“Dom Casmurro” de Machado de Assis

Marcos Zamith
9 min readMay 8, 2024

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Prosseguindo com a leitura de algumas obras literárias brasileiras, após José de Alencar chega a vez de Machado de Assis: Dom Casmurro. Um motivo da escolha de um romance de Machado de Assis foi a repetida questão “Capitu traiu ou não traiu Bentinho?” Sempre ouvia a discussão em aulas, mas, seja por falta de interesse em literatura, seja por não ter lido o romance, nunca estive inteirado do assunto. Agora, uma vez lido, experimento, nesta série de primeiras leituras no Medium, um ensaio informal sobre Dom Casmurro. Portanto, não espere o leitor uma análise literária, visto que sequer foi realizada uma segunda leitura da obra e menos ainda uma consulta à fortuna crítica, tampouco que a opinião expressa em resposta à pergunta de sempre seja a melhor. Quem sabe, em anos vindouros, as ideias aqui ensaiadas ganhem forma de um trabalho de maior seriedade.

Esta edição de Dom Casmurro se encontra nas Obras Completas de Booklyn Media. Adianto um primeiro defeito na edição: o capítulo 13, “Capitu”, está ausente. Além disso, o numeral dos capítulos é precedido por “chapter”, em inglês… Neste capítulo ainda, Capitu é descrita. Embora, ao longo do enredo, seja retratada por Bentinho como encantadora, algumas características suas não se afinam com meu gosto: cheia, cabelos grossos, nariz reto e comprido, boca fina e queixo largo. Por isso, o palavreado de encantamento não surtiu efeito total sobre mim como leitor. Além disso, o nome “Capitu”, que sempre achei esquisito, vem de “Capitolina”, o que não ajuda a embelezar o nome… Outro efeito na leitura deste capítulo foi o “vestido de chita”: embora “chita” signifique “pano ordinário de algodão”, foi inevitável e mais forte a associação da palavra com a macaca do Tarzan.

Seguindo minhas notas no Kindle, o primeiro trecho de interesse é a alcunha “Casmurro”, presente no título da obra, que Bentinho recebeu e significa “ensimesmado”. Outra característica de Bentinho é que ele é narrador-personagem e já adulto. Mesmo as falas diretas de personagens são reproduzidas por Bentinho, não pelos personagens mesmos.

No início de sua história, ele com quinze anos e Capitu com catorze têm relação de amizade que se torna amorosa. O conflito na trama se estabelece com o desejo da mãe: prometeu que o filho se tornaria padre, portanto deveria entrar no seminário. Devido ao celibato clerical, Bentinho não poderia se casar com Capitu. Entra no seminário a contragosto. Apesar do desejo irracional da mãe (um costume de — se bem me lembro de uma apostila de História de cursinho — tornar o primeiro filho sacerdote, que remonta à Idade Média), o padre Cabral é esclarecido, pois considera que, se Bentinho não tiver gosto pela vida eclesiástica, poderá atuar na Igreja fora do meio eclesiástico.

Nos primeiros capítulos, são apresentados personagens, mais ou menos um por vez. Com lentidão, o enredo engrena. Um defeito que encontrei na narrativa foi a digressão mal utilizada, ou no vulgo o “enrolar”, o “encher linguiça”. Quanto mais leio romancistas do século 19, mais encontro isso. Creio que em Dom Casmurro Machado de Assis abusou mais disso que Alencar em Iracema ou em Senhora. Sem dúvida, tal defeito está em função do modo de publicação dos folhetins. No caso de Dom Casmurro, receio que até 50% da narração poderia ser excluído por serem excrescências, de modo que fosse mais bem-sucedido enquanto bela arte. Há 148 capítulos no total, muitos deles curtos. Nos cem primeiros capítulos, achei alguns mais motivantes e muitos outros dispensáveis. A partir do capítulo 100, o enredo pareceu melhorar, apesar das digressões ruins até o desfecho. Mesmo assim, a obra contém outras qualidades ainda a ser comentadas, e desse modo ela não encaixaria na ideia debiloide de clássico como absolutamente perfeito, sacrossanto, incriticável.

No capítulo 11, Bentinho afirma que aprendeu as primeiras letras, latim e doutrina com o padre Cabral. De fato, se observa uma erudição na narração pelas referências à cultura clássica e bíblica. Além disso, expõem-se aspectos sociais como a missa em latim (vigente na época), costumes católicos de promessas e devoções. Lê-se no capítulo 14: “Faltava dizer a missa nova, por um latim que ninguém aprende, e é a língua católica dos homens.” Para um leitor atual a par das polêmicas tradicionalistas, “missa nova” soa com um significado certamente diferente do pretendido na frase. “Um latim que ninguém aprende” aponta a discrepância entre a língua litúrgica latina utilizada pelos clérigos na missa desde meados da Idade Média e a língua neolatina do povo que já não seguia as orações do sacerdote. Até o século 20, havia coroinhas ou acólitos rezando em latim de cor, sem compreender o sentido das frases, embora houvesse padres com fluência o suficiente para compreender os textos. “E é a língua católica dos homens”. Na época e por muitos séculos, o latim era a língua oficial no rito romano e continua a ser mesmo após o Concílio Vaticano II, que prescreve a conservação do latim ao mesmo tempo que abre espaço à língua vernácula na liturgia.

Estudando atualmente a literatura inglesa no século 19, encontro no capítulo 23 o nome “Walter Scott”, escritor que inventou o romance histórico.

O capítulo 33, “O Penteado”, é o que contém a cena muitíssimo romântica do beijo de Bentinho e Capitu. E no capítulo seguinte o narrador escreve “os beiços de Capitu”, que me soou cômico. “Os lábios de Capitu” soariam, ao menos hoje, em maior conformidade com o clima romântico entre os dois adolescentes.

Sem dificuldade, o Google retorna o resultado de que Machado de Assis foi um escritor tido como realista (psicológico) ainda com elementos do romantismo. Considero que a proporção de realismo e romantismo em Dom Casmurro é a seguinte. O conteúdo do romance é subjetivo, a saber, as lembranças, as sensações, os sentimentos do narrador-personagem, ao mesmo tempo em que há uma forte expressão de um ego. Por esses aspectos de subjetividade do narrador-personagem e de expressão do seu ego ou ponto de vista individual, encontramos traços em comum com o Romantismo décadas antes. Em poucos momentos, há uma intensificação emocional como o primeiro beijo de Bentinho e Capitu e como, no capítulo 50, as lágrimas de Bentinho, mais que todas desde Adão e Eva, e reconhece, comicamente, haver nisto “alguma exageração”. Os aspectos de objetividade e racionalidade são predominantes no romance. Mesmo o conteúdo sendo subjetivo de Bentinho, sua forma de expressão é objetiva, com qualidades de precisão e erudição, assim como há uma exposição de costumes, com alguma crítica social sem que seja seu carro-chefe aparentemente. Por parte do autor, é notável sua engenhosidade em manter a ambiguidade (“Capitu traiu ou não traiu Betinho?”) à semelhança do seu conto A Missa do Galo.

No capítulo 40, Bentinho diz “A imaginação foi a companheira de toda a minha existência […]”. Salvo engano, em alguns momentos aplica sua imaginação e fantasia. Esses atos são relevantes para serem relacionados com sua futura convicção contra Capitu.

Uma concepção metafísica de Bentinho está no capítulo 55. “Mas, como eu creio que os sonetos existem feitos, como as odes e os dramas, e as demais obras de arte, por uma razão de ordem metafísica, dou esses dois versos ao primeiro desocupado que os quiser.” Apesar de a metafísica e a teologia sofrerem uma desvalorização no século 19 (a primeira maior que a segunda com efeitos até hoje sem dúvida), em Dom Casmurro como em alguns contos ao menos, Machado de Assis não mostra uma aversão à metafísica e à teologia. Ao contrário, mostra ter ao menos alguma educação religiosa e neste capítulo mostra a ideia de uma obra de arte (soneto, ode, drama) existir no mundo das ideias e o bom artista conseguiria expressá-la sensivelmente.

No seminário de padres, Bentinho conheceu Escobar e se tornaram melhores amigos. Um e outro não tinha vocação sacerdotal apesar de estarem no seminário. Saíram do seminário e se casaram. Bentinho se formou em Direito e se casou com Capitu. Escobar e sua esposa Sancha eram um casal amigo do casal Bentinho e Capitu. No capítulo 106, Bentinho cita indiretamente Escobar: “A cunhadinha (continuava a dar este nome a Capitu)”. A citação do substantivo no grau diminutivo reforçado pela ênfase entre parênteses indica a postura de Bentinho adulto e narrador em relação a Escobar. Em dado momento, surge o suspense sobre um possível evento futuro: Capitu teria cometido traição amorosa com o melhor amigo de Bentinho — ação deveras triste. Uma cena de encontro entre Capitu e Escobar funcionam como indício de adultério de Capitu, conforme pensava o ciumento Bentinho. Outro momento de inclinação do enredo a um adultério são os dedos de Sancha juntos aos de Bentinho. “Senti ainda os dedos de Sancha entre os meus, apertando uns aos outros. Foi um instante de vertigem e de pecado.”

Pela peça de teatro de Otelo, no capítulo 135, percebe-se uma mudança na narração. A postura de Bentinho passa a ser a de um esposo convicto do adultério de Capitu. O casal teve um filho, Ezequiel, que agradava Bentinho, mas Bentinho passa a sentir afetos confusos em relação ao filho porque via nele o rosto de Escobar, “casualidade da semelhança” conforme a fala de Capitu. Bentinho e Capitu discutem, consideram separação. Mais tarde, Escobar e Capitu morrem. Quando Ezequiel volta da Suíça, Bentinho vê nele “o próprio, o exato, o verdadeiro Escobar”.

O último parágrafo expressa uma tristeza de Bentinho: “E bem, qualquer que seja a solução, uma coisa fica, e é a suma das sumas, ou o resto dos restos, a saber, que a minha primeira amiga e o meu maior amigo, tão extremosos ambos e tão queridos também, quis o destino que acabassem juntando-se e enganando-me… A terra lhes seja leve! Vamos à História dos Subúrbios.” Nota-se que, pelo perfil dos personagens, é baixa a probabilidade de essa trama acontecer no mundo real, pende mais aos exageros românticos. Mesmo assim uma grande qualidade na obra é a ambiguidade que se mantém sobretudo desde os sinais de que Escobar teria violado a amizade com Bentinho e Capitu teria adulterado.

A questão que sempre se coloca é se Capitu traiu ou não Bentinho. Em via de regra, nas discussões, se assume que não é possível responder à questão porque Bentinho é o narrador-personagem, está expressando o seu ponto de vista particular e assim o leitor desconhece o ponto de vista de Capitu, cujas falas são reproduzidas pelo narrador. Há leitores que arriscam palpitar uma resposta afirmativa ou negativa à questão. Alguns, discípulos da Ilogicidade, diriam “É o ponto de vista de Bentinho, portanto Capitu não traiu.” Non sequitur.

Tenho a opinião — lembrando que baseada apenas em uma primeira leitura — de que o leitor não consegue responder à questão com certeza. Argumentos contra Bentinho ter razão seriam: o ponto de vista do narrador-personagem sem os outros pontos de vista; as falas não são dos personagens mesmos, mas reproduzidas pelo narrador; Bentinho era ciumento; as cenas do encontro de Capitu com Escobar e de Capitu vendo o cadáver de Escobar não são provas do adultério de Capitu.

Porém Bentinho mostra que Ezequiel se assemelha a Escobar. A semelhança não funcionaria como prova jurídica, no caso de adultério ser crime, para salvaguardar a inocência da acusada a princípio, mas como indício fraco ou forte. Nessa situação, naturalmente Bentinho se sente desconfiado e convicto da infidelidade conjugal de Capitu. Dado que a semelhança entre Ezequiel e Escobar é expressa conforme o ponto de vista de Bentinho, “o próprio, o exato, o verdadeiro Escobar”, creio que duas possibilidades convincentes são.

1- Bentinho, apesar da desilusão amorosa, expressa um ponto de vista verdadeiro, com razoabilidade.

2- Bentinho sofria de alguma desordem psicológica grave, com paranoia ou alucinação, a ponto de confundir as aparências de Ezequiel e Escobar.

A segunda possibilidade seria bastante interessante considerando-se o contexto histórico de Dom Casmurro (1899). No século 19, a psicologia ganhou status de ciência e fenômenos psicológicos ou mentais aparecem em obras literárias na época. A Morte de Ivan Ilitch (1886) de Tolstói é considerada uma obra-prima do realismo psicológico. A Volta do Parafuso (1898) de Henry James, uma das histórias de fantasmas mais famosas no mundo, trabalha com ponto de vista, com percepção realista ou fantasiosa. Em Dom Casmurro, Machado de Assis, chamado de “realista psicológico”, trabalha a subjetividade de Bentinho e coloca em questão a relatividade do seu ponto de vista. Conforme lia, me convencia de que Bentinho tinha razão pelo motivo da semelhança entre Ezequiel e Escobar. Ao mesmo tempo, esperava que Machado mantivesse uma ambiguidade fazendo um personagem que por exemplo teria sido internado em um hospital psiquiátrico. Assim, acho que seria mais difícil inferir a verdadeira razão: se houve adultério real ou se Bentinho fantasiou. Não me pareceu que Bentinho fantasiasse a imagem de Ezequiel confundida com a de Escobar, mas que a semelhança foi real. Em todo caso, em termos de justo juízo, seria necessário saber o ponto de vista dos outros personagens.

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