida.

Pensar a história e recontar o passado é parte do processo pelo qual compreendemos o presente. Isso pode ser óbvio e trivial, mas ainda contém uma profundidade necessária a ser explorada. Há uma tradição historiográfica extensa sobre repensar o medievo europeu e suas dinâmicas socias, fugindo da rigidez narrativa que o iluminismo e racionalismo criou sobre a idade média — aproximando-se mais sobre a vida do povo pobre e suas tradições orais, sincretismos e organização social.

Humanizar a experiência dessas pessoas nesse período, para além das apropriações reacionárias que a extrema-direita faz sobre a memória de uma pretensa “glória cristã” ou da “civilização ocidental”, talvez seja um dos maiores favores que podemos fazer a nós mesmos para entender a ideologia por trás do eurocentrismo e história que ela busca ocultar dentro da própria Europa.

Em Pentiment, o debate sobre a ideia monolítica de cristandade que você ser desenvolvida ao acompanhar a vida das pessoas na vila ficcional de Tassing, na Baviera, é parte do processo narrativo do jogo. A outra parte, para mim, é a aproximação do labor artístico e, eventualmente, investigativo do protagonista à nosso papel enquanto jogador — avaliando e interagindo com essa narração à contra pelo da história do medievo. Não por acaso, Andreas Maler trabalha reproduzindo livros em monastério, em uma época onde já conviva com a prensa móvel de Gutenberg, seu trabalho e labor já não pertecem plenamente aquele momento. Seu registro histórico e habilidade de reprodutibilidade já estava em xeque pelo avanço da técnica.

Por isso, ainda que o relato escrito possa apresentar uma versão dos fatos, o registro audiovisual possa buscar imaginar e recriar uma narrativa imagética daquela realidade, é só a partir do jogo que podemos perceber da forma como Pentiment faz a aproximação entre do processo narrativo e de sua internalização mediada pela interação. Com o controle de Andreas Maler, somos tanto personagem, artista, ator e investigador daquele mundo. Somos convidados a não só acompanhar sua vida, seu relato, como também fazer as vias de “historiadores” e, no processo, abaixar nossa guarda para aquilo que desafia nossas convicções, na medida que nos vemos projetados na tela por meio de Maler.

Em suma, Pentiment é gigante enquanto obra. Justamente por se propor a ao exercício de olhar para aquelas e aqueles sem nome nos livros de história, pessoas que ceavam pobres e viviam anônimas. Tão significativo quanto a vida de qualquer um de nós, que seremos esquecidos com o passar das décadas, a vida de Andreas Maler e da vila de Tessing é uma recriação parcial de um passado que, no âmago, busca narrar nosso presente de uma forma diversa daquela que nos tentam impor.

3. Chants of Sennaar (Rundisc)

Joguei esse aos 45 do segundo tempo de 2023, junto com El Paso, Elsewhere, e igualmente foi uma das mais gratas surpresas desse ano. Jogos de puzzle assim são mágicos, não há nada que se equipare a sensação de quando me vejo guardando informações e anotações, racionando soluções e unindo os elementos para resolver os quebra-cabeças daquela aventura.

Chants of Sennaar faz isso para mim com uma maestria que há muito não via ser feito. Considerando que forma e conteúdo são aspectos indissociáveis e, mais que isso, exprimem uma unidade pela qual a obra se comunica e existe para nós, há um aspecto importante a ser analisado aqui. Esse é um jogo de puzzle que consegue fazer de sua mecânica principal e de sua estética também a forma pela qual a história é narrada e o modo como são comunicados os elementos textuais (escritos ou gráficos, verbais ou não-verbais) que existem naquele mundo.

Para ser mais objetivo, Chants of Sennaar é um jogo sobre linguagem. Nele os desafios consistem em decifrar idiomas ficcionais que não conhecemos. Isso é feito por meio de elementos visuais, linguísticos, gráficos, da geografia, da religião e da política daquela sociedade. Nos introduzindo a um mundo inspirado na “Torre de Babel”, vagamos por civilizações diversas das quais não compreendemos suas línguas inicialmente, mas o desafio reside em transpor essa barreira e avançar no nosso entendimento enquanto “estrangeiros” até o topo da torre.

Não preciso nem dizer que, inicialmente, isso parece extremamente complexo de ser implementado em um videogame. Mas por meio de algum tipo de magia arcana a equipe francesa da Focus Entertainment foi capaz de fazer essa mecânica ser não só extremamente amigável e intuitiva, como também complexa e instigante quando necessária.

Existe algo novo e especial em interagir com uma história que nos dá a possibilidade de compreendermos o peso que existe na barreira de um idioma e a vida que ele carrega. Tanto é que joguei este jogo praticamente todo acompanhado por minha mãe — que ficou fascinada do início ao fim com a possibilidade de aprender uma língua (oportunidade que ela nunca teve) ainda que uma língua digital e ficcional. Por isso, Chants of Sennaar não poderia ficar em outro lugar que não na lista dos meus 3 jogos favoritos do ano.

2. Jusant (Don’t Nod Entertainment)

Os franceses atacam novamente e nos entregaram Jusant, mais conhecido por mim como uma das maravilhas de 2023. Talvez um dos jogos mais belos e sensíveis dos últimos anos, eu acho que sua existência é quase um realinhamento cósmico que ocorre uma vez ou outra na década. Enquanto jogava Jusant me sentia imediatamente transportado para aquele sentimento, aquela coceira atrás cérebro, aquele sexto sentido que diz: você está jogando um jovem clássico. Esse mesmo sentimento que cutucou meus sentidos ao jogar games como Inside (2016) ou Bastion (2011) pela primeira vez.

Assim como alguns jogos indies prestigiados pela sua narrativa, como Journey (2012) e o já citado Inside, Jusant tem uma veia intensa pelo deslumbramento visual. Para executar isso, muito habilmente utiliza do melhor artifício técnico do videogame: elevar a experiência da tela pondo a agência do controle sob a mão do espectador, fazendo este se ver refletido no espelho que é a tela. O deslumbramento vem porque, além de nos percebermos ali mediados pelos olhos de encanto da protagonista sob mundo do jogo, agimos de fato neste mundo. Porém, Jusant executa esse truque, esse deslumbramento ativo, com uma maestria mecânica que nenhum outro jogo que partilhe desse aspecto já fez por mim.

Diferente dos verbos comuns como “andar” ou “pular”, Jusant é um jogo quase exclusivamente sobre “escalar”. O objetivo é a escalada de uma montanha, infinitamente alta e infinitamente íngreme. Suas interações com ela, a partir de então, serão intermediadas por equipamentos de escalada, como cordas e pinos, e as mecânicas construídas em torno disso. A sensação tátil e a decisão consciente de onde e como se movimentar naquela parede.

O controle individual das mãos da protagonista, a escolha de onde agarrar-se, para onde pular e como alcançar os pontos de descanso, tudo isso compõe a forma como interagimos não só com o cenário, mas como a narrativa do jogo, que é contada por meio do processo de escalada. Quase como uma arqueologia reversa, nesse mundo onde as águas secaram, o processo de escalar essa montanha revela mais e mais de um passado perdido. Então, a subida e as notas de texto encontradas pelo cenário entrelaçam linhas do tempo diversas, na medida que avançamos em direção ao topo, mais em contato com o passado estamos.

Perceber como, portanto, um mundo se transforma e se desgasta a partir das eras, enquanto você escala os escombros de civilizações e agrupamentos humanos deixados para trás, é talvez uma das ideias mais interessantes sobre como unir a geografia de um mundo digital e a história narrada.

Não consigo parar de pensar em Jusant, malditos franceses.

1. Armored Core VI: Fires of Rubicon (FromSoftware)

Não tinha como mentir para mim mesmo, meu primeiro lugar tinha que ser Armored Core VI: Fires of Rubicon.

Eu tenho uma história especial com essa série e ela é, em muito, dada pela pirataria jogos de PS2.

Durante os anos 1990 e início dos anos 2000, a realidade e o padrão de consumo de jogos no Brasil era mediado pelo o que circulava nos camelôs. Verdadeiros heróis anônimos e não reconhecidos pela história oficial dos videogames no Brasil. O que faria sucesso era fundamentalmente aquele jogo que caísse nas graças da “distribuição alternativa” e da pirataria, nos círculos coletivos da experiência do videogame, e não necessariamente pelos ditames de campanhas de marketing elaboradas, que pouca penetração tinham em uma época de acesso bastante restrito à internet, ainda que essas existissem e influenciassem alguns gostos populares.

Basta ver o fenômeno da sobrevida de King of Fighters, Gran Chase ou Lineage até hoje no Brasil e na América Latina — seja por meio de fliperamas, mas sobretudo pelas Lan Houses. Esses jogos basicamente abandonados pelo “cânone” do marketing e do mercado gringo, contrastam com a irônica e relativa “irrelevância” (com o perdão da palavra) que indiscutíveis clássicos estrangeiros como Metal Gear Solid ou Final Fantasy VII tem no imaginário coletivo do Brasil (para além do jornalismo especializado de games).

Até a massiva popularidade Mobas como o mod de Warcraft III, Defense of the Ancients (DoTA), e depois Legue of Legends, ou a explosão de Counter Strike na América Latina, Leste Europeu e no Sudeste Asiático está estritamente ligada a esse fenômeno da distribuição alternativa, pirataria e de espaços comunitários de videogames como Lan Houses. Todas essas regiões do globo com muitas similaridades econômicas e passados recentes de crises políticas e dificuldade de acesso a tecnologia pela grande parte da população.

Mas o que isso tem a ver com Armored Core? Bem, coletivamente, não muita coisa. Mas minha experiência pessoal que une meu interesse pela franquia e aquele que é o Meu Jogo Favorito de 2023 (Armored Core VI: Fires of Rubicon), está fundamentalmente ligado aos camelôs na era do PS2 e o pós apocalipse neoliberal retratado no jogo. Armored Core, apesar de não ter basicamente nenhuma popularidade na América Latina e muito menos no Brasil, cultivou uma pequena geração de pessoas intrigadas e confusas com a estranheza dessa obra. Eu fui uma delas.

Foi com meus 8 ou 9 anos, numa dessas idas ao Centro do Recife na qual, como em tantas outras, cruzei com camelôs repletos de DVD e CD piratas. Obviamente, implorei efusivamente à minha mãe por um jogo para o meu recém adquirido PS2. Porém, ao vasculhar os saquinhos de plástico que serviam de capa para os DVDs, vi a imagem de um robô gigante — um “mecha”. Era impossível aquilo não cativar os olhos e atenção de uma criança. No auge da minha obsessão pelos recém lançados filmes dos “Transformres”, eu estava condenado naquele momento a gastar a paciência e os suados 5 reais da minha mãe naquele jogo.

Talvez ela não soubesse, mas acho que naquele momento eu daria meu primeiro passo ao gosto adquirido pelo “estranho” e o “obtuso”.

Existe um “cânone” de videogames que escapa as revistas e a indústria oficial. O jogo que viralizava nos bairros, nas escolas e grupos de amigos, mas que não eram, em muitas das vezes, aqueles agraciados pelo cânone dos portais de notícias. Jogos licenciados de filmes infantis, como Happy Feet, Ben 10 ou Wall-E.

É por isso que redescobrir e recontextualizar Armored Core foi importante para mim. Ainda que naquela época, depois de batalhar com os controles estranhos do jogo eu o tenha abandonado. Mas a curiosidade e, mais importante, a memória sobre ele foi plantada ali.

Passados por volta de 15 anos desse acontecimento, no momento em que me reaproximei de videogames, caiu no meu colo de volta justamente ele: Armored Core VI. Nesse que é o sexto jogo numerado (que na verdade é o 17° jogo da franquia), posso dizer que vivi uma das relações mais interessantes que tive com um videogame em muitos anos.

Por isso é difícil pra mim até começar a falar sobre Armored Core VI de forma objetiva. Esse jogo bate FORTE nos meus sentidos e ativa coisas que não esperava serem ativadas em minha mente. Se pudesse traduzir do inglês o significado da estrangeirismo da palavra “metal”, usaria provavelmente Armored Core VI de exemplo.

Nada que eu já tenha jogado em toda minha vida poderia me preparar para o que foi essa obra. Como se não bastasse um dos sistemas de mecânica de combate mais arrebatador, veloz e pesado que já experimentei até hoje, Armored Core me fez pensar mais sobre videogames enquanto mídia e produto cultural do que qualquer outra obra desse ano. Acho que nada do que escrevi até aqui sobre todos esses outros jogos dessa lista poderia ter sido escrito se eu não tivesse jogado Armored Core VI. Esse texto, por sinal, deveria ter sido somente uma crítica a esse jogo e se transformou nisso tudo.

Mas bem, vamos à ele!

Para começar, se há algo que posso destacar primeiro, seria como ele traduz a relação jogador-aparelho. Pra mim era quase possível sentir como se o controle na minha mão não fosse mais um acessório periférico feito para não ser notado… Pelo contrário, o atrito com o controle importava. O joystick ou o teclado e o mouse como uma extensão do jogo, um manche de pilotagem, a sensação tátil direta de estar ali controlando e domando um veículo de combate estranho e alienígena. Aprendendo como se movimentar, reagir e atirar — esse verbo que muitos acostumados com videogames tiram por menos ou que soa natural.

Em Amored Core o simples ato de entender como o seu comando no joystick é transmitido e executado em tela, como comunica ao personagem controlado uma manobra ou movimentação específica IMPORTA.

O mérito aqui não vem do “polimento” ou da “imersão”. Não vem da busca em retirar o atrito inerente entre aprender a jogar, controlar o personagem e o jogador. Pelo contrário, vem justamente pelo ruído gerado e da autoconsciência de que você está controlando algo, um corpo estranho: “Como me movo naquela direção?”; “Como executo essa sequência de manobras”; “Como vou conseguir continuar atirando e desviar dos ataques consistentemente” e mais importante “COMO derrotar Balteus se eu sequer consigo manter meu robô em movimento?”.

Isso para não falar do SOM do metal contra as balas, os impactos e os chutes. Tudo comunicado de maneira quase que sinestésica via o excesso de estímulos visuais e motores que o jogo induz sobre o jogador. Simplesmente fantástico.

Mas acho que o jogo se destaca em termos narrativos também. Me surpreendi de forma positiva, pelo como a história é contada e, mais importante, em como ela conversa com os sistemas e as mecânicas de jogo. É algo novo para a própria FromSoftware (desenvolvedora do jogo). Uma história com final positivo, que faz ode à libertação. O jogo não se furta de falar sobre privatização da guerra, colonialismo, exploração de recursos naturais, Inteligência Artificial e revolução. Esses temas não poderiam fazer mais sentido em outro ano que não no nosso 2023.

Bem, Armored Core é um jogo sobre muitas coisas para mim. Mas em essência é movimento, repetição, sobre a sensação tátil de aprender a pilotar uma bicicleta — sendo a bicicleta nesse caso uma simulação digital de uma máquina de guerra de 11 metros de altura. Mas também é sobre um apocalipse possível, sobre corporações e a possibilidade da tomada de nosso futuro pelas nossas próprias mãos e, consequentemente, sobre o terror existencial que pode emergir da constatação de que mudar o mundo só depende de nossa ação coletiva.

Bem, esse foi um longo ano…

Espero que você tenha chegado até aqui e espero que algo interessante sobre esses jogos tenha ficado com você. Em 2024 espero conseguir manter uma frequência mais interessante de postagens, não só falando sobre games, mas escrevendo mais sobre aquilo que assisti e li nesse ano, afinal não só de jogo nutri meu juízo esse ano. Mas especialmente, como retrato parcial de 2023, fico feliz em compartilhar essa lista a quem interessar.

Videogames não são a mídia mais acessível e, facilmente, são aquela mais amaldiçoada seja pela obsolescência programada ou pela inevitável distopia cyberpunk do streaming. Se para Walter Benjamin a reprodutibilidade técnica do cinema inaugura um novo momento da arte no capitalismo imperialista, arrisco dizer que no videogame temos sua forma mais radicalizada na era do neoliberalismo.

Por isso, acho que lutar contra essa tendência, parte de explorar de forma mais séria, humana e engajada esse produto único de nosso tempo. Dedicando nossas atenções a produções menores e alternativas, de certa forma nos apropriamos com melhor qualidade dessa nova e confusa cultura global na era da internet. Quem sabe assim, ao pensarmos em arte ou mídias, podemos nos afastar um pouco das noções mais estáticas sobre o que as representações ficcionais (e digitais) de nossa realidade tem em termos de potencialidade.

Tive o prazer de ter contato com produções incrivelmente diversas e únicas, inclusive grande parte delas nacionais. Então, mais do que nunca, acho que não temos desculpas de não dar a devida atenção para esses jogos em detrimento do “exclusivo da Sony” do ano.

Obrigado e nos vemos em 2024!

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