Rogério Hsegawa, de 48 anos, dono do Sebo Sagarana. Foto por Isabella Von Haydin

A hora e vez de Rogério Hsegawa

Sebo Sagarana: com alguns livros, garra e gana se consagra a saga à alma humana

Mauricio Abbade
7 min readJun 15, 2018

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Por: Ana Karoline Silano, Isabella von Haydin e Maurício Abbade

Assim que entramos na porta, uma campainha nos recebe. O ambiente é, no mínimo, surpreendente. O local com aproximadamente dois metros de largura se estende como um grande corredor. Os livros, cerca de trinta mil, enchem, nas laterais, estantes do chão ao teto. Entre estas, há uma menor no centro, algo como a terceira margem do rio, que divide o espaço em dois corredores. O local lembra a “Biblioteca de Babel”, projetada em um conto do escritor argentino Jorge Luis Borges, pela quantidade intérmina de livros.

No entanto, as estantes do sebo da Rua Fradique Coutinho, número 628, não suportam a magnitude daqueles que abrigam as letras e os conhecimentos — muitas das obras estão empilhadas no chão, deixando os corredores apertados. Mal cabe uma pessoa nestes abarrotados cantos. Ao fundo, escutamos um jazz suave, sintonizado na rádio online Swiss Jazz, e no ar um cheiro de incenso se mistura com o odor de poeira acumulada.

Em um espaço apertado por literatura, perto de uma bicicleta que servia de estante e do capacete que era guardado sobre os livros, encontramos Rogério Akira Hsegawa, de 48 anos, dono do local. O descendente de japoneses, de estatura média e jeito tímido, topou conversar com a gente, mas sem ser filmado. Pensa bem antes de dar qualquer resposta e sempre oferece um sorriso sincero quando o faz. Amante de fantasia e ficção científica, ele nos contou que já morou no Japão, mas hoje mora em cima do Sebo Sagarana, local onde trabalha há quinze anos.

A entrada do local e os detalhes de seu interior. Fotos por Isabella von Haydin

O proprietário caracteriza o lugar como algo inconciliável com o tédio. O estabelecimento comercial não foi a princípio sua propriedade. Ele era de Evandro Affonso Ferreira, escritor editado pela editora 34. “Acredito que possuo um escrito do antigo dono por aqui”, afirma Akira Hsegawa, retirando das prateleiras o livro “Zaratempô!”, exemplar no qual o diálogo do narrador com a irmã recém-falecida se entrelaça a reflexões sobre a literatura e outras formas de arte, num conjunto irreverente e extremamente pessoal. O Sebo Sagarana abriu em 1991, pondo à venda a coleção de 3 mil volumentos do escritor. Entretanto, ele apenas manteve-se como proprietário do local até o ano de 2002. O nome do estabelecimento faz referência à primeira obra de João Guimarães Rosa, um dos maiores escritores brasileiros do século passado. O neologismo, criado pelo autor, é um hibridismo: “saga”, radical de origem germânica que significa “canto heróico”, “lenda”; e “rana”, palavra de origem tupi que significa “que exprime semelhança “. Assim Sagarana significa algo como “próximo a uma saga”.

Rogério, 48 anos, ao lado dos livros. Foto por Isabella von Haydin

Nascido na Zona Leste de São Paulo, Rogério teve uma infância tranquila e lembra de que os livros sempre fizeram parte da sua história. A decisão de se mudar para o Japão foi tomada com leveza, aos 19 anos: “Fui na época do boom japonês, no início dos anos 90, quando o Collor tomou a posse e pegou o dinheiro de todo mundo”. Morou por lá durante uma década, sabia pouco da língua e trabalhava em fábricas, porém reitera que foram ótimos momentos de sua vida. Após este período, alega simplesmente ter decidido voltar para o Brasil com “a menina que estava”, com a mesma suavidade que escolheu ir. Hoje, o estabelecimento é sinônimo de primogênito para o Rogério. Ele, além disso, relata nunca ter pensado em ter filhos: “dão mais trabalho que um sebo.”

Separado após um relacionamento de vinte e dois anos, motivo que o levou a morar em cima do Sagarana. Hsegawa diz ver sua família aproximadamente uma vez por mês e que a relação deles é “sem brigas, somos bem amiguinhos”. Quanto aos escritores que marcaram sua vida, ele cita alguns grandes nomes, como: Frank Herbert e Tolkien.

A Odisseia de sua vida

Depois de voltar ao Brasil, o paulistano já foi dono de banca de jornal e fez alguns cursos, como o de informática, “porque quis”. Hoje, sua rotina é basicamente acordar às oito, abrir o local às nove e ir aos correios duas vezes ao dia para despachar as encomendas. Pode-se afirmar que é uma rotina comum para quem vive no meio da revenda de livros. Sua rotina é, em partes, solitária. Entretanto, isto é algo totalmente questionável. Rogério está, durante grande parte do dia, atendendo pessoas que passam no local à procura de livros. Alguns estão habituados com o local e o dono, logicamente, os trata com cordialidade. Outros, estão apenas de passagem, atrás de algum livro específico ou observando a localidade.

A maioridade do público do Sebo Sagarana é composta por universitários, senhoras, que costumam o visitar em busca de romances, e pessoas que buscam obras religiosas, principalmente voltados ao espiritismo. Uma mulher, de uns 40 anos, entrou no local procurando um exemplar “do mesmo autor de ‘Pai Rico, Pai Pobre”, o Robert T. Kioysaki. Ela, por conta da intimidade que conversava com Rogério, nos parece que vai, com certa frequência, ao Sebo Sagarana. Como não encontra o que procura, promete ligar para Rogério para saber se o livro chegou ou se terá que comprar outro do mesmo autor, já disponível ali. Em outro momento, um homem, de uns 25 anos, entra, vai ao fundo do estabelecimento e compra dois livros: “1808” e “1889”, os dois escritos por Laurentino Gomes.

Pilha de livros registrados no Estante Virtual. Foto por Isabella von Haydin

“Ultimamente o movimento anda devagar”, relata o dono, que passa boa parte da conversa com o cotovelo apoiado na pilha de escritos ao seu lado. Apesar da queda de movimento, a loja física vende mais do que pela internet. No entanto, ele garante que não consegue ficar sem o lucro da internet e que um dia é possível que este quadro seja revertido, já que hoje o Sagarana só tem cerca de dois mil e quinhentos livros cadastrados online. Desde que o site Estante Virtual, portal brasileiro que reúne o maior acervo de sebos e livreiros do Brasil, foi criado em 2005, o cadastramento do estoque na internet vem tornando-se um movimento entre aqueles que fazem da venda de literatura o seu sustento. “Se eu conseguir cadastrar dez mil já fico feliz”, ele brinca, quando perguntamos se ele pretende cadastrar todos os seus exemplares. Parafraseando João Guimarães Rosa: tomara a gente ser, feito o Rogério: capaz com todos os horários das pessoas e, logicamente, dos livros.

Desculpe a poeira

A maioria dos exemplares chegaram de doações, apesar de alguns serem frutos de trocas e compras. Já teve um tempo em que ele aceitava o livro apenas pelo estado da mercadoria. Hoje, devido à quantidade imensurável de obras, ele é mais seletivo com o que trazer para o local. O preço depende da procura, mas geralmente custa metade do preço das livrarias. De acordo com ele, “o mais barato que vendi custou em torno de um real e acredito que o mais caro em torno de quinhentos reais.” Ele relembra que, há uns dez anos, recebeu diversos livros de psicologia e que esse tema é um dos com mais exemplares em suas estantes. Ao perguntarmos se o motivo do paradeiro é a quantidade de psicólogos presentes em Pinheiros, ele afirma, de forma risonha, que “não sei se é esse o motivo, talvez seja.”

Placa da entrada do local. Fotos por Isabella von Haydin

Apesar das dez horas que trabalha no local, ele costuma gastar horas de suas noites ali também, com as portas fechadas, fazendo atividades que não conseguiu realizar durante o dia. Os domingos são seus dias de dormir e relaxar. Alega ter desistido do carro devido às despesas e que hoje só anda a pé, de metrô e eventualmente roda de bicicleta, apesar de estar com preguiça agora. Com ela, ele já foi até o Parque Villa Lobos, Ibirapuera, Ceasa e Vila Mariana. Hoje, ela só ajuda a sustentar os livros.

Rogério e o Sebo Sagarana são quase um só. Ele faz tudo sozinho; cadastra seus exemplares em sites de vendas online, os envia por correio e recebe os clientes. A limpeza do local é feita exclusivamente por ele. Eventualmente, ele faz suas refeições lá, para economizar, e por isso há um microondas e uma geladeira nos fundos. Apesar de já ter considerado mudar para um local maior, ele relata ser, no momento, financeiramente inviável.

“Você tem livros sobre runas nórdicas?”, a pergunta surge depois do fim da entrevista, enquanto nós explorávamos o local. Rogério olha para o teto por alguns segundos e logo se direciona para a localidade na qual se encontra obras sobre runas, Wicca e Tarot. Ele oferece a brochura de interpretação de runas com um sorriso. Perguntamos por outras obras e ele encontra todas. Quase como uma traça, é capaz de, em apenas alguns segundos, descobrir a localização daquele livro específico que você procura entre a imensa quantidade presente. Se a ideia de trinta mil encadernados confunde a mente de alguns, para Rogério é apenas sua segunda casa.

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