Contra a interpretação

Ensaio de Susan Sontag

Mauro Reis Albuquerque
16 min readJun 25, 2019

A mais antiga experiência de arte deve ter sido que era encantatória, mágica; arte era um instrumento de um ritual. (Cf. as pinturas nas cavernas de Lascaux, Altamira, Niaux, La Pasiega, etc.) A mais antiga teoria da arte, aquela dos filósofos gregos, propunha que arte era mimese, imitação da realidade.

É neste ponto que a peculiar questão do valor da arte apareceu. Pois a teoria mimética, por seus próprios termos, desafia a arte a justificar-se. Platão, quem propôs a teoria, parece tê-la feito de modo a sentenciar que o valor da arte é dúbio. Como ele considerava as coisas materiais comuns elas mesmas objetos miméticos, imitações de formas transcendentes ou estruturas, até mesmo a melhor pintura de uma cama seria apenas uma “imitação de uma imitação”. Para Platão arte é nem particularmente útil (a pintura de uma cama não é boa para dormir sobre), nem, no sentido estrito, verdadeira. E os argumentos de Aristóteles em defesa da arte não desafiam de verdade a visão de Platão de que toda a arte é um elaborado trompe l’oeil, e portanto uma mentira. Mas ele disputa a ideia de Platão de que a arte é inútil.

Mentira ou não, a arte tem um certo valor de acordo com Aristóteles porque é uma forma de terapia. Arte é útil, afinal, Aristóteles rebate, útil medicinalmente no que ela excita e expurga perigosas emoções.

Em Platão e Aristóteles, a teoria mimética vai lado a lado com a assunção de que a arte é sempre figurativa. Mas defensores da teoria mimética precisam não fechar seus olhos para arte abstrata e decorativa. A falácia de que a arte é necessariamente um “realismo” pode ser modificada ou retalhada sem nunca mover-se para fora dos problemas delimitados pela teoria mimética.

O fato é que, toda consciência ocidental da reflexão sobre a arte permaneceu dentro dos limites estabelecidos pela teoria grega da arte como mimese ou representação. É através desta teoria que a arte como tal — acima e além de dadas obra de arte — torna-se problemática, em necessidade de uma defesa. E é a defesa da arte que dá origem a esta visão estranha pela qual algo que aprendemos a chamar de “forma” é separada de algo que aprendemos a chamar de “conteúdo”, e ao bem intencionado movimento que faz o conteúdo essencial e a forma acessório.

Mesmo em tempos modernos, quando a maioria dos artistas e críticos têm descartado a teoria da arte como representação de uma realidade externa em favor de uma teoria da arte como expressão subjetiva, a principal característica da teoria mimética persiste. Independente de considerarmos a obra de arte segundo o modelo de uma figura (arte como uma figura da realidade) ou segundo o modelo de uma declaração (arte como uma declaração do artista), conteúdo ainda vem primeiro. O conteúdo pode ter mudado. Pode ser que agora seja menos figurativo, menos lucidamente realista. Mas ainda é suposto que a obra de arte é seu conteúdo. Ou, como normalmente é colocado hoje, que a obre de arte por definição diz alguma coisa. (“O que o X está dizendo é…,” “O que X está tentando dizer é…,” “O que X disse é…” etc., etc.)

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Nenhum de nós pode jamais recuperar a inocência anterior a toda a teoria quando a arte não conhecia necessidade de se justificar, quando não se precisava perguntar a uma obra de arte o que ela dizia porque se sabia (ou pensava que se sabia) o que ela fazia. De agora até o fim da consciência estamos presos com a tarefa de defender a arte. Podemos apenas disputar um ou outro meio de defesa. De fato, temos uma obrigação de sobrepujar qualquer meio de defender e justificar a arte que se torna particularmente obtuso ou oneroso ou insensível às práticas e necessidades contemporâneas.

Este é o caso, hoje, da ideia mesma de conteúdo em si. Qualquer que a tenha sido no passado, a ideia do conteúdo é hoje principalmente um obstáculo, um incômodo, uma forma sutil ou não tão sutil de filistinismo.

Apesar de que os desenvolvimentos de fato em muitas artes nos tem direcionado para longe da ideia de que a obra de arte é primariamente seu conteúdo, a ideia ainda exerce uma hegemonia extraordinária. Eu quero sugerir que isso é porque a ideia é agora perpetuada disfarçada de uma certa maneira de encontrar obras de arte profundamente enraizadas entre a maioria das pessoas que levam qualquer das arte a sério. O que a super ênfase na ideia do conteúdo implica é no perene, nunca consumado projeto de interpretação. E, inversamente, é o hábito de aproximar-se de obras de arte para interpretá-las que sustenta a noção de que existe algo como o conteúdo de uma obra de arte.

Edição antiga de "Contra a interpretação". No Brasil, a obra está esgotada.

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É claro, eu não digo interpretação no sentido mais amplo, o sentido em que Nietzsche (corretamente) diz, “Não existem fatos, apenas interpretações.” Por interpretação, eu quero dizer aqui o ato consciente da mente que ilustra um certo código, certas regras de interpretação.

Direcionada a arte, interpretação significa selecionar um conjunto de elementos (o X, o Y, o Z, e assim por diante) da obra completa. A tarefa de interpretação é virtualmente de uma tradução. O intérprete diz, veja, você não vê que X realmente é — ou realmente significa — A? Que o Y é realmente B? Que o Z é realmente C?

Que situação pode levar este curioso projeto de transformar um texto?

A história nos dá materiais para uma resposta. Interpretação primeiro aparece na cultura da antiguidade clássica, quando o poder e a credibilidade do mito haviam sido quebrados pela visão “realista” do mundo introduzida pelo iluminismo científico. Uma vez que a pergunta que assombra a consciência pós-mítica — aquela da adequação dos símbolos religiosos — havia sido feita, os textos antigos na sua forma intocada não eram mais aceitáveis. Assim, os estóicos, para coincidir com sua visão de que os deuses têm que ser morais, alegorizam para longe as características rudes de Zeus e de seu clã tempestuoso nos épicos de Homero. O que Homero realmente designou no adultério de Zeus com Leto, eles explicam, foi a união entre poder e sabedoria. No mesmo veio, Philo de Alexandria interpretou as narrativas históricas literais da Bíblia hebraica como paradigmas espirituais. A estória do êxodo no Egito, das andanças no deserto por 40 anos, e da entrada na terra prometida, disse Philo, foi realmente uma alegoria da emancipação individual da alma, das tribulações, e da liberação final.

Interpretação portanto pressupõe uma discrepância entre o sentido claro do texto e as demandas dos leitores (tardios). É uma busca por resolver essa discrepância. A situação é tal que por alguma razão o texto se tornou inaceitável; ainda assim ele não pode ser descartado. Interpretação é uma estratégia radical para conservar um texto velho, que se considera muito precioso para repudiar, ao renová-lo. O intérprete, sem realmente apagar ou reescrever o texto, está alterando ele. Mas ele não pode admitir estar fazendo isso. Ele alega estar apenas tornando-o inteligível, ao revelar o seu sentido verdadeiro. Independente de quão longe os intérpretes alterem o texto (outro exemplo notório é a interpretação “espiritual” cristã e rabínica da claramente erótica Música das Músicas), eles devem alegar estarem lendo um sentido que já está aí.

A interpretação no nosso próprio tempo, contudo, é ainda mais complexa. Pois o zelo contemporâneo do projeto de interpretação é muitas vezes impulsionado não pela piedade com o texto problemático (o que pode velar uma agressão), mas com uma agressividade aberta, um desprezo exagerado pela aparência. O velho estilo de interpretação é insistente, mas respeitoso, ele erigia outro sentido acima do literal. O estilo moderno de interpretação escava, e quando escava, destrói; ele cava detrás do texto para encontrar um subtexto que é o verdadeiro. As mais celebradas e influentes doutrinas modernas, aquelas de Marx e Freud, na verdade somam-se para elaborar sistemas de hermenêuticas, teorias da interpretação agressivas e impiedosas. Todo o fenômeno observável é colocado entre parênteses, nas palavras de Freud, como conteúdo manifesto. Este conteúdo manifesto deve ser investigado e deixado de lado para para encontrar o sentido verdadeiro — o conteúdo latente — profundo. Para Marx, eventos sociais como guerras e revoluções; para Freud os eventos das vidas individuais (como sintomas neuróticos e deslizes da língua) assim como textos (como um sonho ou obras de arte) — todos são tratados como ocasiões para interpretação. De acordo com Marx e Freud, estes eventos apenas parecem ser inteligíveis. Na verdade, eles não tem nenhum sentido sem interpretação. Entender é interpretar. Interpretar é reafirmar o fenômeno, de fato encontrar o equivalente para ele.

Assim, interpretação não é (como a maioria das pessoas supõe) um valor absoluto, um gesto da mente situado em uma realidade atemporal de capacidades. Interpretação deve, ela mesma, ser avaliada, dentro de uma visão histórica da consciência humana. Em alguns contextos culturais, interpretação é um ato libertador. É uma forma de revisar, de transvalorizar, de escapar de um passado morto. Em outros contextos culturais, ela é reacionária, impertinente, covarde, sufocante.

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Hoje é um período assim, quando o projeto de interpretação é largamente reacionário, sufocante. Como a fumaça de um automóvel e das indústrias pesadas que poluem a atmosfera urbana a efusão de interpretações da arte hoje envenenam nossas sensibilidades. Em uma cultura cujo dilema clássico já é a hipertrofia do intelecto às expensas da energia e capacidade sensuais, interpretação é a vingança do intelecto sobre a arte.

Ainda mais. É a vingança do intelecto sobre o mundo. Interpretar é empobrecer, esvaziar o mundo — a fim de estabelecer uma duplicata do mundo dos “sentidos”. É transformar o mundo neste mundo (“Este mundo”! Como se houvesse algum outro.)

O mundo, nosso mundo, está esvaziado, empobrecido o bastante. Fora com todas essas duplicatas dele, até que possamos novamente experienciar mais imediatamente o que temos.

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Em instâncias modernas, interpretação culmina na recusa filistina de soltar a obra de arte. Arte verdadeira tem a capacidade de nos deixar nervoso. Ao reduzir a obra de arte ao seu conteúdo e então interpretar isso, doma-se a obra de arte.

A interpretação torna a arte administrável, conformável. O filistinismo da interpretação é mais agudo na literatura do que em qualquer outra arte. Por décadas agora, críticos literários entendem que é a sua tarefa traduzir os elementos do poema ou peça ou novela ou romance em outra coisa. Às vezes uma escritor ficará tão desconcertado diante do poder nu de sua arte que ele vai instalar dentro da obra mesma — ainda que com alguma timidez, um toque do bom gosto da ironia — a sua interpretação clara e explícita.

Thomas Mann é um exemplo de um autor desse modo cooperativo demais. No caso de autores mais teimosos, o crítico ficar por demais contente em realizar tal trabalho.

A obra de Kafka, por exemplo, é sujeita a uma violação em massa por não menos que três exércitos de intérpretes. Aqueles que leem Kafka como alegoria social veem estudos de caso das frustrações e insanidades da burocracia moderna e da emissão última de um estado totalitário. Aqueles que leem Kafka como alegoria psicanalítica veem revelações desesperadas do medo de Kafka de seu pai, sua ansiedade de castração, seu senso de sua própria impotência, seu aprisionamento aos seus sonhos. Aqueles que leem Kafka como alegoria religiosa explicam que K., em O Castelo está tentando ganhar acesso ao paraíso, que Joseph K., em O Processo, está sendo julgado pela inexorável e misteriosa justiça de Deus…

Outra obra que atraiu intérpretes como sanguessugas foi a de Samuel Beckett. O delicado drama de Beckett da retirada da consciência — reduzida ao essencial, destacada, muitas vezes representada como fisicamente imobilizada — são lidas como declarações sobre alienação do homem moderno diante do sentido ou de Deus, ou como alegoria da psicopatologia.

Proust, Joyce, Faulkner, Rilke, Lawrence, Gide… Poderia se continuar citando autor após autor; a lista não tem fim daqueles de quem se apossou a grossa crosta de interpretações. Mas deve se notar que a interpretação não é simplesmente o elogio que a mediocridade faz ao gênio. É, de fato, a forma moderna de entender algo, e é aplicada aos trabalhos de toda qualidade. Assim, nas notas que Elia Kazan publicou na sua produção de Um Bonde Chamado Desejo se torna claro que, para dirigir a peça, Kazan teve que descobrir que Stanley Kowalski representou a vingativa e sensual barbárie que estava engolindo nossa cultura, enquanto Blanche du Bois era a civilização Ocidental, poesia, roupas delicadas, meia luz, sentimentos refinados e tudo, embora usado um pouco gasto para que se tenha certeza. O melodrama forçosamente psicológico de Tennessee Williams agora se torna inteligível: era sobre alguma coisa, sobre o declínio da civilização Ocidental. Aparentemente, se fosse para continuar sendo uma peça sobre um bruto bonito chamado Stanley Kowalski e uma belle mirrada e apagada chamada Blanche du Bois, não seria administrável.

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Não interessa se os artistas intenciona, ou não intenciona, que seus trabalhos sejam interpretados. Talvez Tennessee Williams tenha pensado que o Bonde é sobre o que Kazan pensa que é. Pode ser que Cocteau em O sangue de um poeta e em Orpheus quisesse as leituras elaboradas que foram dadas a esses filmes, em termos de simbolismo freudiano e crítica social. Mas o mérito dessas obras certamente está alhures dos seus “significados”. De fato, é precisamente na medida em que as peças de Williams e os filmes de Cocteau indicam esses sentidos milagrosos que eles são defeituosos, falsos, fictícios, faltando em convicção.

Em entrevistas, parece que Resnais e Robbe-Grillet projetaram O ano passado em Marienbad para acomodar a multiplicidade de interpretações igualmente plausíveis. Mas deve-se resistir à tentação de interpretar Marienbad. O que importa em Marienbad é a pura, intraduzível imediatez sensual de algumas de suas imagens, e suas rigorosas, ainda que restritas, soluções para certos problemas da forma cinemática.

Novamente, Ingmar Bergman talvez quisesse seu tanque deslizando abaixo na rua noturna e vazia em O silêncio como um símbolo fálico. Mas se ele o fez, foi um pensamento tolo (“Nunca confie no contador, confio no conto,“ disse Lawrence.) Tomando como objeto bruto, como imediato sensível equivalente aos misteriosos, abruptos e armadurados acontecimentos de dentro do hotel, a sequência com o tanque é um dos momentos mais importantes no filme. Aqueles que buscam por um interpretação freudiana do tanque estão apenas expressando a sua falta de reação para o que está na tela.

É sempre o caso que uma interpretação desse tipo indica uma insatisfação (consciente ou inconsciente) com a obra, um desejo de substituí-la por outra coisa. Interpretação, baseada na teoria altamente dúbia de que a obra de arte é composta por itens de conteúdo, viola a arte. Ela faz da arte um artigo de uso, para arranjos em esquemas mentais de categorias.

Susan Sontag em 1968, dois anos após publicação do ensaio. Disponível aqui.

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A interpretação, é claro, nem sempre prevalece. De fato, um grande quantidade da arte de hoje pode ser entendida como motivada por uma fuga da interpretação. Para evitar interpretação, arte pode se tornar paródia. Ou pode se tornar abstrata. Ou pode se tornar (“meramente”) decorativa. Ou pode se tornar não-arte.

A fuga da interpretação parece particularmente uma característica da pintura moderna. Pintura abstrata é uma tentativa de ter, no sentido comum, nenhum conteúdo; desde que não haja conteúdo, não pode haver interpretação. Pop art trabalha no sentido oposto para alcançar o mesmo resultado; usando um conteúdo tão óbvio, tão “é isso aí”, ao final ela, também, é não-interpretável.

Uma grande parte da poesia moderna também, começando com os grandes experimentos da poesia Francesa (incluindo o movimento que é enganosamente chamado Simbolismo) que põe o silêncio nos poemas para restabelecer a magia da palavra, escapou da forte apreensão da interpretação. A mais recente revolução no juízo contemporâneo em poesia — a revolução que depôs Elliott e elevou Pound — representa uma afastamento do conteúdo na poesia no sentido antigo, uma impaciência com o que fez a poesia moderna presa do ardor dos intérpretes.

Eu estou falando principalmente da situação na América, é claro. A interpretação corre alarmante aqui nessas artes com uma vanguarda débil e insignificante: a ficção e o teatro. A maioria dos romancistas americanos e roteiristas são na verdade ou jornalistas ou cavalheiros sociólogos e psicólogos. Eles estão escrevendo o equivalente literário de música programada. E tão rudimentar, não inspirada, estagnada tem sido a noção que se pode dar à forma na ficção e no teatro que até mesmo quando o conteúdo não é simplesmente informativo, notícia, ele ainda é peculiarmente visível, conveniente, mais exposto.

Na medida em que romances e peças (na América), diferentemente da poesia e da pintura e da música, não refletem nenhuma preocupação interessante com mudanças na forma, essas artes permanecem suscetíveis ao assalto da interpretação.

Mas vanguardas programáticas — que tem significado, principalmente, experimentos com forma às expensas do conteúdo — não é a única defesa contra a infestação da arte pela interpretação. Pelo menos, eu espero que não. Porque isso seria fazer um compromisso da arte de estar perpetuamente em fuga. (Isso também perpetua a distinção mesma entre forma e conteúdo o que é, em última instância, uma ilusão.) Idealmente, é possível iludir os intérpretes de outro jeito ao fazer obras de arte cuja superfície é tão unificada e limpa, cujo ritmo é tão veloz, cujo endereçamento é tão direto que a obra pode ser… apenas o que ela é. Isso é possível agora? Isso acontece em filmes, eu acredito. É por isso que o cinema é a forma mais viva, mais excitante, mais importante de todas as formas de arte agora. Talvez o jeito de dizer quão viva está uma forma de arte particular é pela margem que ela dá para cometer erros, e ainda assim ser boa. Por exemplo, alguns dos filmes do Bergman — embora abarrotados com mensagens patéticas sobre o espírito moderno, e portanto convidando interpretações — ainda triunfa sobre as pretensiosas intenções do seu diretor. Em Luz do inverno e O silêncio, a beleza e sofisticação visual nas imagens subvertem diante de nossos olhos a pseudo-intelectualidade da história e de algo do diálogo. (O mais memorável exemplo deste tipo de discrepância está no trabalho de D. W. Griffith.) Em bons filmes, há sempre uma objetividade que nos liberta inteiramente da urgência de interpretar. Muitos filmes antigos de Hollywood, como aqueles de Cukor, Walsh, Hawks, incontáveis outros diretores, tem essa qualidade anti-simbólica libertadora, nada menos que os melhores trabalhos dos novos diretores europeus, como Atirem no pianista e Uma mulher para dois do Truffaut, Acossado e Viver a vida do Godard, Avventura de Antonioni, e Os Noivos de Olmi.

O fato de que os filmes não foram atropelados pelos intérpretes em parte é devido simplesmente a novidade do cinema como arte. Também se deve ao feliz acidente de que filmes por tanto tempo foram apenas filmes; em outras palavras, que foram entendidos como sendo parte da massa, em oposição à alta, à cultura, e foram deixados em paz pela maioria das pessoas com mentes. Há, também, sempre algo além do conteúdo no cinema para se apreender, para aqueles que o querem analisar. Pois o cinema, diferentemente do romance, possui um vocabulário de formas — a explícita, complexa, e discutível tecnologia dos movimentos da câmera, do corte, e da composição do enquadre que ocorre na produção de um filme.

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(N.T.: títulos dos textos entre aspas traduzidos livremente)

Que tipo de crítica, de comentário nas artes, é desejável hoje? Porque eu não estou dizendo que as obras de arte são inefáveis, que eles não podem ser descritas eu parafraseadas. Elas podem ser. A questão é como. Como se parece uma crítica que serve à obra de arte, não usurpa seu lugar?

O que é necessário, primeiro, é mais atenção à forma na arte. Se a ênfase excessiva no conteúdo provoca a arrogância da interpretação, descrições mais extensas e mais rigorosas a silenciariam. O que é necessário é um vocabulário — um descritivo, mais do que um vocabulário prescritivo — para formas. A melhor crítica, e isso é incomum, é de um tipo que dissolve considerações do conteúdo dentro das formas. Em filmes, teatro, e pinturas respectivamente, eu posso pensar no ensaio “Estilo e medium em Filmes” de Erwin Panofsky, o ensaio “Um conspecto de Gêneros Teatrais” de Northrop Frye, o ensaio “A destruição do espaço plástico” de Pierre Francastel. O livro Racine de Roland Barthes e seus dois ensaios sobre Robbe-Grillet são exemplos de uma análise formal aplicadas à obra de um mesmo autor. (Os melhore ensaios sobre Mimesis: a representação da realidade na literatura ocidental de Erich Auerbach, como “A cicatriz de Odisseu,” também são desse tipo.) Um exemplo de análise formal aplicada simultaneamente ao gênero e ao autor é o ensaio “O contador de histórias: reflexões sobre a obra Nicolai Leskov.”

Igualmente valiosos seriam atos de crítica que forneceriam uma descrição precisa, afiada e amável da aparência de uma obra de arte. Isso parece ainda mais difícil de fazer do que análises formais. Algumas das críticas de filmes de Manny Farber, o ensaio “O Mundo Dickens: Uma vista de Todgers,” de Dorothy Van Ghent, o ensaio de Randall Jarrell sobre Walt Whitman estão entre os raros exemplos do que quero dizer. Estes são os ensaios que revelam a superfície sensual da arte sem chafurdar nela.

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Transparência é o maior, mais liberador valor na arte — e na crítica — hoje. Transparência significa experienciar a luminosidade da coisa nela mesma, das coisas sendo o que elas são. Essa é a grandiosidade, por exemplo, dos filmes de Bresson e Ozu e de As regras do jogo de Renoir.

Houve uma época (digamos, para Dante), em que deve ter sido um movimento revolucionário e criativo projetar obras de arte para que elas fossem experienciadas em vários níveis. Agora não é. Isso reforça o princípio da redundância que é a principal aflição da vida moderna.

Houve uma época (um tempo em que a alta arte era escassa), deve ter revolucionário e criativo mover-se para interpretar obras de arte. Agora não é. O que nós decididamente não precisamos agora é assimilar mais ainda a Arte em Pensamento, ou (pior ainda) Arte em Cultura.

A interpretação subestima a experiência sensória da obra de arte, e procede daí. Isso não pode ser subestimado agora. Pense na simples multiplicação de obras de arte disponíveis para cada um de nós, sobrecombinadas com os gostos e odores e vistas conflitantes do ambiente urbano que bombardeiam nossos sentidos. A nossa é uma cultura baseada no excesso, na superprodução; o resultado é uma firme perda da agudez de nossa experiência sensória. Todas as condições da vida moderna — a plenitude material, sua simples lotação — combinam-se para retardar nossas faculdades sensoriais. É à luz desta condição de nossos sentidos, nossas capacidades (ao invés daquelas de outra época), que a tarefa do crítico deve ser avaliada.

O que é importante agora é recuperar nossos sentidos. Precisamos aprender a ver mais, a ouvir mais, a sentir mais.

Nossa tarefa não é encontrar o máximo de quantidade de conteúdos em uma obra de arte, muito menos espremer mais conteúdo de uma obra do que já existe ali. Nossa tarefa é economizar no conteúdo para que consigamos ver algo da própria coisa.

O objetivo de todo comentário na arte agora deve ser fazer obras de arte — e, por analogia, nossa própria experiência — mais, ao invés de menos, real para nós. A função da crítica deve ser mostrar como é que isso é o que é, e mesmo que isso é o que é, ao invés de mostrar o que significa.

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No lugar da hermenêutica precisamos de uma erótica da arte.

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Notas de Tradução:

A edição a que tive acesso possuía o texto corrido, sem parágrafos. Estes foram adicionados durante a tradução.

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