O novo Desejo de Matar já nasceu velho

Maurício Targino
4 min readMay 11, 2018

A equivocada ideia de resolver o problema da violência urbana com mais violência nunca foi exatamente uma novidade, na telona ou fora dela. Em 1971, o Dirty Harry encarnado por Clint Eastwood em Perseguidor Implacável fez a “justiça com as próprias mãos” explodir no cinema. O próprio Eastwood repetiu o personagem em outros quatro filmes. Mas nenhuma obra representou tanto esse lucrativo subgênero do cinema de ação quanto Desejo de Matar (1974), que acaba de ganhar seu remake, mais de quatro décadas depois.

Uma diferença marcante entre Dirty Harry e o Paul Kersey imortalizado por Charles Bronson no original e, coincidentemente, também em outras quatro sequências, estava no fato de que o primeiro era um policial conhecido pelo temperamento violento e pouco ortodoxo, seguidor de uma espécie de legislação criminal à margem da lei. Kersey, não. Arquiteto, liberal, pacifista e anti-armamentista, converte-se em um vigilante urbano após sua esposa ser morta e sua filha violentada por uma gangue de marginais.

Quando Bronson morreu em 2003, Bruce Willis já seria uma escolha óbvia para estrelar uma eventual refilmagem. Seja pela identificação de ambos com o chamado “cinema de ação” ou pelo próprio estilo minimalista de atuação de ambos. Afinal, assim como Charles Bronson é o maior ator de todos os tempos, poucas coisas no mundo são mais expressivas do que o silêncio de Bruce Willis.

Quase 15 anos se passaram até nomes que vão de Brad Pitt a Will Smith recusarem e Sylvester Stallone aceitar e depois abandonar o projeto por “diferenças criativas”, eis que o papel de Paul Kersey cai no colo justamente de Bruce Willis. Agora não mais um arquiteto em Nova York como em 1974, mas um médico-cirurgião em Chicago.

O discurso pró-armamento do cidadão que o filme original levantou — um dos muitos motivos que o levou a ser execrado pela crítica tanto na época de lançamento quanto hoje — foi, por assim dizer, “suavizado” no roteiro de Joe Carnahan, que opta por explorar outras questões mais ligadas à atualidade, como a mídia na era da internet e o fetiche armamentista norte-americano. Infelizmente, opta por não se aprofunda nessas análises, o que poderia inserir o Desejo de Matar do século XXI em outras prateleiras além das reservadas aos filmes de ação. Uma pena.

A maior decepção, no entanto, recai sobre a direção de Eli Roth. Conhecido pela violência extrema de filmes como O Albergue, Roth parece contido em exercitar seu estilo carniceiro. Ou foi limado pela produção, o que seria bastante plausível, uma vezque Roth está mais para operário do que para artista da direção —assim como Michael Winner, que dirigiu quase 40 longas-metragens na carreira e mal é lembrado inclusive pelo Desejo de Matar original.

Censura 18 anos no Brasil, garantia de muitas tripas à mostra e cabeças estouradas, certo? Apenas em planos rápidos, facilmente removíveis para uma inocente exibição na Sessão da Tarde (terreno no qual o original, honradamente, jamais pisou). Até no número de mortes, bizarro critério para medir a “qualidade” dos filmes de ação pós-Desejo de Matar, o novo filme fica devendo.

Quanto à substituição da cabeleira grisalha e do icônico bigode de Bronson pela reluzente careca do novo protagonista, pode-se dizer que o ex-marido de Demi Moore fica a anos-luz de entrega ao personagem em relação ao velho ídolo dos brucutu movies: Willis parece um tanto acomodado na imagem construída desde o primeiro Duro de Matar (1988), sobretudo depois que assumiu a calvície de vez, ao passo que Bronson, então com 53 anos, via naquele papel a última chance de (merecidamente) se consagrar no cinema. Willis, que já passou dos 60, está com a vida ganha há pelo menos metade desse tempo.

Ao final, a sensação que fica do novo Desejo de Matar é a de um bom filme de ação, ainda que sem muita coisa que o destaque entre tantas outras obras do gênero nos últimos cinquenta anos. Divertido em alguns momentos, omisso em muitos outros, ao menos se mostra muito superior ao que o lamentável trailer oficial sugere. Quem sabe uma versão do diretor em blu-ray dê aos fãs um pouco mais de carnificina do que se viu nos 108 minutos de exibição?

Ou melhor: quem sabe nessa mesma versão não se cometa o erro de tocar Back in Black, do AC/DC? Afinal, poucas vezes uma canção esteve tão deslocada em um filme. E o pior: é impossível não sair do cinema cantarolando, ainda que mentalmente, o pegajoso riff de introdução.

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Maurício Targino

Pai de meninos, marido de mulher, sugar daddy de gata manhosa e tutor de cachorra preta.